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Os caminhos da Atenção Básica à Saúde

Porta de entrada do SUS e centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde, a atenção básica tem como função ordenar e coordenar o cuidado.

Jéssica Santos

Quando Jovina Dornelles, agente comunitária de saúde (ACS), chega à comunidade Vila Sossego, em Porto Alegre (RS), logo é notada e abordada pelos moradores em busca de esclarecimentos sobre suas condições de saúde. “Esta comunidade sofre com condições precárias de infraestrutura e limpeza”, conta a agente, sempre muito simpática. De acordo com ela, falta à Vila Sossego serviços de saneamento básico, coleta de lixo e iluminação pública, o que faz de seu trabalho na Unidade Básica de Saúde Santa Cecília, a qual está vinculada, ainda mais desafiante. “Toda vez que chove, as casas alagam. A principal demanda deles é por habitação”, disse em sua apresentação, durante o 4º Seminário Internacional de Atenção Primária a Saúde, realizado entre os dias 31 de julho e 2 de agosto, em Porto Alegre. (ver box na página 17)
A atuação de Jovina expressa os avanços e os desafios da Atenção Primária à Saúde (APS) frente aos determinantes sociais. Segundo especialistas e defensores do Sistema Único de Saúde (SUS), a APS — ou Atenção Básica à Saúde (ABS), terminologia adotada pelo governo brasileiro, que passou a denominar assim suas secretarias e documentos oficiais, uma vez que a palavra “primária” remeteria ao sentido de elementar ou rudimentar, e não principal ou primeiro — deve cumprir o papel de uma das portas de entrada mais importantes do SUS e atender a 80% dos problemas de saúde da população.
De acordo com a Portaria 2.488, de outubro de 2011, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), a ABS se caracteriza “por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e manutenção da saúde, com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades”.
A norma esclarece que a Atenção Básica deverá ser “desenvolvida por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações”. O diretor do Departamento de Atenção Básica da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde (DAB/SAS/MS), Hêider Pinto, lembra, porém, que a portaria orienta a política, mas não limita as ações deste nível da atenção. “Temos que compreender que a Portaria 2.488/2011, ao substituir a Portaria 648/2006, reúne a maior quantidade de disciplinas para normatizar a ABS. Contudo, o conjunto de ações que compõem a PNAB a excede, consoante os desdobramentos e amadurecimento da própria política”, esclarece.

Porta de entrada do SUS

Segundo orienta a PNAB, a Atenção Básica deverá ser o contato preferencial dos usuários e o centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde (RAS). Entre as funções da ABS na rede, destaca-se a de coordenação do cuidado, que se desdobra em “elaborar, acompanhar e gerir projetos terapêuticos singulares, bem como acompanhar e organizar o fluxo dos usuários entre os pontos de atenção das RAS”.
O médico sanitarista Gilson Carvalho, assessor do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e colaborador do Instituto de Direito Sanitário (Idisa), onde publicada suas Domingueiras — textos opinativos e críticos que se tornaram referência na área da Saúde Pública —, defende o fortalecimento da Atenção Básica como caminho para melhorar a saúde da população e avançar com o SUS. “A atenção básica é ordenadora e coordenadora do cuidado. Mas, não posso dizer que é isso que está acontecendo. Nós estamos ainda distantes disso, mesmo depois de 25 anos de criação do SUS”, afirma. Na Domingueira do dia 25 de agosto, intitulada A saúde pública no Brasil, Carvalho aponta, ao fim do texto, treze pontos que poderão melhorar a saúde dos brasileiros e fortalecer o SUS no governo da presidenta Dilma Rousseff. O primeiro ponto, escreve, “é incrementar as ações de proteção e promoção da saúde e prevenção de doenças”, inerentes à ABS.
Para Ligia Giovanella, médica e pesquisadora do Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde, do Departamento de Planejamento e Administração em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Nupes/Daps/Ensp/Fiocruz), ainda que se percebam melhorias no acesso ao SUS, são latentes a precariedade e a desigualdade regional quando se trata de serviços de saúde. “As principais dificuldades de acesso estão relacionadas ao financiamento irrisório do SUS, à descontinuidade da atenção decorrente da inexistência de uma política nacional de atenção especializada, à infraestrutura precária das Unidades Básicas de Saúde e à baixa disponibilidade de pessoal com formação adequada para atuar na atenção primária”, enumera.
Ela ressalta que a falta de garantia de continuidade da atenção após o acesso a uma unidade básica de saúde é uma questão que precisa ser enfrentada com urgência. “A expansão de cobertura da Estratégia Saúde da Família, foco da atenção básica, obriga a reorganização da rede assistencial para garantir o acesso integral com ampliação e reordenamento da oferta de atenção especializada. O acesso oportuno a procedimentos solicitados de acordo com as linhas de cuidado e a protocolos clínicos adequados — com base em evidências científicas, sem interferência da indústria farmacêutica e de equipamentos — é crucial para a resolutividade da atenção básica”, orienta.
Na avaliação de Ligia Bahia, médica e professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ISC/UFRJ), é importante que a atenção básica não seja um programa vertical isolado. “A ABS se apresenta, hoje, como um programa focalizado, para determinado tipo de população, sem ter relação com os principais níveis de atenção. A atenção básica é uma porta de entrada sem porta de saída”, critica.
A consolidação da Atenção Básica, como aponta Hêider Pinto, depende da ampliação do acesso aos serviços, reduzindo o tempo de espera, e da garantia da atenção, em especial, aos grupos vulneráveis. O diretor do DAB afirma que entre as principais ações nesse sentido merecem destaque o investimento nas equipes de Saúde da Família, com diferentes cargas horárias, e nas estratégias de atenção a grupos vulneráveis, como os Consultórios na Rua — cujo propósito é oferecer ao segmento de usuários de substâncias psicoativas em situação de maior vulnerabilidade a disponibilização de recursos para os cuidados básicos de saúde, atendendo-os em seus locais de permanência e encaminhando as demandas mais complexas para a rede de saúde — e as Equipes Fluviais de Saúde — para atender à população ribeirinha da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão) e Pantanal Sul Mato-Grossense.
Hêider reconhece que o sucesso da área depende também de mais investimentos. Apesar do aumento inédito que o Piso da Atenção Básica (PAB) ganhou em três anos, saltando de R$ 9,7 bilhões, em 2010, para R$ 16,1 bilhões, em 2013 — aumento de 66% —, os recursos do governo federal repassados aos municípios são ainda insuficientes.  Não à toa que a sociedade organizada insiste no tema, a exemplo do Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública, conhecido como Saúde +10, que pleiteia a aprovação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular que propõe o repasse de 10% da receita corrente bruta da União para a saúde, e a defesa pelo texto da lei, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, que destina 25% dos royalties do petróleo para investimentos da área da Saúde.
Na avaliação de Ligia Giovanella, os recursos públicos alocados na Saúde são baixos, tendo em vista a riqueza nacional e a obrigação constitucional de garantia de direito universal. “Recursos adicionais da União são imprescindíveis para apoiar a reorientação do modelo de atenção na direção de uma rede de atenção ordenada pela APS”, recomenda, apontando os setores a serem investidos. “Estes recursos devem ser aplicados na implantação de unidades básicas de saúde com estrutura e equipamentos adequados e na formação clínica dos médicos para atuação em atenção primária e dos enfermeiros das atuais equipes de saúde da família, bem como na implantação e manutenção regionalizada de laboratórios, centros de especialidades e procedimentos especializados (definidos a partir de planos estaduais e regionais, conforme necessidade de atenção e parâmetros nacionais), na recuperação de hospitais públicos e numa política nacional que amplia a disponibilidade de medicamentos na atenção básica e no SUS”, enumera.      
Hêider Pinto destaca alguns avanços nesse sentido, como a criação, em 2011, do componente de investimento na qualificação da estrutura e informatização das unidades básicas de saúde, chamado Requalifica UBS, e os novos critérios, como número de habitantes, população em extrema pobreza, beneficiária do Programa Bolsa Familia, densidade demográfica e menor PIB per capita, mantendo o incentivo que induz a implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF), que passaram a orientar a forma de repasse do PAB. “Além disso, a partir de 2013, parte dos recursos da ABS serão repassados diretamente aos profissionais do Programa Mais Médicos, que completam as equipes de Saúde da Família sem médicos ou compõem novas equipes, sendo mais um esforço de expansão da cobertura e do acesso aos serviços”, anuncia.
Na mesma direção, segue o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), proposto pelo Ministério da Saúde, em 2011, para induzir a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade por meio de processos que ampliam a capacidade das gestões federal, estaduais e municipais e as equipes de atenção básica. “O principal objetivo do programa é construir um processo de cultura de negociação e pactuação entre gestores e trabalhadores. Não basta que o gestor queira aderir ao programa, receber mais recursos, avaliando as suas equipes. É necessário que essas equipes negociem e façam uma adesão voluntária, porque elas é que serão avaliadas ao longo do processo”, explicou Alexandre de Souza Ramos, enfermeiro e diretor adjunto do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde (DAB/MS).
Ramos participou de uma mesa sobre o PMAQ-AB, durante o 4º Seminário Internacional de Atenção Primária à Saúde. Ele apresentou as quatro fases do programa: adesão e contratualização; desenvolvimento; avaliação externa; e recontratualização. A primeira fase consiste na adesão formal ao programa, feita pelo gestor municipal. “Ele diz com quantas equipes quer participar, a partir de acordos feitos com os próprios trabalhadores. É preciso saber se as equipes têm condições de, em seis meses, estruturar novos processos de trabalho de cuidado na unidade básica e, com isso, serem submetidos ao processo de avaliação externa”, orientou. A segunda etapa consiste no desenvolvimento de ações, empreendidas pelas equipes de atenção básica, pelas gestões municipais e estaduais e pelo Ministério da Saúde, com o intuito de promover a melhoria do acesso e da qualidade dos serviços ofertados à população. A terceira fase diz respeito à avaliação externa, que averiguará as condições de acesso e de qualidade da totalidade de municípios e de das equipes da atenção básica participantes do programa. E, finalmente, a quarta fase é constituída por um processo de pactuação singular das equipes e dos municípios com o incremento de novos padrões e indicadores de qualidade, estimulando a institucionalização de um processo cíclico e sistemático a partir dos resultados alcançados pelos participantes do PMAQ-AB.
Hêider Pinto anuncia que o Ministério da Saúde já está preparando um informe, previsto para o primeiro trimestre de 2014, trazendo os resultados do segundo ciclo de avaliações do PMAQ-AB. “O primeiro ciclo foi realizado em 2011 e o segundo, que inicia em outubro, será concluído ainda em 2013. Além de acompanhar 40 indicadores de saúde, o programa avalia e acompanha mais de 500 padrões de qualidade que são verificados e avaliados in loco”, revela. Para o diretor do DAB, essa é umas das principais formas de o Ministério da Saúde acompanhar e qualificar as estratégias. “É a maior avaliação do mundo desse gênero, envolvendo mais de 50 universidades e que vem sendo acompanhada, com entusiasmo, pela Organização Mundial da Saúde (OMS)”, comemora.

Articulação, palavra de ordem

Para que as ações da atenção básica tenham maior efetividade, elas precisam estar articuladas com outras políticas públicas, a exemplo do Programa Saúde na Escola (PSE), lançado em 2007, da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), aprovada em 1999 e revista em 2011, e do Programa Brasil Sem Miséria, que focaliza a melhoria da renda e das condições de vida, a inclusão social, o aumento da empregabilidade, a ampliação de direitos e o acesso a serviços públicos, integrando diversos ministérios.
O PSE, segundo Hêider, envolve os ministérios da Saúde e da Educação, com foco no desenvolvimento da cidadania no espaço da escola por meio de práticas de promoção, prevenção da saúde e construção de uma cultura de paz. “A PSE interfere em condicionantes e determinantes de saúde”, cita, informando que o programa visa à promoção de hábitos saudáveis e da cultura de paz e à prevenção do uso de drogas e identifica, precocemente, problemas de saúde nas crianças e adolescentes. Já a PNAN tem como propósito a melhoria das condições de alimentação, nutrição e saúde da população, mediante a promoção de práticas alimentares adequadas e saudáveis. “A nova PNAN, de 2011, desenvolveu ações importantíssimas junto à indústria de alimentos, como a redução de sódio e gorduras nos alimentos, além de estreitar a relação da saúde com o Programa Bolsa Família, buscando garantir uma inclusão social não só na renda, mas também com foco no direito à saúde”, exemplifica. 

Marco histórico

A história da organização de serviços de saúde orientados pela Atenção Primária é marcada por uma trajetória de sucessivas reconstruções até se consolidar como uma política de reforma de superação da permanente crise dos sistemas de saúde contemporâneos. Para alguns estudiosos do tema, a noção de APS remete ao Relatório Downson, elaborado pelo Ministério da Saúde do Reino Unido, em 1920. Este documento organizou o modelo de atenção em centros de saúde primários e secundários, serviços domiciliares e hospitais de ensino. A Atenção Primária surge na época em contradição a outro documento, escrito em 1910, por Abraham Flexner, sobre as escolas médicas norte-americanas. O relatório Flexner, como ficou conhecido, tinha um cunho curativo, baseado no reducionismo biológico e na atenção individual.
De acordo com o Dicionário da Educação Profissional em Saúde, no verbete Atenção Primária à Saúde, escrito por Gustavo Matta e Márcia Valéria Morosini, os centros de saúde primários e os serviços domiciliares deveriam ser organizados de forma regionalizada e a maior parte dos problemas de saúde deveria ser resolvida por médicos com formação geral. “Os casos que o médico não tivesse condições de solucionar com os recursos disponíveis nesse âmbito da atenção deveriam ser encaminhados para os centros de atenção secundária, onde haveria especialistas das mais diversas áreas, ou, então, para os hospitais, quando existisse indicação de internação ou cirurgia. Essa organização caracteriza-se pela hierarquização dos níveis de atenção à saúde”, escrevem.
São características inerentes à APS, segundo os autores do verbete, a regionalização — serviços de saúde organizados de forma a atender as diversas regiões nacionais — e a integralidade — voltada para o fortalecimento da união entre ações curativas e preventivas. “Este arranjo teórico forneceu, posteriormente, a base para a reorganização dos serviços de saúde em muitos países, os quais agora possuem níveis claramente definidos de atenção, cada um com um setor de atenção médica primária identificável e em funcionamento”, acrescenta Bárbara Starfield, no livro Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. 
No artigo Atenção Básica e Atenção Primária à Saúde - origens e diferenças conceituais, publicado na Revista APS (volume 12, nº 2), de abril a junho de 2009, Guilherme Arantes Mello, Bruno José Barcellos Fontanella e Marcelo Marcos Piva Demarzo, à época, professores do Núcleo de Medicina de Família e Comunidade do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, escrevem que o termo Atenção Primária à Saúde (em inglês, Primary Health Care) foi descrito, pela primeira vez, no início da década de 70, nas páginas da revista Contact, da Comissão Médica Cristã (CMC), ligada ao Conselho Mundial de Igrejas e Federação Mundial Luterana. “A CMC, com larga experiência em países em desenvolvimento, assumia a defesa da intervenção no nível local das comunidades, com o treinamento de agentes de saúde e métodos acessíveis, ao perceber que as ações missionárias, em sua maioria baseada em hospitais, apresentavam baixo impacto na saúde da população. Essa instituição foi responsável pela apresentação de várias experiências em saúde básica para a Organização Mundial da Saúde (OMS), e, em 1974, foi chamada para estabelecer uma colaboração formal nas discussões sobre APS”, destacam.
O grande marco da Atenção Primária data o ano de 1978, com a 1ª Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde em Alma-Ata, no Cazaquistão, antiga União Soviética. Realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a conferência reuniu 134 países que discutiram um acordo para atingir o maior nível de saúde possível, até os anos 2000, por meio da APS, resultando em uma política internacional intitulada Saúde para Todos no Ano 2000.
A Declaração de Alma-Ata definiu a Atenção Primária como “cuidados essenciais à saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentados e socialmente aceitáveis, colocados ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação”. A APS é parte integrante do sistema de saúde do país e representa o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, “pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde”, escreve o documento.
Além de enfatizar a saúde como um direito humano, Alma-Ata propôs serviços de saúde locais e centrados nas necessidades da população. “A conferência especificou que os componentes fundamentais da atenção primária à saúde eram educação em saúde, saneamento ambiental, especialmente de águas e alimentos, programas de saúde materno-infantis, inclusive imunizações e planejamento familiar, prevenção de doenças endêmicas locais, tratamento adequado de doenças e lesões comuns, fornecimento de medicamentos essenciais e promoção de boa nutrição e medicina tradicional”, enumera Bárbara Starfield
Ainda, segundo o verbete do Dicionário da Educação Profissional em Saúde, apesar de as propostas apresentadas pela Declaração de Alma-Ata não terem sido alcançadas, o conceito de APS influenciou reformas sanitárias em diversos países nas décadas de 1980 e 1990, inclusive no Brasil. No entanto, com os avanços das políticas neoliberais, a ideia foi desfigurada. “Muitos países e organismos internacionais, como o Banco Mundial, adotaram a APS numa perspectiva focalizada, entendendo a atenção primária como um conjunto de ações de saúde de baixa complexidade, dedicada a populações de baixa renda, no sentido de minimizar a exclusão social e econômica decorrentes da expansão do capitalismo global, distanciando-se do caráter universalista da Declaração de Alma-Ata e da ideia de defesa da saúde como um direito”, orienta o texto.
O médico sanitarista Gastão Wagner de Souza Campos, professor e pesquisador do Departamento de Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, propõe duas formas “polares” de se compreender a APS. “Uma é originada na Europa, nos anos 20, e pensa a Atenção Primária como parte de um Sistema Nacional e Público de Saúde. Segundo essa concepção, a Atenção Primária operaria com o conceito de integração sanitária, ou seja, desenvolveria atividades tanto de promoção e prevenção quanto de atenção clínica. Além disso, deveria variar sua complexidade de região para região. O cuidado ocorreria em consultórios, na comunidade, em residências e instituições e funcionaria de forma integrada a outros níveis de atendimento, em rede. Já a segunda concepção tem origem nos Estados Unidos e pensa a rede básica — os centros de saúde — como braço da Saúde Pública ou da Promoção à Saúde. Nesse caso, atenderia populações pobres ou com alto risco sanitário e priorizaria ações de promoção, prevenção e os programas de saúde”, explica. Segundo Gastão, a Atenção Básica à Saúde brasileira, que se concentra na Estratégia de Saúde da Família, “em teoria”, se alinha com a primeira corrente.
De acordo com a enfermeira Ana Luisa Barros, em sua dissertação A condução federal da política de atenção primária à saúde no Brasil: continuidades e mudanças no período de 2003 a 2008, defendida na Escola de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), os primeiros centros de saúde brasileiros foram implantados em São Paulo, em 1925. “Esta nova forma de organização tinha como principais defensores os ‘jovens turcos’, sanitaristas vinculados ao Departamento Nacional de Saúde Pública que defendiam a mudança do modelo assistencial público vigente — baseado na campanha e na polícia sanitária — para um modelo de cunho mais educativo e preventivo, de modo a criar uma ‘consciência sanitária’ dos cidadãos, pois acreditavam que só assim seria possível superar as mazelas sanitárias do país” escreve. Nesse contexto, afirma Ana Luisa, surgem novos princípios organizacionais e metodologias, com destaque para a subdivisão das cidades em distritos sanitários e ação das equipes de enfermeiras visitadoras, que tinham como tarefa conhecer a situação dos domicílios e traçar o perfil epidemiológico da área.
Na década de 1970, foi criado pela equipe do setor saúde do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento do Nordeste (Piass). O objetivo era implantar serviços de primeiro nível em cidades de pequeno porte e fazer chegar às populações excluídas ações médicas. “Certamente, o Piass foi uma política estatal importante, porém, ao privilegiar a implantação nessas áreas, não rompe com a forma de organização dos serviços hegemônica no país e, assim, novamente, o Estado favorece o crescimento das empresas privadas de saúde”, aponta Ana Luisa.
Na década seguinte, o movimento sanitário brasileiro incorpora as concepções da Atenção Primária ao ideário reformista, colocando em debate a necessidade de reorientar o modelo assistencial, para romper com o modelo médico-privatista vigente. “Essas experiências, somadas à constituição do SUS (Brasil, 1988) e a sua regulamentação (Brasil, 1990), possibilitaram a construção de uma política de ABS que visasse à reorientação do modelo assistencial, tornando-se o contato prioritário da população com o sistema de saúde. Assim, a concepção da ABS desenvolveu-se a partir dos princípios do SUS, principalmente de universalidade, descentralização, integralidade e participação popular”, resume o Dicionário da Educação Profissional em Saúde.

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Seminário sobre APS tem a participação de agentes comunitários de saúde como destaque

Em sua quarta edição, o Seminário Internacional de Atenção Primária à Saúde, promovido pela Associación de Universidades Grupo Montevideo (AUGM), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), entre os dias 31 de julho e 2 de agosto, foi sediado, pela primeira vez,  no Brasil. O evento, realizado no Rio Grande do Sul, reuniu mais de 450 participantes do Brasil, Canadá, Espanha, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, tendo como objetivos debater a qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão universitária de instituições de países do Cone Sul, bem como a formação de recursos humanos e as relações internacionais nas áreas de Atenção Primária, Saúde da Família e Medicina de Família e Comunidade. “O foco mesmo foi a atuação dos países, fortalecida com as várias estratégias de pesquisa e de intercâmbio entre alunos de graduação e pós-graduação e professores e profissionais de saúde. Ou seja, percebemos diversos países colaborando com pesquisas multicêntricas”, observou o médico João Werner Falk, professor da Faculdade de Medicina da UFRGS e coordenador do 4º seminário.
Na avaliação de Falk, as relações internacionais para incentivar a saúde estiveram no centro do debate. “Muitas atividades trataram das formas como os países podem contribuir uns com os outros, aprimorar os sistemas de saúde em benefício da população e ajudar na formação de recursos humanos para a atenção primária à saúde”, destacou.
A observação do professor pode ser constatada na mesa redonda do dia 1º de agosto, que tratou das relações internacionais na APS. No debate, Jaqueline Ponzo, professora do Departamento de Medicina Familiar e Comunitária da Universidad de La Republica, no Uruguai, falou sobre a atuação da Associación de Universidades Grupo Montevideo (AUGM) no apoio ao desenvolvimento do ensino, da pesquisa e da extensão nas universidades do Cone Sul. Maria Inez Padula Anderson, presidente da Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar (CIMF), do Rio de Janeiro, por sua vez, apresentou a estrutura e as experiências de atuação da confederação. Por fim, o coordenador executivo da CIMF, Luis Aguilera, professor honorário da Faculdade de Medicina da Universidade de Vallodolidm, na Espanha, e a professora do Departamento de Medicina Familiar da Faculdade de Medicina e Ciências da Saúde da Universidade de Sherbrooke, no Canadá, Martine Morin, trataram das relações internacionais na área de atenção primária em seus respectivos países.
Falk ainda destacou a expressiva participação de agentes comunitários de saúde (ACS) no seminário — a maioria experimentou, pela primeira vez, um evento de caráter internacional. “Muitos deles me revelaram que gostaram muito da experiência”, disse.
Foi o caso da agente comunitária de saúde Jovina Dornelles — que inspirou a abertura desta matéria. Emocionada, ela compartilhou os desafios do seu trabalho na Unidade Básica de Saúde (UBS) Santa Cecília, em Porto Alegre (RS), revelando que entre as ações realizadas por ela se destacam a atualização do cadastro e os esclarecimentos sobre o funcionamento da UBS. Segundo Jovina, seu trabalho vai além das visitas domiciliares para acompanhamento das famílias. “Não fazemos só visitas domiciliares. Eu vou às reuniões do orçamento participativo, por exemplo. Cada um faz o que gosta para ajudar a comunidade”, exemplificou.
A agente comunitária revelou que enfrenta dificuldades no cotidiano do trabalho, provocadas, principalmente, pela resistência da comunidade. “Isso acontece, provavelmente, pelo desconhecimento que a população tem acerca das possibilidades de cuidados que o SUS pode proporcionar”, observou. Segundo ela, os agentes precisam acreditar bastante em seu trabalho para auxiliar as famílias nessa situação. “Durante todos esses anos de trabalho, em muitos momentos, pensei em desistir. Mas, agora, desejo ficar”, ressaltou. 
Por fim, Jovina apresentou a experiência Roda de Chimarrão. O trabalho consistiu em convidar as famílias da comunidade de Vila Sossego, abarcadas pela UBS Santa Cecília, para reuniões sobre temas do âmbito da saúde. “A atividade conta com vários profissionais. Hoje, muitas pessoas que nunca participaram estão indo”, comemorou, sob fortes aplausos.

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