Quando estagiava no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, durante o curso de Qualificação Profissional em Auxiliar de Enfermagem da Escola de Formação Técnica em Saúde Enfermeira Izabel dos Santos (ETIS), Leila Márcia da Silva percebeu que os alunos da ETIS recebiam tratamento preconceituoso e menos atencioso do que o dado a estagiários vindos de escolas particulares. A partir dessa experiência, Leila desenvolveu o trabalho ‘Interfaces do estágio supervisionado: do público ao privado’, no qual abordou também as dificuldades enfrentadas pela escola pública na obtenção de convênio com hospitais do SUS, o que estaria gerando, segundo ela, a “exclusão gradativa do público no público” e ainda a “privatização indireta do setor público”. Para desenvolver melhor a discussão teórica sobre a relação entre público e privado na sociedade capitalista, a aluna usou como bibliografia os autores Pablo Gentile, Herbert de Souza e Eva Maria Lakatos.
Tratamento desigual
Visando analisar melhor como os outros alunos se sentiam no ambiente de estágio, Leila distribuiu questionários nos quais eles podiam descrever as dificuldades de relacionamento encontradas. De uma amostragem de 28 alunos da sua turma, apenas oito responderam às perguntas propostas, o que, na sua opinião, demonstra que eles têm receio de se expor no local de trabalho. Ao abordar a dificuldade das escolas na obtenção de convênios, o trabalho sugere que o grande problema são as exigências, às vezes indiretas, feitas pelos hospitais do SUS para que os alunos possam estagiar, como a doação de materiais ou equipamentos e a contratação de profissionais da própria rede para atuarem como supervisores. Segundo Leila, como as escolas públicas têm dificuldades financeiras, os alunos do setor privado, através desse tipo de pacto informal, entram com mais facilidade no campo de estágio. “Essa prática acarreta a exclusão gradativa da participação do público no público e o aumento de privilégios do setor privado”, diz. Isso gera enorme discrepância entre o número de alunos de escolas públicas e privadas nos hospitais do SUS. “Normalmente a escola pública consegue convênios em postos de saúde por meio de acordos políticos e pessoais, ou seja, conhecendo profissionais lá de dentro”, acrescentou.
O trabalho também traz citações dos alunos sobre o mau tratamento no estágio . Eles foram unânimes na afirmação de que, na maioria dos plantões, passaram por situações constrangedoras e presenciaram atitudes excludentes, como a divisão desigual de material – luvas, por exemplo – e até da quantidade de pacientes a serem tratados. “Como os alunos das escolas particulares pagavam, podiam reservar algumas áreas e ganhar material exclusivo”, conta Leila. Uma frase chama a atenção no trabalho: “Pediram para que nos retirássemos para deixar o campo livre para uma escola privada”. Leila confirmou a declaração e relatou que, quando isso não acontecia, os alunos da ETIS, que sempre chegavam duas horas antes ao campo de estágio, eram obrigados a deixar mais da metade dos leitos com pacientes para que os estudantes das outras escolas cuidassem. “O nosso grupo, de dez alunos, tinha dois pacientes, e o deles, de oito, ficava com oito leitos”, disse.
O questionário aplicado perguntava aos alunos da ETIS se eles deveriam ter acesso privilegiado aos hospitais do SUS, por já serem do setor público. “Sim, porque já somos da casa. É incrível que quem vem de fora tenha mais privilégio do que qualquer um da rede pública”, respondeu um dos alunos. Leila, porém, acha que as escolas devem ter entrada igualitária, já que o SUS é para todos. “Não tem cabimento as escolas particulares precisarem pagar por vantagens, nem as públicas darem dinheiro para o próprio setor público. Por outro lado, precisamos entender que os hospitais do SUS cobram porque estão em uma situação precária e, portanto, realmente precisam de melhorias na sua estrutura”, esclareceu.
Estudo engajado
O trabalho também propõe soluções. Uma das sugestões é que a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS) desenvolva políticas junto ao Ministério da Saúde, ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) e aos Conselhos Municipais de Saúde, para que as Escolas possam ter o acesso merecido aos hospitais do sistema que elas próprias integram. “É importante que as Escolas verifiquem se o problema enfrentado pelos alunos da ETIS se repete em outros estados. É preciso lutar pelo aumento de convênios e pela melhoria das condições dos hospitais do SUS para que eles próprios não precisem recorrer a cobranças”, incentivou Leila. Na opinião de Ana Jesuíno, professora orientadora do trabalho, esses dados mostram que os profissionais de saúde não conhecem a missão e a importância das ETSUS.
A aluna levou seu trabalho, em forma de pôster, para o 58° Congresso Brasileiro de Enfermagem, que aconteceu em Salvador, em novembro do ano passado, já após o término do curso de Auxiliar de Enfermagem. Leila, que em abril terminará a complementação para o técnico, contou que houve muita discussão em torno do tema. Segundo ela, o mais interessante foi descobrir que a diferença de tratamento em hospitais também ocorre entre alunos de escolas privadas, de acordo com o poder aquisitivo. Segundo Ana Jesuíno, a ida a eventos científicos é uma oportunidade de o aluno articular a prática com a reflexão e, a partir daí, reconhecer a importância de lutar por mudanças. “A ETIS estimula a participação de seus alunos em congressos, pois lá eles experimentam a convivência com outros atores sociais, o que proporciona o seu desenvolvimento nas dimensões política, técnica e social”, explicou.
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