Os caminhos do cuidado de usuários de crack [1]
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Os caminhos do cuidado de usuários de crack
Necessidade de formação de recursos humanos no cuidado ampliado e humanizado de dependentes químicos é foco da RET-SUS
Katia Machado e Jéssica Santos
O número de pessoas usuárias de crack — droga com alto nível de dependência — é cada vez maior, sobretudo nas capitais brasileiras, o que implica falar em epidemia do entorpecente. Segundo o estudo Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 50 mil crianças e adolescentes das capitais do país — ou seja, 13% — são usuárias de crack (ver box pág. 12). Ao todo, o Brasil soma 370 mil pessoas dependentes desta ou de drogas com base em cocaína fumada (pasta-base, merla e oxi), o que representa 35% do total de consumidores de drogas ilícitas (1,35 milhões), com exceção da maconha. Para fazer frente a este cenário, em outubro do ano passado, o Ministério da Saúde, em parceria com o Grupo Hospitalar Conceição (GHC), de Porto Alegre, e o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), por meio de convênio com o Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Deges/Sgtes/MS), lançou o Projeto Caminhos do Cuidado, voltado para a formação em saúde mental (crack, álcool e outras drogas) dos agentes comunitários de saúde e auxiliares e técnicos em enfermagem da Atenção Básica e da Estratégica Saúde da Família (ESF).
A proposta, iniciada por Acre, Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal, seguidos pelo restante dos estados brasileiros, integra o programa do governo federal Crack, É Possível Vencer, lançado em 2011, e inspira-se no lema da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental — Cuidar sim. Excluir, não! —, realizada em dezembro de 2001, tendo como meta capacitar 290.760 mil profissionais de saúde até o fim deste ano de 2014. Com um investimento de R$ 115 milhões, Caminhos do Cuidado desenvolve-se em articulação com as instituições do SUS protagonistas da formação desses trabalhadores, entre elas escolas técnicas, centros formadores de recursos humanos do SUS e escolas de Saúde Pública que integram a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS).
Descentralização, princípio norteador
A iniciativa se dá em três etapas: 80 orientadores de aprendizagem, capacitados por meio de uma oficina de formação pedagógica com 24 horas de aula, formam cerca de 1.400 tutores, por meio de curso com 40 horas de formação presencial e 80 horas de Educação a Distância (EaD), e estes formam os agentes comunitários de saúde e auxiliares e técnicos em enfermagem da Atenção Básica, que participam de uma capacitação de 60 horas, sendo 40 horas presenciais e 20 horas de dispersão.
Cabe às escolas integrantes da RET-SUS a última etapa de formação, em execução Brasil a fora. “A proposta encontra justificativa na necessidade de discutirmos um processo de educação permanente para os agentes comunitários de saúde e auxiliares e técnicos em enfermagem em todo o território. Como essa é uma tarefa muito grande, tomamos a decisão de centralizar a administração do projeto e suas diretrizes, por meio da parceria entre GHC, Ictic e MS, e de descentralizar as ações de formação entre as escolas da RET-SUS”, revelou a coordenadora de Educação Permanente do Deges, Mônica Durães, durante a abertura da Oficina Pedagógica de Tutores de Aprendizagem do Projeto Caminhos do Cuidado, realizada em fevereiro, em Belo Horizonte (MG). Ela informou que, em Minas Gerais, por exemplo, os parceiros nessa ação são a Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais (ESP-MG) e a Escola Técnica de Saúde da Universidade Estadual de Montes Claros (ETSUS Unimontes).
A formação em saúde mental proposta pelo projeto prioriza o vínculo entre profissionais e usuários do SUS para conseguir diminuir o uso de drogas, o que implica encontrar caminhos múltiplos de cuidado, diante da diversidade e da complexidade social e cultural que atravessam as relações humanas. Nesse contexto, cujo foco é a Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, norteado pela redução de danos aos usuários de drogas ilícitas, o curso oferece um conjunto de estratégias e conhecimentos em saúde mental, acolhimento e cuidado integral do usuário.
Os objetivos da formação é fazer com que o aluno aproprie-se do processo de reforma psiquiátrica e da política de saúde mental, com ênfase na rede de atenção psicossocial, na reintegração social e na cidadania das pessoas usuárias de álcool e outras drogas, discutir e construir o papel do agente comunitário e do auxiliar e técnico em enfermagem da Atenção Básica para o cuidado em saúde mental, conforme especificidade de cada território, qualificando o olhar e a escuta para dar visibilidade à questão das drogas, e ampliar a caixa de ferramenta desses profissionais do SUS para o cuidado em saúde mental e a construção de territórios de paz.
Perfil profissional
Selecionados por currículo, os orientadores são profissionais de nível superior com pós-graduação em áreas como Saúde Mental, Saúde Coletiva, Saúde Pública, Atenção Básica, Educação ou Ciências Sociais. Eles têm experiência profissional mínima de dois anos na área de Saúde Mental e/ou Atenção Básica, em ensino, gestão ou serviço, bem como conhecimento em Educação a Distância (EaD).
Os tutores, por sua vez, são profissionais com nível superior em Saúde e experiência de, pelo menos, um ano em Atenção Básica ou Saúde Mental. Em média, são dois tutores para cada turma de 40 alunos, assim como equipes de orientação pedagógica e coordenação para todos os estados. A formação desse grupo é dividida em cinco etapas e faz uso da chamada metodologia de aprendizagem ativa, por meio da qual o tutor ativa o processo e o material pedagógico.
Por fim, os 290.760 agentes comunitários de saúde e auxiliares e técnicos em enfermagem são capacitados em seus territórios, de forma descentralizada, respeitando os pactos realizados com as instituições de ensino dos estados, em sua maioria, integrantes da RET-SUS.
O projeto conta, ainda, com uma equipe nacional, composta por um grupo condutor — este composto, após decisão coletiva tomada em reunião realizada, em Brasília, em 12 de março, por representantes das ETSUS —, coordenações executiva e macrorregionais, núcleo pedagógico e equipes de comunicação, infraestrutura, de apoio acadêmico e estaduais — formadas por um coordenador de nível superior, com experiência mínima de seis anos na área de gestão ou coordenação de projetos, com a responsabilidade de elaborar, acompanhar e avaliar os cronogramas de formação no estado.
Epidemia do crack: isso é real?
Com os propósitos de delinear o perfil da população usuária de crack e outras formas similares de cocaína fumada (pasta base, merla e “oxi”) e de diminuir a carência de indicadores e informações sobre o tema no país, foi divulgado pelos ministérios da Saúde e Justiça, em setembro de 2013, o estudo Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país. A pesquisa foi encomendada pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad) à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no âmbito do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, instituído pelo Decreto n°7.179, em maio de 2010.
Coordenado pelos pesquisadores do Instituto de Comunicação e Informação Cientifica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) Francisco Inácio Bastos e Neilane Bertoni, o estudo se destaca por apresentar dados de populações consideradas de difícil acesso. “Estimar a magnitude de populações denominadas de difícil acesso ou ocultas, como é o caso dos usuários de drogas, é imprescindível, pois a dimensão dessas populações interfere diretamente em como as políticas públicas devem ser desenhadas, focalizadas, financiadas e monitoradas”, informa o texto introdutório do Livreto Domiciliar, uma publicação que traz a pesquisa na íntegra (disponível para download no site da Fiocruz - www.fiocruz.br).
Na observação de Neilane, esta foi a maior pesquisa já realizada no mundo, uma vez que esse tipo de levantamento, geralmente, é realizado em uma única comunidade, cidade ou pequeno grupo. “No inquérito domiciliar, entrevistamos aproximadamente 25 mil pessoas da população em geral — não necessariamente usuários de drogas, mas um número bastante grande —, de modo a termos a adequada precisão estatística. Em relação aos usuários de crack que entrevistamos nas próprias cenas de uso da droga, foram realizadas 7.381 entrevistas no país como um todo”, revela em entrevista publicada na página eletrônica do Icict (www.icict.fiocruz.br), em 8/10/2013.
O trabalho mostra que os usuários regulares somam 370 mil pessoas nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal. A proporção do consumo do crack em relação ao uso total de drogas ilícitas (com exceção da maconha) apresenta variações entre as regiões. Nas capitais do Norte, o crack e/ou similares representam 20% do conjunto de substâncias ilícitas consumidas. Já, no Sul e no Centro-Oeste, a substância corresponde a 52% e 47%, respectivamente. “Ao contrário do que se pensava, de o Sudeste ser a região com maior número de usuários, o que encontramos é o Nordeste como a região brasileira cujas capitais têm maior prevalência/proporção de usuários, estatisticamente igual à região Sul”, informa Bastos.
Em números absolutos, o Nordeste tem aproximadamente 148 mil usuários de crack/similares nas suas capitais, enquanto o Sul, 37 mil. O levantamento revela, ainda, que entre os 370 mil usuários de crack e/ou similares 14% têm menos de 18 anos, o que significa que aproximadamente 50 mil crianças e adolescentes usam regularmente essa substância nas capitais do país. “Cabe observar que, qualquer consumo de uma droga cujas consequências são sabidamente graves por parte de crianças e adolescentes constitui um achado particularmente preocupante”, orienta o Livreto Domiciliar. De acordo com a publicação, a faixa etária de menores de 18 anos inclui grupos onde o consumo de crack é nulo (por exemplo, bebês menores de 1 ano) ou muito baixa/praticamente zero (por exemplo, crianças até 8 anos). “Isso significa que, se fossem excluídas todas essas crianças de idade bastante baixa, o consumo proporcional por parte de adolescentes seria mais relevante e elevado, ainda que menor do que o consumo por parte de adultos”, adverte a publicação.
Segundo Neilane, o perfil dos usuários é de pessoas em situação de grande vulnerabilidade social, muitos em situação de rua e sem trabalho regular. Por isso, além de criticar a internação compulsória, a pesquisadora defende o respeito à vontade dos usuários em fazer o tratamento. “Sem suporte social, essas pessoas não têm a oportunidade de reencontrar um caminho de bem estar. Não se busca necessariamente a abstinência da droga. O que se pretende com o tratamento é que o uso (ou não) da droga não interfira no dia a dia da pessoa, que ela possa trabalhar, estudar, conviver com seus amigos e familiares”, observa.
Metodologia inédita
A metodologia utilizada no estudo Network Scale-up Method (NSUM) é capaz de estimar de forma mais precisa quaisquer populações de difícil acesso, ditas “invisíveis”, sem se limitar a extrapolações de populações conhecidas e sem restrições quanto à estimativa de pessoas detidas, hospitalizadas ou vivendo em locais abrigados. “Isto é possível, pois se trata de um método indireto, ou seja, não se pergunta diretamente ao respondente/entrevistado sobre seu próprio comportamento, e sim sobre o comportamento de outros indivíduos pertencentes à rede de contatos do respondente, residentes do mesmo município”, explica o Livreto.