destaques

01/11/2006 Versão para impressãoEnviar por email

O desafio da Formação Técnica na Região Norte

As distâncias da região norte impressionam. Não é fácil chegar a todos os municípios onde as ETSUS oferecem cursos descentralizados. Às vezes, para se chegar a uma cidade, é preciso ficar horas na estrada, num barco ou num monomotor. Mas as Escolas Técnicas do SUS superam todas as adversidades. A ETSUS Roraima, por exemplo, tem uma parceria com a Universidade Virtual para realizar aulas inaugurais e, futuramente, cursos nos 15 municípios do estado. Já a Escola do Acre se aventura pelo interior do estado em teco-teco – avião monomotor –, barco e carros detração nas quatro rodas. Tudo para levar a educação técnica em saúde para as populações mais distantes do país.

Um dos desafios das ETSUS é incluir informações sobre a população indígena no plano dos cursos de formação inicial e técnica em saúde.Roraima, por exemplo, tem aproximadamente 40 mil índios, distribuídos em 259 aldeias, o que corresponde a 12 % da população do estado. Os municípios de Paracaima, Normandia e Uiramutã são exceções: 98% da população são formados por indígenas. Esses números mostram que é imprescindível que as políticas de saúde reconheçam as especificidades desse público. E, por isso, as Escolas Técnicas do SUS têm papel fundamental.

A ETSUS Roraima, por exemplo, planeja mudar o plano de curso de Agente Comunitário de Saúde. Atualmente o curso atende ao referencial curricular estabelecido pelos ministérios da Saúde e da Educação e inclui algumas especificidades locais, como a prevenção da malária, causa do alto índice de mortalidade infantil nas comunidades ribeirinhas. Mas a Escola quer mais. A idéia é que o curso contemple também assuntos referentes à realidade epidemiológica das populações indígenas. Segundo a diretora, Patrícia Ludmila, os ACS do estado ainda não são preparados para atuar nas comunidades de índios não aldeados. “A atenção à saúde dessa população necessita ser realizada de acordo com os padrões étnicos, costumes e tradições, modo e condições de vida. E isso incita uma preparação adequada de todos os profissionais de saúde da rede SUS, particularmente do Agente Comunitário de Saúde, devido às características do seu trabalho. Os ACS que atendem as populações indígenas das cidades devem conhecer as características de cada etnia”, afirma a diretora da ETSUS.

A Escola de Roraima também leva para o interior a atenção básica. Estão sendo formados Agentes Comunitários de Saúde nos 15 municípios do estado. “Reunimos os ACS em dez pólos de formação, de acordo com o que foi pactuado na Comissão Intergestora Bipartite. Em alguns pólos, unimos três municípios. Ao invés de gastarmos para dar aula para dez alunos em cada cidade, unimos 30 em um único lugar. O curso é oferecido nos fins de semana, atendendo a um pedido dos gestores municipais. E, devido às grandes distâncias do estado e à necessidade de ter esses profissionais em atividade durante a semana, os municípios oferecem transporte, alimentação e hospedagem para seus agentes comunitários”, conta Patrícia Ludmila, diretora da Escola.

Além de uma logística bem planejada, a Escola administra bem a verba que recebe do Ministério da Saúde para a formação inicial – são R$ 800 reais por ACS, R$ 100 a mais que as regiões sul, sudeste e centro-oeste. “Foi preciso fazer uma alteração no plano de curso porque tivemos que deslocar nossos professores mais vezes para o interior. Quando não temos professores locais, mandamos alguém da capital, que percorre cerca de 370 quilômetros. Isso significa aumento nos custos”, diz a diretora da ETSUS. Em Roraima, como em muitas outras ETSUS, um edital para contratação de docentes é aberto toda vez que um novo curso é oferecido. “Não temos um quadro fixo de professores. E o quadro técnico disponível se desdobra em diversas atividades, como a certificação de Agentes Indígenas de Saúde, a implantação do curso de Técnico em Higiene Dental e a organização dos cursos descentralizados de ACS. O que temos é uma equipe multidisciplinar de saúde dos quadros da Secretaria Estadual de Saúde”, explica Patrícia Ludmila.

Para tentar reduzir custos com deslocamento para regiões longínquas, a Escola fez uma parceira com a Universidade Virtual de Roraima (UNIVIRR),uma instituição vinculada à Secretaria Estadual de Educação, que possui uma plataforma de teleconferência nos 15 municípios do estado. “Cada cidade tem um centro multimídia equipado para realizar teleconferências. A ETSUS Roraima já utilizou essa tecnologia para a aula inaugural do ACS, na qual os alunos puderam interagir em tempo real. Futuramente, queremos usar a Universidade Virtual para reuniões, qualificações e cursos nas comunidades mais distantes da capital”, afirma a diretora.

Quando viajar é imprescindível, a equipe da ETSUS atravessa estradas sem asfaltamento, passa longas horas subindo e descendo os rios da região e, se a chuva cair, entra num avião monomotor. “Saímos da capital para fazer o acompanhamento pedagógico de certificação dos Agentes Indígenas de Saúde, em conjunto com a Funasa. Para chegar aos lugares mais distantes, usamos aviões, barcos e carros com tração nas quatro rodas. Nas zonas vicinais,que são áreas da zona rural dos municípios do interior do estado, quando chove é só barro e ninguém passa. Só é possível chegar de avião”, conta Patrícia, que diz ter disposição para fazer cada vez mais. “Nenhuma dessas dificuldades tem sido motivo para a equipe técnica da ETSUS Roraima desistir de for-mar os profissionais do SUS. Os problemas têm servido de estímulo para que continuemos defendendo e acreditando no poder de transformação da educação”, diz Patrícia.

A Escola Técnica em Saúde Maria Moreira da Rocha, no Acre, também não se deixa abater pelas dificuldades. Dependente de rodovias precárias e das condições meteorológicas da região norte, a ETSUS Acre faz uma ginástica para conseguir dar conta dos cursos descentralizados dos 22 municípios do estado. É preciso cobrir as cinco regionais: o Alto Acre; o Baixo Acre,que inclui a capital Rio Branco; o regional do Purus; Tarauacá-Envira e o Alto Juruá. “Tirando o Alto e o Baixo Acre, só podemos chegar às outras regionais de carro durante o verão amazônico, que vai de maio a outubro. Nessa época de estiagem dos rios, usamos a BR 364 para chegar a alguns municípios”, explica a diretora da ETSUS Acre Talita Lima.

O problema, segundo Talita, é que a BR 364 só é pavimentada até o município de Sena Madureira. “O resto é chão de barro e muita poeira”, brinca. “Uma equipe já chegou aqui na capital com lama nos cílios”, revela. Até a última cidade ao norte do estado, Cruzeiro do Sul, são 700 quilômetros que só podem ser atravessados com carro de tração nas quatro rodas. Cruzeiro do Sul tem a vantagem de ter aeroporto. Podemos ir de avião, mas custa caro. Uma passagem de ida e volta está em torno de R$ 400 reais por pessoa. Para outros municípios é ainda mais dispendioso. É necessário fretar um avião monomotor, um teco-teco, como chamamos, que custa cerca de R$ 6 mil reais e transporta apenas cinco passageiros”, conta a diretora.

E as viagens são freqüentes.“Nós vamos para os municípios do interior recrutar professores para os cursos de auxiliar de enfermagem, técnico de enfermagem e de agente comunitário de saúde. Depois das aulas em andamento, visitamos a cidade mensalmente para fazer o acompanhamento do curso. Esse deslocamento tem um custo muito alto. Por isso, nos municípios mais distantes, vamos a cada dois meses”, explica Talita Lima. Mas tudo pode se complicar caso o município não tenha profissionais capacitados para ministrar algumas matérias do curso.“No curso técnico de enfermagem, por exemplo, tivemos que deslocar professores da capital para trabalhar com os alunos os conteúdos de emergência e UTI. Foi caríssimo porque além de pagarmos a hora-aula, gastamos com passagem, hospedagem e alimentação”,conta a diretora.

Na época da chuva, a ETSUS utiliza um dos meios de transporte mais comuns da região: o barco. “Só podemos entrar no teco-teco na época da seca. Quando a chuva cai, vamos de barco, o que pode levar alguns dias de viagem”, avisa Talita. A navegação fluvial também é usada pelos alunos que moram na zona rural. A diretora cita o exemplo do que aconteceu durante o curso de auxiliar de enfermagem em Sena Madureira, quando alguns alunos que moravam em seringais ao longo do rio Iaco ficaram quase 24 horas num barco para chegar à sala de aula. “Nesse caso conseguimos que a Secretaria Municipal de Saúde custeasse a hospedagem. Os alunos, todos trabalhadores do SUS, foram liberados pelos gestores para passar dez dias por mês em Sena Madureira até o término do curso, que durou três meses”, conta a diretora da Escola.

Não é só no planejamento de viagens que a ETSUS Acre tem mérito. Os cursos também são pensados para atender as populações locais. “O primeiro passo é traçar o perfil epistemológico da comunidade. Quando, por exemplo, damos a aula de enfermagem obstétrica em comunidades indígenas, consideramos o fato de que a maioria dos partos é normal. Os estágios também refletem a realidade do local. Se tivermos índios como alunos,o estágio é feito na própria aldeia. Atendemos as especificidades locais sem deixar de formar o profissional de maneira geral”, diz Talita.

Esse trabalho é feito, por exemplo, com as comunidades indígenas e ribeirinhas de Santa Rosa do Purus. “Nas aulas, incluímos conteúdos como a prevenção da malária, do alcoolismo,da tuberculose e das doenças sexualmente transmissíveis”, conta a diretora da ETSUS. “Os ACS dessa região aprendem a promover a saúde nas aldeias, sempre respeitando as tradições indígenas”, explica Talita. Para criar o material complementar dos cursos descentralizados, a Escola conta com a ajuda dos professores locais. “Eles conhecem muito bem as comunidades e, no processo de capacitação, nos informam as especificidades de cada comunidade. Com essas informações, fazemos na capital todas as apostilas e mandamos tudo por avião”, diz a diretora.

Comentar