revista ret-sus . seções . capa

Versão para impressãoEnviar por email

capa
O saber e o fazer do técnico em hemoterapia

Curso técnico  destaca-se por formar profissionais em atenção às necessidades do SUS.

Jéssica Santos e Flavia Lima

Em maio de 2012, aos 46 anos, a técnica em patologia clínica da Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia do Estado de Minas Gerais (Hemominas), Andreia Abreu, iniciava o curso Técnico em Hemoterapia na Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (ESP-MG) — instituição integrante da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS) —, tendo a grata surpresa de experimentar diferentes momentos de aprendizado. “Eu não estudava há muito tempo. O curso foi uma maneira de aprimorar meus conhecimentos na área da Saúde, uma vez que eu já trabalhava na Hemominas há dez anos. Pretendo agora fazer um curso universitário”, anunciou a profissional que fez parte da turma piloto promovida pela ESP-MG entre maio de 2012 e dezembro de 2013.
Este é um dos muitos exemplos exitosos no contexto da formação técnica em Hemoterapia, ofertada pelas escolas técnicas do SUS (ETSUS), centros formadores de recursos humanos e escolas de Saúde Pública da RET-SUS, com apoio da Coordenação de Ações Técnicas em Educação na Saúde do Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Deges/Sgtes/MS), que, em 2011, publicou oficialmente as diretrizes e as orientações para a formação dos técnicos em hemoterapia — área estratégica do Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps) do MS, somada à Citopatologia, Radiologia e Vigilância em Saúde.
Esta publicação trata-se de um marco de orientação curricular, permitindo a inclusão das especificidades de cada estado do país. O texto tem como base o Programa Mais Saúde: direito de todos, de dezembro de 2007, e é fruto de debates promovidos pelo MS em 2010, com a participação de representantes das escolas da RET-SUS e do Fórum Nacional de Conselhos de Educação e técnicos do MS, da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e das secretarias de saúde dos estados, além de integrantes de associações de classe e dos próprios serviços.

Em alusão ao sangue

O livro traz a cor vermelha na capa, em alusão ao sangue, e está organizada em quatro capítulos: introdução; mapa de competências; marco de orientação curricular; e considerações finais. A introdução faz um resgate histórico da atenção hemoterápica no país — cujo avanço observa-se com a estruturação de bancos de sangue na década de 1940, em Porto Alegre (RS) e Recife (PE), a partir do enfoque dado às pessoas portadoras de enfermidades crônicas, como hemofilia e anemia falciforme, que faziam uso contínuo de componentes sanguíneos. O texto faz menção aos anos 1977, quando surgiu o primeiro grande Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemope), em Pernambuco (PE), e 1983, época do Prosangue, programa do governo federal que visava levar a todo o país um modelo de gestão de hemocentros, “promovendo a concentração de procedimentos técnicos e administrativos para a rede de serviços de sangue, regionais e estaduais”, escreve.
A introdução lembra, também, a Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 199, define a necessidade de princípios de qualidade e segurança aplicados no sangue. O avanço da ciência e o desenvolvimento de tecnologias transfusionais, afirma o texto, impulsionaram a atenção hemoterápica no Brasil, culminando no Sistema Nacional de Sangue e Hemoderivados, criado por meio da Lei do Sangue, nº 10.205, de 21 de março de 2001, e na Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados (PNSH), do mesmo ano, além de fomentar a elaboração de políticas estaduais da área.
O capítulo do mapa de competências, dividido em cinco eixos — Contexto social, cultural e político da doação de sangue e de medula óssea, Ações de registro, tratamento e transmissão de informações, O processo de trabalho do técnico em hemoterapia, Organização e planejamento do trabalho no contexto da hemoterapia e Promoção da saúde e prevenção de doenças e agravos —, revela que a primeira competência do técnico em hemoterapia é “realizar atividades que estimulem indivíduos e população para a doação de sangue e de medula óssea, considerando aspectos políticos e socioculturais”. A segunda é “identificar, registrar, tratar e transmitir informações inerentes ao ciclo do sangue, com vistas à rastreabilidade e à segurança transfusional”. “Realizar ações e procedimentos técnicoassistenciais em serviços e unidade de hemoterapia, considerando suas características, finalidades, efeitos e riscos” é a terceira competência indicada pelo texto. As quarta e quinta competências, respectivamente, são “planejar, organizar e avaliar, em equipe, o processo de trabalho, considerando a natureza e a finalidade das ações desenvolvidas em hemoterapia” e “realizar ações de vigilância, prevenção e controle de riscos nos serviços e nas unidades de hemoterapia e de preservação no meio ambiente”. Cada competência, no documento, traz uma série de habilidades — identificadas como Saber fazer — e um elenco de conhecimentos sobre a área — ou Saber saber.
O capítulo referente ao marco de orientação curricular, por sua vez, recomenda que cada escola, na justificativa, contextualize a necessidade social e política do curso, considerando, por exemplo, o perfil epidemiológico nacional, regional e local, a situação e o contexto do trabalho na área da Hemoterapia, em âmbito nacional e sua expressão regional e local, o perfil da força de trabalho em saúde, destacando a necessidade do técnico em hemoterapia, entre outros quesitos.
Nesta parte da publicação, são também apresentados os objetivos geral — “formar técnicos em hemoterapia com capacidade de enfrentar situações em constante mudança e intervir no sentido de melhorar a qualidade dos processos, produtos e serviços de hemoterapia” — e os específicos do curso, os requisitos de acesso — ter concluído o Ensino Médio, idade mínima de 18 anos e estar, preferencialmente, inserido em serviços de hemoterapia do SUS —, o perfil de conclusão, que é o aspecto que define a identidade do curso, a estrutura e a organização curricular — segundo determina o Ministério da Educação (MEC), a carga horária mínima do curso é de 1.200 horas, distribuídas em três módulos (o primeiro com 320 horas, o segundo com 600 horas e o terceiro com 280 horas) e o estágio curricular supervisionado (420 horas) —, o aproveitamento de conhecimentos e experiências — avaliados conforme critérios e procedimentos definidos no regimento e plano curricular do curso, aprovados, por sua vez, pelo Conselho Estadual de Educação — e a avaliação do processo ensino-aprendizagem. Este último item, orienta o texto, “deve ser implementado ao longo do desenvolvimento do currículo, considerando o processo de apropriação dos saberes (habilidades, conhecimentos e atitudes) que conformam as competências estabelecidas”.
“A elaboração do mapa de competências e das diretrizes que orientam a formação implicou árduo trabalho. Nossa expectativa é ter um número adequado e qualificado de profissionais técnicos em hemoterapia e demais áreas técnicas que estão no contexto do Profaps formados em todo o país”, observou a educadora em saúde e assessora técnica do Deges, Núbia Brelaz, durante a Oficina Regional Profaps Nordeste, realizada pela Coordenação de Ações Técnicas em Educação na Saúde do MS, em Alagoas, entre os dias 19 e 21 de novembro de 2013 (sobre este encontro, ver matéria publicada no site da RET-SUS).
Além das diretrizes e orientações para a formação técnica, essa coordenação lançou, durante o Seminário Nacional Profaps, em junho de 2013, o livro-texto Hemoterapia, cuja organização contou com a participação da médica hematologista e hemoterapeuta e coordenadora do Hemocentro de Ribeirão Preto (SP), Eugênia Maria Amorim Ubiali. Segundo ela, a publicação, de fácil compreensão, tornou-se bastante relevante, uma vez que há pouco material em português que forneça bases teóricas em Hemoterapia.  Esta traz conceitos relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS), à política de sangue e hemoderivados no Brasil e às atividades técnicas da Hemoterapia. “O livro abrange o cenário político, social e cultural da Hemoterapia no país, aspectos técnicos do ciclo do sangue, desde a doação até o uso racional das transfusões e as reações transfusionais, além de noções de terapia celular e assuntos relacionados, como política de resíduos dos serviços de saúde, gestão de informação, planejamento e gestão de qualidade em serviços e hemoterapia”, revelou.
Segundo Eugênia, também autora de alguns textos, a publicação contou com a participação de 23 profissionais — alguns deles da Coordenação-Geral de Sangue e Hemoderivados do MS. “A tarefa foi bastante trabalhosa, mas extremamente prazerosa e compensadora. Temos certeza que o material será útil e, junto com o curso técnico, irá colaborar com a Hemoterapia brasileira”, revelou.

Pelas escolas

A ESP-MG formou, com a turma piloto de 2012, doze técnicos em hemoterapia. “Os profissionais que participaram desse curso já faziam parte da hemorrede de Minas Gerais, porém com conhecimentos fragmentados sobre o ciclo do sangue”, revelou Sheilla Coutinho, referência técnica e coordenadora do curso. Segundo ela, a formação destacou-se ao permitir que os alunos tivessem acesso ao conhecimento sobre todas as fases do ciclo do sangue.
A matriz curricular do curso da ESP-MG baseou-se nas diretrizes e orientações curriculares elaboradas e publciadas pelo MS, em atenção às especificidades regionais. Por conseguinte, a metodologia de integração ensino-serviço, organizada em módulos, abarcou os principais conteúdos da área, como cenário político, social, cultural e da educação em saúde na formação do técnico em hemoterapia e o processo de trabalho desse profissional.
Em São José do Rio Preto (RS), área de abrangência do Centro de Formação de Recursos Humanos para a Saúde (Cefor) de Araraquara, a partir da demanda apresentada por profissionais de nível médio, foi iniciada, em novembro de 2013, uma turma do curso técnico, com 1.440 horas, das quais 1.200 horas são destinadas às aulas teóricas e 240 horas, ao estágio supervisionado.  Ao todo, são 22 alunos que deverão se formar em julho de 2015. O curso tem como objetivos possibilitar competências condizentes às necessidades técnicas e sociais e às realidades locais e regionais dos serviços de hemoterapia e promover a articulação entre conhecimentos multidisciplinares, princípios éticos, legais, normativos, biopsicossociais e de biossegurança e a prática de trabalho na área.
O Cefor de Araraquara já havia tido experiência na qualificação de profissionais da área com o curso Atualização em Hemoterapia, realizado de julho a dezembro de 2013, com carga horária de 128 horas. O curso, fruto de demanda locorregional em hemoterapia de Ribeirão Preto, atendeu a 22 profissionais que atuavam em agências transfusionais, bancos de sangue e medula óssea. “Esta turma, considerada piloto, chamou a atenção dos gestores e profissionais da área, desencadeando na segunda turma do mesmo curso, iniciada em fevereiro deste ano, com 24 alunos, e na previsão de outras duas turmas para o segundo semestre de 2014”, anunciou Isabel Gorla, coordenadora pedagógica da escola.  Esta segunda turma tem a carga horária maior (136 horas) e participam dela alunos dos municípios de Ribeirão Preto, Pontal e Taquaritinga.
A formação em hemoterapia é também foco do Centro Formador de Pessoal para a Saúde Franco da Rocha, em São Paulo. De acordo com Miriam Stefanini, do Núcleo de Apoio às Escolas Técnicas de Saúde do estado, o Cefor Franco da Rocha planeja oferecer, este ano, o curso de Capacitação em Hemoterapia para os hemonúcleos.

Em formação

O Centro Formador de Recursos Humanos (CeforRH), na Paraíba, iniciou, ao longo de 2012, cinco turmas do curso técnico nos municípios de Campina Grande, João Pessoa, Patos, Princesa Isabel e Sousa. Atualmente, a escola tem, aproximadamente, 130 alunos em formação na área, e todas as turmas têm previsão de formatura para este ano.  De acordo com Candice Chiara, psicóloga sanitarista e professora do curso, o objeto do trabalho é capacitar os profissionais do SUS já atuantes na área, proporcionando conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias para o gerenciamento e operacionalização das ações inerentes ao técnico em hemoterapia. “Ao analisar a realidade dos profissionais que atuam na área da Hemoterapia, constatou-se que poucos tinham formação técnica de nível médio”, revelou. A escola identificou enorme carência de formação específica no segmento, assim como escassez de oferta de cursos da modalidade. “A formação adequada e o aprimoramento contínuo são requerimentos essenciais para a garantia de qualidade dos serviços de hemoterapia e, consequentemente, dos serviços e atendimento prestados a pacientes e doadores”, orientou.
A proposta encontrou justificativa, segundo Candice, no processo de expansão da hemorrede e no cresceste aumento da demanda transfunsional da Paraíba. “Desde a fundação dos hemocentros e hemonúcleos, nenhum curso foi realizado com esta finalidade”, destacou.
O curso técnico está organizado em três módulos — Introdução à Hemoterapia; Fundamentando a ação em Hemoterapia; e o Processo de trabalho no ciclo do sangue —, além do estágio curricular supervisionado, seguindo, assim, as diretrizes e orientações para a formação do MS. Ele traz os temas Política Nacional de Sangue, Ética e Legislação em Hemoterapia, Microbiologia e Imunologia, entre outros. “Todos os estudantes estão inseridos no SUS — 90% atuam na hemorrede da Paraíba, seja no Hemocentro, nos hemonúcleos ou em agências transfusionais, e os demais, em laboratórios que dão suporte às agências”, contou.
A Superintendência da Escola Tocantinense do Sistema Único de Saúde (SETSUS-TO) traz duas turmas do mesmo curso em andamento — em Palmas, abarcando trabalhadores de Porto Nacional, Gurupi e Paraíso, e, em Araguaína, voltada aos trabalhadores de Augustinópolis, Colinas, Xambioá, Guaraí, Muricilândia e Araguaína —, somando 50 alunos. A formação, iniciada em 2012 e com formatura prevista para 2015, tem como meta suprir a carência de profissionais com competências suficientes para atuarem em equipe multidisciplinar nos hemocentros, núcleos de hemoterapia, unidade de coleta e transfusão, central de triagem laboratorial de doadores e agências transfusionais. “Capacitar recursos humanos para o sistema de saúde é prioridade da Secretaria de Saúde do estado”, frisou Laudecy Soares, supervisora pedagógica da SETSUS-TO.
O curso, segundo ela, segue as orientações do MS, abordando, no primeiro módulo, temas como Contexto social, cultural e político da doação de sangue e de medula óssea e Cenário político, social e cultural em promoção, prevenção e agravos no contexto da hemoterapia. O segundo módulo trata do processo de trabalho do técnico em hemoterapia. E, o terceiro, dos sistemas de informação, organização e planejamento do trabalho na área. “Queremos formar profissionais capacitados e aptos para desenvolver ações de promoção, prevenção, assistência e reabilitação, de forma integral, na área hemoterápica, bem como propiciar a oportunidade de profissionalização a trabalhadores do sistema de saúde”, acrescentou.
Na Escola Técnica do SUS Drª Maria Nazareth Ramos de Neiva, no Maranhão, outras duas turmas do curso técnico estão em andamento na capital São Luis, com vistas ao fortalecimento da hemorrede do estado. A previsão é que os 44 alunos em formação concluam o curso em 2015. O curso, informou a enfermeira Patrícia Veras, coordenadora dos cursos técnicos em Hemoterapia e Radiologia da ETSUS-MA, encontra justificativa no baixo índice de formação de nível médio no Maranhão e na necessidade de se formar técnicos em hemoterapia com capacidade de intervir no sentido de melhorar a qualidade dos processos, produtos e serviços na área. 
O curso técnico em Hemoterapia faz parte, também, das ações da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE). A escola tem uma turma em andamento, em Fortaleza, com 15 alunos, que se formam em maio deste ano. A demanda foi identificada no Planejamento da Educação Permanente em Saúde, realizado pelas comissões de Integração Ensino Serviço (Cies) e Intergestores Bipartite (CIB), tomando como referência as diretrizes das políticas Nacional e Estadual de Educação Permanente em Saúde. “Esse processo de identificação da demanda de formação é coordenado pela Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, por meio da Coordenadoria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde”, contou Josineire Freitas, coordenadora do curso Técnico em Hemoterapia da ESP-CE.
A Escola de Saúde Pública de Pernambuco, por sua vez, está em fase de elaboração do plano de curso em conjunto com a Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope), para que ele possa ser enviado, em seguida, ao Conselho Estadual de Educação (CEE). Será a primeira turma do curso Técnico em Hemoterapia ofertada pela escola. “Estamos finalizando o plano de curso, que será enviado ao CEE, para análise e aprovação, e, em seguida, iniciaremos o processo de credenciamento de docentes e seleção dos alunos”, anunciou Lorena Melo, coordenadora de Educação Permanente da ESP-PE. A formação, segundo ela, tem como propósito qualificar os trabalhadores que atuam nas unidades da Hemope.
Para Eugênia, a formação técnica promovida pelas escolas em parceria com os hemocentros vem contribuindo bastante para a qualidade dos serviços, apesar de não ser o suficiente. Ela defende o fortalecimento da categoria por meio da regulamentação da profissão, ainda não promovida. “Regulamentar a profissão de técnico em hemoterapia implica valorizar esses profissionais e poderá ser decisivo para que o profissional se imponha no mercado e mostre sua importância”, frisou.
A consultora do escritório brasileiro da Unidade Técnica de Medicamentos, Tecnologias e Pesquisa em Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e uma das autoras do livro-texto do MS, Danila Augusta Accioly Varella Barca, também lamentou a falta de regulamentação da profissão, que poderia possibilitar a inserção desse perfil profissional nos concursos públicos. “Ainda hoje, a grande maioria dos profissionais de nível médio atuantes nos serviços de hemoterapia não tem, sequer, a formação técnica de nível médio específica. Na área de Hemoterapia, atuam, predominantemente, profissionais de nível médio com títulos de técnicos em enfermagem ou em laboratório”, contou.
O médico e presidente da Hemope, professor adjunto de Hematologia e Hemoterapia da Universidade de Pernambuco (UPE) e autor de um dos 23 artigos do livro-texto, Divaldo de Almeida Sampaio, acredita que a formação dos técnicos em hemoterapia contribui para o fortalecimento dos pilares de sustentação da profissão. “Creio, porém, que o maior desafio esteja ligado ao reconhecimento e à regulamentação da profissão técnica. O trabalho desse grupo profissional é muito específico”, defendeu.

Ciência do sangue

Sampaio recordou que o sangue sempre teve importância destacada na história da Medicina, já que seu uso, com finalidade terapêutica, sempre foi empregado pelo homem — na Antiguidade, período pré-histórico da transfusão no mundo, era prática banhar-se e beber sangue de pessoas e animais, para curar doenças ou fortalecer o organismo. Ao longo dos séculos, por volta dos anos 1900, a Hemoterapia configurou-se como a ciência que estuda o tratamento de doenças no sangue.
No Brasil, informou o especialista, essa ciência teve destaque na década de 1940, com o avanço dos bancos de sangue: em 1941, foi criado, no Instituto Fernandes Figueira, unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, o primeiro banco de sangue; em 1942, o Banco de Sangue da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e o Banco de Sangue do Pronto-Socorro do Recife, em Pernambuco; no ano seguinte, a Universidade de São Paulo criou o Banco de Sangue do Hospital das Clínicas; e, em 1944, no Rio de Janeiro, foi inaugurado o Banco de Sangue do Distrito Federal.  “Antes, ainda, o país contava com o Serviço de Transfusão de Sangue do Rio de Janeiro, fundado em 1933 por um grupo de médicos. O serviço alcançou tamanho êxito com relação às transfusões de sangue, que resultou na criação de unidades semelhantes em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, em 1937”, relatou.
De acordo com Sampaio, entre as décadas de 1930 e 1940, a hemoterapia no Brasil era considerada uma atividade restrita, acessória e vinculada a prontos-socorros e santas casas. Sem regulamentação, as atividades na área funcionavam sem qualquer controle. “Na ausência de fiscalização, o sangue tornava-se um negócio lucrativo, comprado a preço baixo e repassado a hospitais e empresas multinacionais, que aproveitavam o plasma para a produção de albumina, a valores bem elevados”, citou.
Na década de 1960, entretanto, o governo passou a considerar a questão do sangue como segurança nacional. A partir daí, foi criada a primeira Política Nacional de Sangue (Lei nº 4.701, de 28 de junho de 1965), dispondo sobre o exercício da atividade hemoterápica no Brasil e fixando as competências da Comissão Nacional de Hemoterapia. “A política nacional de sangue, tinha, entre suas finalidades, organizar a distribuição do sangue, a doação voluntária, a proteção ao doador e ao receptor, disciplinar a atividade industrial, incentivar a pesquisa e estimular a formação de recursos humanos”, explicou.
Em 1983, surge o programa do governo federal Prosangue, cujo objetivo era difundir por todo o Brasil o modelo de gestão de hemocentros. “Ele teve importância na medida em que se estabeleceu uma ordenação do sistema hemoterápico do Brasil, criando a rede de hemocentros nas principais cidades brasileiras para executar a política nacional do sangue nas unidades federadas”, esclareceu.

Sangue não é mercadoria

Segundo Sampaio, a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986, foi definitiva para o fortalecimento da política nacional de sangue, uma vez que considerou o sangue e seus derivados como indicadores de saúde importantes e, por isso, merecedores de debates específicos.  A 8ª CNS recomendou fortalecer e ampliar a rede de hemocentros, conscientizar o cidadão quanto à importância da doação voluntária de sangue, formar recursos humanos, desenvolver novas tecnologias e promover o controle de qualidade e a vigilância sanitária.  “Foi a partir daí, que o governo brasileiro passou a considerar a gestão do sangue e hemoderivados como atividade permanente do Ministério da Saúde e criou a Divisão Nacional de Sangue e Hemoderivados (Dinashe), com definição de recursos orçamentários para a consolidação dos hemocentros coordenadores e a expansão da rede de hemocentros”, lembrou.
O controle da qualidade do sangue foi também ponto de destaque da Assembleia Nacional Constituinte de 1987, que aprovou em primeiro turno a estatização da rede de coleta, pesquisa, tratamento e transfusão de sangue e seus derivados. Gritando o slogan “Salve o Sangue do Povo Brasileiro”, cerca de 70 médicos e sanitaristas comemoraram nas galerias a decisão da Constituinte de proibir definitivamente a comercialização de sangue por 313 votos contra 127 e 37 abstenções, informou à época o Jornal do Brasil. A luta pública contra o comércio do sangue, personificada pelo sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, ao lado dos irmãos Chico Mário e Henfil, encontrou força na crescente epidemia de HIV/aids, que fazia suas primeiras vítimas no país na década de 1980, atingindo com especial crueldade os hemofílicos, a exemplo do próprio Betinho — que dependiam de transfusões de sangue regulares. A vitória culminou no artigo 199 da Constituição Federal de 1988, proibindo toda e qualquer forma de comercialização do sangue ou de seus derivados, estabelecendo a proibição da doação gratificada de sangue e admitindo a remuneração dos serviços por meio da cobertura de custos de processamento.
Em 21 de março de 2001, a Lei do Sangue (nº 10.205) foi sancionada, regulamentando o parágrafo 4° do artigo 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados. A Lei ratificou a proibição da comercialização do sangue e de seus derivados em todo território nacional e criou o Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados (Sinasan). “Dessa forma, essa base legal ajudou a nortear o processo de organização e estruturação da Hemoterapia no Brasil, amparado pela estrutura do SUS, por intermédio da rede de serviços de hemoterapia, a chamada hemorrede nacional”, explicou Danila, para quem o avanço conquistado pela área a partir da publicação desta Lei é inquestionável.
De acordo com Sampaio, com a norma, o Brasil passou a coletar o plasma brasileiro e a enviar para o exterior, para ser beneficiado e retornar ao país como hemoderivados. “Isso possibilitou que os medicamentos fossem fabricados com um plasma rico em substâncias próprias do perfil epidemiológico dos brasileiros”, frisou.

Desafios a superar

Para o presidente da Hemope, a hemoterapia brasileira, situada entre as melhores da América Latina, caminha para alcançar um significativo desenvolvimento técnico-científico e de prestação de serviço qualificado. “Mas precisa, para isso, ampliar a oferta de sangue e derivados, alcançando a autossuficiência”, orientou. De acordo com ele, isso se deve à ampliação das ações de alta complexidade, incluindo os transplantes de órgãos e as cirurgias oncológicas e por traumatismos.
Danila também avalia positivamente o atual cenário da Hemoterapia no Brasil, que foi fortalecida, especialmente, pelo investimento na infraestrutura da hemorrede, pela incorporação de novas tecnologias, que contribuem para a segurança transfusional, e pela implantação de sistemas de qualidade nos serviços. No entanto, como avaliou Eugênia, ainda hoje, apesar do desenvolvimento científico e tecnológico na área, permitindo, por exemplo, avanços na infraestrutura física e ampliação e diversificação de espaços de trabalho, o Brasil apresenta a coexistência de serviços de excelência e alguns inadequados — que não oferecem segurança nas transfusões. “A grande maioria dos serviços responsáveis pela cadeia produtiva de hemocomponentes são mais homogêneos e entregam produtos seguros para transfusão. Entretanto, na ponta da cadeia transfusional, muitas agências não realizam os procedimentos pré-transfusionais e transfusionais adequadamente”, descreveu.
Para Eugênia, a Hemoterapia brasileira carece de implantação de teste de ácido nucleico para hepatite B na triagem de doadores de sangue, por exemplo, de discussão e disseminação da leucorredução e de medidas de redução do risco de contaminação bacteriana de hemocomponentes, bem como da aprovação de técnicas de redução de patógenos em hemocomponentes e na organização da formação e educação contínua de recursos humanos.
Danila defende, também, a criação de um padrão de rotulagem de bolsas de sangue, a incorporação de novas tecnologias em uso nos países desenvolvidos, para aumentar a segurança transfusional, o fortalecimento da qualificação técnica e gerencial das hemorredes estaduais — a exemplo do Programa Nacional de Qualificação da Hemorrede (PNQH) do Ministério da Saúde, que, desde 2008, vem estimulando a implantação da cultura da qualidade — e a revisão da forma de financiamento das ações de hemoterapia no SUS — ainda atrelada ao pagamento por procedimentos realizados —, além da informatização de toda a hemorrede do país, da criação de uma estratégia brasileira voltada à incorporação de tecnologia para filtração universal de bolsas de sangue e da ampliação da hemovigilância no Brasil, que atualmente restringe-se ao monitoramento das reações adversas que ocorrem no paciente durante ou após uma transfusão sanguínea. “A ação da hemovigilância deve ser ampliada para todas as etapas do ciclo do sangue, contribuindo para o monitoramento e investigação dos eventos adversos na área”, orientou.
Ela recomenda, ainda, a criação de estratégias que garantam o abastecimento de sangue durante a realização de grandes eventos no Brasil, como Copa do Mundo, em 2014, e Jogos Olímpicos, em 2016, além de situações de contingências. “Isso requer uma articulação institucional entre os órgãos que compõem o Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados na busca de mecanismos de garantia de controle de estoques estratégicos, forçando o desenvolvimento de ações em rede, para além da demanda da cobertura cotidiana de cada serviço de hemoterapia”, concluiu.

Galeria de Fotos

Comentar