Educação Indígena: concepções bases e experiências [1]
Debatedores defendem educação voltada para as lutas políticas dos povos indígenas
Debatedores defendem educação voltada para as lutas políticas dos povos indígenas
A ‘Educação Indígena: concepções bases e experiências’ foi objeto de debates na primeira mesa do segundo dia do seminário ‘Povos indígenas educação e saúde: a formação profissional do agente indígena de saúde’. Participaram da mesa-redonda Gersen Luciano dos Santos, coordenador da Coordenação de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secadi/MEC), Euclides Macuxi, coordenador do Projeto Demonstrativo para Populações Indígenas do Ministério do Meio Ambiente (PDPI/MMA) e Alva Rosa, gerente de Educação Escolar Indígena da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Amazonas (Seduc).
Educação política
O antropólogo Gersen Luciano Baniwa apresentou os principais aspectos que envolvem a educação escolar indígena pensada como política pública nos dias de hoje. De acordo com ele, este é um debate recente, no entanto, o momento atual é propício para a reflexão, na medida em que importantes marcos legais da área precisam se materializar no dia a dia das comunidades.
“Estamos caminhando para duas décadas e meia da inauguração de novos horizontes da educação escolar para os povos indígenas, garantidos pela Constituição de 1988, quando o princípio voltado para a integração, a tutela e, de certa maneira, a extinção foi superada no marco legal brasileiro. Quando ouvimos criticas de que a educação pouco avançou, preciso lembrar que a minha geração nasceu com os dias contados para não existir como povo étnico diferenciado. O processo foi mudado, houve uma revolução histórica. Ninguém fala hoje em extinção dos povos indígenas, que crescem a taxas de 5% ao ano. Acredito que a Constituição de 1988 foi uma mudança de rumo na história”, afirmou.
Luciano lembrou ainda de outros marcos importantes no processo de consolidação da educação escolar indígena, como a realização, em 2008, da ‘I Conferência Nacional de Educação’, que, segundo ele, foi aproveitada na elaboração do Plano Nacional de Educação 2011-2020. Além disso, Baniwa informou que passados vinte anos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o MEC e o Conselho Nacional de Educação, junto com a sociedade, estão fazendo a avaliação das diretrizes da educação escolar indígena, o que deve gerar novas diretrizes até o ano que vem.
“Eu tenho a percepção particular de que os povos fizeram uma opção favorável pela escola e digo mais: qualquer escola, melhor se for de qualidade, específica, diferenciada, multicultural e bilíngue, mas não ouço nenhum índio reclamar das escolas missionárias porque, no fundo, o que está em jogo é que os povos indígenas não abrem mão do acesso ao mundo não-indígena; aos conhecimentos, valores, tecnologias e ciências. Não conheço nenhum povo indígena que queira saber só do mundo dele”.
Gersen explicou porque se faz uma divisão entre a educação indígena e a educação escolar indígena, caracterizando suas principais diferenças. “A primeira é própria de cada povo; já a segunda é um modelo institucionalizado e formalizado que pertence à estrutura da sociedade majoritária e, no caso do Brasil, do Estado. No entanto, hoje, na vida de uma criança, é muito difícil perceber qual é a fronteira entre a educação indígena e a educação escolar”, pontuou.
Outras diferenças importantes são as referências, pedagogias e aprendizagens dos dois tipos de educação. Para Gersen, enquanto a educação indígena é referenciada nas cosmologias e na história já vivida, com forte base oral; se pauta pelo princípio da complementaridade e é tomada como responsabilidade da família e da comunidade, a educação escolar é baseada na teoria escrita, no saber e vida fragmentados; com uma aprendizagem institucionalizada e privatizada, no sentido de que a família transfere a responsabilidade da educação para o professor e a escola.
“Se houver mil povos, um povo indígena vai querer um pouco de todas as culturas, na tentativa de agregar coisas úteis e positivas”, sustenta ele, que acha também que há uma falsa ‘escolha de Sofia’ sendo imposta aos povos indígenas. “Há um conflito entre o que se trabalha na escola indígena: a tradição ou a modernidade? O professor indígena tem que ensinar o quê?”.
Para ele, o conflito tem raízes políticas, uma vez que até hoje permanece o dilema entre promoção e proteção do índio. “Educar o índio para quê? Para promovê-lo ou para protegê-lo? Isso é uma longa discussão. Infelizmente não há acordo. Pelo menos na antropologia, a visão que prevalece é a de educar o índio para ficar na aldeia, para protegê-lo, porque o mundo lá fora é “ruim”. Enquanto isso o trator vai chegando e vai derrubando a aldeia”.
Nesse sentido, para Gersen, as escolas indígenas têm privilegiado o ensino de conteúdos como língua materna e cosmologia, imitando o modelo da educação escolar dos brancos, que relegam à escola toda a responsabilidade. Ele defende que, ao contrário, tais conteúdos sejam responsabilidade da comunidade indígena e que a escola assuma o papel de ensinar conteúdos que garantam ao índio as mesmas condições de autonomia no mundo moderno que uma criança branca tem direito na escola não-indígena. “Se a opção é proteger, aprender geometria e química vai fazer mal ao índio. Está se obrigando o índio a fazer uma escolha entre a tradição e a tecnologia e isso não é um problema para o índio”.
Além disso, Baniwa sustenta que uma diferença fundamental para a educação escola indígena é que ela não pode prescindir de uma forte base política. “A escola para o branco tem muito a ver com carreira, profissão, salário, etc. Para os povos indígenas é muito mais uma estratégia, tem a ver com as metas políticas que povos estabelecem. É uma escola para trabalhar cidadania ou, de certa maneira, para construir sujeitos políticos com autonomia. Se fizer opção de avalizar apenas a língua materna não vai haver a mínima chance de interagir e influenciar o mundo lá fora”
Experiência de Roraima
Euclides relatou a experiência de Roraima com educação escolar indígena. De acordo com ele, tudo começou em 1986 com a reunião de autoridades indígenas e pesquisadores da área para discutir as bases da educação que se queria. “Enfrentávamos problemas porque professores não-indígenas iam para as áreas e enfrentavam dificuldades em relação a distâncias e hábitos de vida. A conclusão era que havia necessidade que as escolas fossem com os índios e dos índios, refletindo sua realidade”. Assim, foi criado na secretaria estadual de educação um núcleo de educação escolar indígena.
Depois, começou a se discutir a gestão das escolas. “Os diretores eram indicações políticas e não representavam interesses das comunidades. Então, fizemos uma discussão sobre a necessidade de haver escolha desses nomes por parte dos indígenas”.
Ao mesmo tempo, o movimento indígena travava a luta pela demarcação das terras e as escolas eram utilizadas como estratégia para seu reconhecimento. “As comunidades se subdividiam e criavam escolas. O município era pressionado a reconhecer a escola e, ao fazer isso, reconhecia que aquilo era uma terra indígena”.
Euclides lembra que o movimento defendia que o conteúdo da formação teria que ser diferente. A Constituição de 1988 no capítulo dedicado à ‘Educação, Cultura e Desporto’, definiu que a educação indígena teria “fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Além disso, a Carta previu que o ensino fundamental regular fosse ministrado em português, mas, ao mesmo tempo assegurou o direito à utilização das línguas maternas e processos próprios de aprendizagem
Já em 2002, Euclides lembra que foi criada a licenciatura intercultural, reivindicação dos professores para que pudessem ter graduação em uma universidade. Segundo ele, foram licenciados 60 professores indígenas no primeiro ano e, agora, mais de 300 estão fazendo o curso.
Outro desafio apontado por Macuxi foi o concurso diferenciado, especificamente para professores indígenas. “Não sei qual foi argumentação jurídica que embasou, mas em 2002 ocorreu o concurso em Roraima e um dos quesitos da prova era uma redação na língua indígena o que, de certa forma, pressionou o interesse para falar a língua”. De acordo com ele, depois disso se tentou contratar professores que realmente entendessem das línguas maternas, mas a legislação não permitia sob o argumento constitucional de que “todo mundo é igual perante a lei”.
Em relação aos docentes, hoje há uma tentativa de se rever o processo de seleção com a adoção de critérios como o compromisso com a comunidade, que, ao concluir a licenciatura, o profissional passe pelo menos passar quatro anos na aldeia para compensar o apoio.
Além disso, Euclides explica que alguns professores defendem que as escolas indígenas devem ser geridas pela esfera federal. “Pensa-se que a escola deveria ser federalizada, só que nossa relação do dia a dia é com o município”.
Experiência do Amazonas
Alva Rosa, que é do povo Tucano, apresentou o contexto do Amazonas, que abriga 72 etnias, totalizando uma população indígena de 103 mil pessoas que falam 32 línguas diferentes. De acordo com ela, no estado já existem 785 escolas indígenas, onde estudam 57 mil alunos e também 45 escolas anexas, que são aquelas que funcionam dentro das aldeias. “Os desafios são grandes, principalmente porque o estado é muito extenso e tem uma logística difícil, para chegar nas aldeias é preciso passar por cachoeiras e rios”.
Segundo ela, o objetivo da gerência é assegurar às populações indígenas condições de acesso e permanência à escola e uma educação específica, diferenciada, intercultural, bilíngue, comunitária, de qualidade e que responda aos seus anseios.
Dentre as ações prioritárias estão a elaboração, análise e avaliação da política publica; assessoria técnica, pedagógica e administrativa para as secretarias municipais de educação; e produção e publicação de material didático. No âmbito da formação docente, Ana Rosa destaca o projeto Pirayawara, que já formou 400 professores de duas etnias e foi pactuado com quatro municípios e está formando outros 1.268 professores de 35 etnias, pactuado com 36 municípios. “Avançamos, mas ainda faltam 35 etnias. É um projeto que depende muito da vontade política das prefeituras”.
Por isso, a meta da gerência é ampliar a formação de professores, além de ampliar a formação continuada para os gestores indígenas e implantar o ensino médio integrado nas escolas. “Verificamos hoje que nas aldeias tem que funcionar o integrado para dar uma perspectiva para aquele estudante e isso requer muito recurso”. Ana Rosa explica que o plano da Seduc para garantir os investimentos necessários é pactuar tudo isso no Plano de Ações Articuladas (PAR), que é um plano opcional gerido pelo MEC do qual cada secretaria municipal ou estadual de educação decide participar.
Outro destaque no Amazonas é a discussão da aprovação da categoria do Professor Indígena. “Ainda não acontece e é um desafio grande, já iniciamos a discussão para que haja concurso público para professores indígenas, porque houve concurso, mas não específico para indígenas”.
Ana Rosa considera a constituição de territórios étnico-educacionais (TEEs) um grande avanço. “Conseguimos pactuar seis territórios e estamos indo para o sétimo. TEE Rio Negro, Baixo Amazonas, Juruá/Purus (área de difícil acesso), Médio Solimões, Alto Solimões e Vale do Javari.
Dentre as ações da gerência, Ana Rosa destacou ainda a participação no projeto-piloto de formação técnica dos AIS do Alto Rio Negro, em parceria com a Fiocruz. “Ficamos responsáveis por oferecer o ensino médio e possibilitar, assim, a elevação de escolaridade compatível com a formação técnica. Iniciamos o primeiro ano e já executamos duas etapas para 250 agentes de saúde de 23 etnias em três municípios”.
Por Maíra Mathias
(Secretaria de Comunicação da RET-SUS)