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entrevista
Roberto Leher

‘A principal divergência diz respeito ao Sistema Nacional de Educação’

Jéssica Santos

A segunda Conferência Nacional de Educação (Conae), transferida de fevereiro para novembro de 2014, em Brasília, acontece quatro anos após a primeira edição, trazendo ainda em seu contexto muitas divergências. Sob o tema O Plano Nacional de Educação (PNE) na articulação do Sistema Nacional de Educação: participação popular, cooperação federativa e regime de colaboração, a 2ª Conae — cujo caráter é deliberativo — discutirá propostas que irão subsidiar a implantação do PNE, elaborado originalmente para o decênio 2011-2020. O doutor em Educação Roberto Leher, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conversou com a RET-SUS sobre os avanços e os retrocessos observados em relação à política de educação desde a primeira Conae, realizada em 2010, e os desafios postos para a defesa da educação pública.
Leher aponta as principais divergências entre as propostas da 1ª Conae e o Projeto de Lei (PL) que cria o PNE 2011-2020. O plano, enviado pelo Governo Federal ao Congresso Nacional em 15 de dezembro de 2010, ficou um ano e meio na Câmara dos Deputados, sob o número PL 8.035/2010, onde recebeu mais de três mil emendas. No dia 26 de junho de 2012, foi aprovado pela Comissão Especial da Casa Parlamentar, seguindo para o Senado, sob a inscrição Projeto de Lei Complementar (PLC) 103/2012, onde se encontra ainda hoje em discussão. Desde então, o PLC 103/2012 já passou pelas comissões de Assuntos Econômicos (CAE), Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e Educação, Cultura e Esporte (CE). Nas duas últimas, recebeu alterações consideradas negativas. “A principal divergência entre o documento da 1ª Conae e o projeto do governo, que, em tese, deveria ter sido aprovado em 2011, diz respeito à organização de um Sistema Nacional de Educação”, aponta Leher.
O plano apresenta dez diretrizes e 20 metas, seguidas das estratégias específicas de concretização. Entre as metas, nenhuma outra foi mais polêmica que a de número 20, relativa ao financiamento. A proposta original previa aumento do investimento em educação dos atuais 5% para 7% do Produto Interno Bruto (PIB), em até dez anos. Com a pressão dos movimentos sociais e de alguns parlamentares, foi aprovada na Câmara dos Deputados a vinculação de 7% no quinto ano da lei e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB no fim do decênio. “Os movimentos sociais da área da Educação chegaram a promover um plebiscito nacional em defesa da vinculação dos 10% do PIB para a Educação Pública”, informa nosso entrevistado.

Na 1ª Conae, os delegados aprovaram as bases e as diretrizes do novo PNE, elaborado originalmente para o decênio 2011-2020. Há divergências entre o plano e o que foi aprovado na primeira conferência?

Certamente. As proposições gerais da 1ª Conae que deveriam servir de balizamento para elaboração do novo PNE, que, em tese, deveria ter sido aprovado em 2011, sofreram mudanças estruturais e essenciais. A principal divergência entre o que foi aprovado na 1ª Conae e o PL 8.035, apresentado pelo Governo Federal ao Congresso Nacional, diz respeito à organização de um Sistema Nacional de Educação. A conferência indicou a necessidade de um sistema nacional articulado de educação. Apesar de apresentar um conceito impreciso sobre este sistema, havia a convicção de que o país tinha que avançar na ideia de ter um sistema organizado, estruturado e articulado de educação pública, e isso foi ignorado. Na realidade, a política do MEC tem como foco especializar a educação para diferentes tipos de público. Tal proposta segue na contramão do que defendia o filósofo e cientistas político Antônio Gramsci, ou seja, do conceito de escola unitária. Gramsci entendia que uma sociedade é mais democrática quando oferece educação igual para todos. Os liberais, ao contrário, diziam que não, que cada tipo de público devia ter um tipo de educação. Isso implica a ideia de que parte da sociedade executaria atividades manuais, que exigem mais das aptidões neuromusculares e menos das intelectuais, sendo, assim, irracional manter um sistema que pressupõe que todos os seres humanos vão desempenhar atividades de natureza intelectual. Essa é a questão de fundo. E a Conae, ainda que de maneira limitada, indicou que era necessário organizar um sistema público de caráter mais unitário, e não como pensam os liberais.

Em suma, como você observa o PNE 2011-2020?

O plano, ao contrário do que defende o governo, fragmenta muito a educação e, sobretudo, compreende que a expansão dos ensinos Médio, Tecnológico e Superior deveriam se dar essencialmente por parcerias público-privadas — algo que a Conae desaprovou. As diferenças são muito grandes e seguem em curso na Casa Parlamentar. Isso é uma situação desastrosa.

Entre as metas, nenhuma outra foi mais polêmica que a relativa ao financiamento...

De fato, o primeiro grande problema inerente ao projeto do governo dizia respeito ao orçamento. Os movimentos sociais da área da Educação chegaram a promover um plebiscito nacional em defesa da vinculação dos 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a Educação Pública. Essa batalha foi muito intensa, envolvendo muitas entidades, sindicatos, associações acadêmicas e setores da juventude, que se engajaram nesse movimento. Por fim, a proposta de vinculação dos 10% do PIB na Educação Pública foi aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados (em junho de 2012), ainda que de forma imprecisa, pois posterga para 2021 — e, agora, no caso, para 2024, ao iniciar um novo decênio — a obrigação de vinculação ao equivalente a 10% do PIB para o setor. Apesar da conquista, o projeto já foi modificado no Senado, uma vez que já se fala em 10% do PIB para a Educação de forma muita abstrata. O relator do PLC 103/2012, que trata do PNE no Senado, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), incluiu, por exemplo, os recursos públicos da educação no mesmo pacote dos subsídios públicos a instituições privadas, que fazem parte de programas federais como Pronatec (Programa Nacional de acesso ao Ensino Técnico e Emprego), ProUni (Programa Universidade para Todos) e Ciência Sem Fronteiras, e concede a essas instituições isenções tributárias dos juros do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil). Teremos 10% do PIB abstratamente para a Educação, pois esses recursos vão passar essencialmente para o setor privado.

Isso é questão estrutural ou ideológica?

Obviamente, isso é um retrocesso estrutural, na medida em que nenhum desses movimentos defende mais recursos para as entidades privadas. Quanto mais recursos para as entidades privadas, mais a educação será privatizada e menos recursos terá a educação pública. Essa mudança proposta ao PLC 103 implica grave retrocesso para a organização da educação pública. Poderá ser ainda pior para a educação pública nos estados e municípios, como no estado do Rio de Janeiro, onde imperam programas educacionais de instituições privadas, como Instituto Ayrton Senna, Fundação Roberto Marinho, Fundação Bradesco, Itaú Social etc. Além desses, temos ainda grandes corporações em atuação na área da Educação, fazendo uso de recursos públicos, como o grupo do Sistema Educacional Brasileiro (SEB), alguns fundos de investimentos que estão atuando na educação básica e comprando a educação básica como se fosse um negócio, bem como o chamado Sistema S de ensino (conjunto de instituições de interesse de categorias profissionais como Sesc, Senai, Sesi e Senac) que estão alargando a formação profissional privada. Todos esses seriam beneficiários da política de expansão de recursos para a educação. Ou seja, dos 10% do PIB.
Outra questão estrutural diz respeito à necessidade de a União comparecer com mais recursos. Hoje, temos aproximadamente 4,8% do PIB para a Educação Pública, mas desses 4,8% a União é responsável por apenas 1,2%, o restante cabe aos estados e municípios. A União deveria atuar, por exemplo, sobre os indicadores de custo aluno-qualidade (valor per capita gasto por aluno). Mas o relator do PLC 123 retirou da União a responsabilidade de custear esses indicador. Consequentemente, temos um plano que não atende à educação pública, tal como foi o plano de 2001. 

Quais são as expectativas para a 2ª Conae e como as associações e movimentos sociais poderão articular-se?

Eu respeito muito a avaliação que diversos movimentos sociais têm feito em relação à participação na 2ª Conae. Entretanto, estou muito pessimista em relação às possibilidades que esta conferência tem. Primeiro porque a Conae não tem um caráter autônomo face às propostas de governo. Esta conferência está perpassada por interesses de grupos e movimentos do setor privado, como o Todos pela Educação — que é um movimento de empresários —, que filtram o que deve ser incorporado como proposta. Não há critérios claros para a escolha de delegados, por exemplo. Enfim, esta segunda conferência não é objetiva e clara, e suas agenda e pauta não incidem de fato sobre a política que está sendo encaminhada. Os movimentos sociais que defendem a educação pública precisarão lutar por iniciativas que guardem maior autonomia crítica em relação às políticas que estão em curso. É preciso fortalecer um conceito de escola pública integral, de qualidade, com professores com carreiras bem construídas. Seguramente, é importante que haja vozes em defesa da escola pública e fóruns como esse são, apesar dos limites impostos, importantes processos pedagógico e de aprendizado para quem está na área da Educação.

Como o senhor avalia a educação profissional e técnica no contexto do PNE e da conferência?

O grande problema da política de formação profissional, quando observamos o PL 8.035 e o PLC 123, é que o governo entende que quem qualifica o trabalhador é o patrão — ou melhor, as entidades patronais. O próprio Pronatec, criado para atender a expansão das escolas técnicas federais, foi feito de acordo com a Usaid (United States Agency International Development) para seguir o modelo do Comet Colleges (programa preparatório voltado para estudantes do Ensino Médio americano), o que é um equívoco, face o conceito de escola técnica que nós construímos, a exemplo da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Mas, de toda forma, apesar do modelo proposto, havia uma proposição de expansão das instituições federais públicas, que não mais prescinde. O que está em curso são as parcerias público-privadas, que focalizam, sobretudo, a ampliação do poder das unidades e instituições do Sistema S sobre o conjunto de escolas púbicas. Importa menos se o ensino profissional técnico é público ou privado, e vale mais se as vagas são ou não gratuitas. Não quero dizer com isso que não devemos ter vagas gratuitas pagas pelo poder público, para que o setor privado forme a juventude. O que defendemos é uma formação cultural geral e ampla, tanto na ciência quanto na tecnologia, seja nas perspectivas histórica e social, para que nossa juventude não continue sendo especializada como força de trabalho neuromuscular. A educação profissional não é uma peça da engrenagem de formação da força de trabalho. Ela é parte da formação humana no interior das escolas, que deve ser feita sob o ponto de vista da formação cultural ampla, e não da necessidade imediata de capital humano, como querem os neoliberais.

Quais são os caminhos para garantir uma educação pública de qualidade como um direito de todos?

Precisamos redimensionar o lugar da escola pública na agenda política brasileira. Não é um processo simples, pois nenhuma das frações burguesas dominantes da sociedade está envolvida e engajada em processos de formação ou pensa o futuro da educação pública com capacidade de assegurar uma formação integral, geral e sólida nos campos da Ciência, Tecnologia, Arte, Cultura etc. Será preciso auto-organizar os sujeitos da classe trabalhadora na defesa da escola pública. Observamos nas últimas greves que os professores fizeram isso: foram às ruas em defesa de pontos absolutamente óbvios, como carreira e salários dignos. Eles foram capazes de organizar seus pleitos, mas os governantes não aceitaram trabalhar essa agenda. Precisamos encontrar novas estratégias de defesa da escola pública, o que implica um movimento de reorganização da própria classe trabalhadora.

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