revista ret-sus . seções . especial

Versão para impressãoEnviar por email

especial
Por uma sociedade eticamente sustentável

Evento destaca-se pela interface da enfermagem com práticas diversas de cuidado em saúde e pelas reivindicações da categoria.

Flavia Lima e Ana Paula Evangelista

 

As lutas e as conquistas da Enfermagem estiveram expressas na 65ª edição do Congresso Brasileiro de Enfermagem (CBEn), realizada, em outubro do ano passado, no Rio de Janeiro, sob o tema Enfermagem e o cuidado com a vida, resultando na Carta do Rio de Janeiro para a Enfermagem Brasileira. Organizado em três grandes eixos — Formação em enfermagem e a gestão do cuidado nas políticas sociais, Interfaces da enfermagem com práticas diversas de cuidado em saúde e Cuidado da enfermagem na construção de uma sociedade sustentável —, o CBEn reuniu mais de cinco mil profissionais da área, permitindo a discussão sobre a responsabilidade ecológica das práticas do cuidado da enfermagem e a construção de políticas voltadas para uma sociedade eticamente sustentável. O congresso destacou-se, ainda, pela tradicional Tenda Paulo Freire — espaço de encontro de militantes da Educação Popular em Saúde, reconhecido como ambiente de livre expressão, diversidade, cuidado, troca e construção compartilhada de saberes —, ao oportunizar que profissionais da Enfermagem expusessem seus talentos culturais, traduzidos em pintura, canto, dança e poesia.

A cerimônia de abertura foi marcada pelas homenagens aos trabalhadores da categoria por sua contribuição para a consolidação do SUS ao longo dos seus 25 anos. “A categoria representa mais de 60% dos trabalhadores do SUS e é bastante resolutiva”, destacou a enfermeira e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivone Evangelista Cabral, presidente do congresso e da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) à época — ela passou o cargo para a enfermeira obstetra e doutora em Filosofia da Enfermagem, Ângela Maria Alvarez (gestão 2013-2016). “Assumir o desafio de estar à frente de uma entidade como essa não foi uma decisão fácil, porém assistir um evento de tanta grandeza é motivador”, disse a nova presidente da ABEn.

Ivone aproveitou a oportunidade para citar o fato de a presidenta da República, Dilma Rousseff, ter vetado dispositivos da Lei do Ato Médico — o projeto tramitou quase 11 anos no Congresso Nacional e preserva o atendimento multidisciplinar nos serviços públicos e privados de saúde —, e criticou a expansão de cursos de Enfermagem privados a distância. “Não é possível formar a distância profissionais que vão cuidar de pessoas”, observou. Ela chamou atenção para a necessidade de transparência e eleições diretas para o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), além de recomendar a criação de um programa, a exemplo do Mais Médicos, que leve mais enfermeiros a áreas remotas.

Representantes de entidades sindicais, como o Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro (SindEnfRJ), a Central Única dos Trabalhadores do Rio (CUT-RJ) e a ABEn Nacional, trouxeram algumas reivindicações da categoria para a mesa de abertura. De acordo com a presidente do SindEnfRJ, Mônica Armada, a luta dos enfermeiros é extensa. “Não temos a jornada de 30 horas, um piso salarial digno e condições de trabalho ideais. No Rio, temos, ainda, que lutar contra as demissões daqueles que têm duplo vínculo no serviço público, que é um direito constitucional”, enumerou. O mesmo reivindicou Pedro Vidal, diretor do Diretório Acadêmico de Enfermagem da UFRJ e da Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem (Eneenf), conclamando os estudantes a apresentar propostas para categoria, uma vez que o CBEn se propõe ser espaço de debate e de deliberação.

 

Cuidado na diversidade social

 

Na mesa redonda Demandas de cuidados na diversidade social e cultural, realizada na tarde do dia 8, a presidente do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro Souza, abordou as alianças entre o trabalho na Saúde e o usuário e a capacidade de interpretar a realidade brasileira. “Nós temos o desafio de atender todas as necessidades de saúde da população e fazer justiça social”, frisou a militante, para quem a realidade brasileira é complexa e cheia de contradições. “Muitas vezes, a nossa pauta em prol do direito à saúde, à vida e aos direitos humanos parece menos importante que a terceirização e o financiamento”, criticou.

A presidente do CNS mencionou a importância do trabalho da mulher e da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) na produção do cuidado à saúde. Quanto às mulheres, caracterizou, elas são submetidas a uma tripla jornada de trabalho e à violenta carga de machismo e preconceito. “São mulheres com escolaridade e nível de formação baixo, que se deslocam por quilômetros de distância, que têm que deixar seus filhos, pois não há creche nem a figura da empregada doméstica”, caracterizou. Segundo ela, a maioria das mulheres é autônoma, desafiando a sociedade a interpretar tal realidade como principal contexto de vida.

No que tange à população LGBT, Socorro citou o preconceito e as barreiras que esse grupo enfrenta no dia a dia. “Este grupo quer chegar à unidade de saúde, por exemplo, e ter seu nome reconhecido”, citou, em alusão aos travestis e transexuais que têm por prática usar nomes sociais em substituição aos nomes de registro civil. “Não ser reconhecido no espaço de saúde causa constrangimento”, orientou.

Na avaliação de Socorro, a melhoria da saúde das populações menos favorecidas implica pensar um modelo de atenção que altere os determinantes sociais da saúde e as condições sociais de vida. Nesse contexto, é preciso reconhecer as desigualdades entre homens e mulheres, brancos e negros. “Temos no Brasil mais de 10% da população analfabetos. Em geral, esse povo não tem voz”, lembrou, destacando que, apesar de a Saúde já ter rompido com algumas barreiras sociais, ainda há pautas a serem retomadas, a exemplo de mais serviços e profissionais de saúde no interior do país.

Enfermeira sanitarista e professora adjunta do curso de Enfermagem da Universidade do Estado do Pará, Laura Maria Vidal Nogueira discorreu sobre o perfil da população indígena para destacar o tema das demandas de cuidados nas diversidades social e cultural. Segundo ela, com base no encaminhamento dado ao Censo Demográfico de 2012, indígena é a pessoa que se autoidentifica como tal e que é reconhecido por sua etnia. “Temos povos indígenas em todo o território brasileiro. De acordo com o levantamento de 2013, foram totalizados 896.917 índios, mas apenas 517 mil habitam terras indígenas no país”, informou, acrescentando que o restante está nas periferias dos centros urbanos e, segundo perfil social, em condições desfavoráveis. “Dos 896.917 indígenas, 379 mil, aproximadamente, estão fora das terras indígenas, em condição de exclusão social, pois têm escolaridade e renda baixas e ficam à margem da criminalidade”, caracterizou. Ela lembrou que a diversidade indígena é bastante grande. Segundo ela, são 305 etnias que falam 192 línguas identificadas.

De acordo com Laura, a Amazônia Legal é a região do país que concentra o maior número de polos indígenas — quase 50%.  São as regiões Norte e Centro-Oeste que concentram o maior número de pessoas vivendo em terras indígenas. Já, no Sudeste, 84% dos indígenas estão fora de suas terras. “São esses indígenas que circulam nos serviços de saúde e são tratados por profissionais que não entendem sua diversidade”, criticou. Ela ressaltou, ainda, que quase a metade da população indígena é formada por jovens — estudo de 2013 revela que 41,1% dos indígenas são menores de 15 anos. “É uma população jovem e que demanda necessidades especiais e específicas para os serviços de saúde”, orientou.

A professora também abordou a questão da mortalidade infantil entre a população indígena. Segundo ela, em 2009, o coeficiente de mortalidade infantil neste grupo populacional foi de 41,9 por mil nascidos vivos contra 17 da população não indígena brasileira. Em sua análise, os dados de mortalidade infantil indicam demandas urgentes de saúde voltadas a esta população, que, há 14 anos, por meio da Lei Arouca (nº 9.836, de 23 de setembro de 1999), passou a contar com os distritos sanitários especiais de saúde (Dseis). A Lei organiza a gestão da saúde indígena no Brasil e dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e funcionamento dos serviços correspondentes, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.

 

Mundo do trabalho

 

Na mesa redonda Mundo do trabalho e enfermagem, Denise Elvira Pires de Pires, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e conselheira da ABEn, abordou três pontos: o processo de trabalho em saúde; o cenário histórico social; e as perspectivas para o trabalhador em enfermagem. Segundo ela, é preciso discutir a enfermagem como área da Saúde e a profissão, sob a perspectiva da ciência. “A Enfermagem é, como todas da área da Saúde, profissão que tem como foco o cuidado humano essencial à vida”, observou.

Rosane Harter Griep, pesquisadora do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (Leas), do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), por sua vez, apresentou estudo que desenvolveu sobre a saúde dos enfermeiros dos grandes hospitais públicos do Rio de Janeiro. Neste trabalho, a pesquisadora, que desde os anos 2000 estuda a profissão, entrevistou 3.229 enfermeiros dos 4.830 profissionais identificados, durante dois meses. “Do total, 8,4% não foram localizados no hospital, 5,8% estavam de licença e 17,7% não estavam no local de trabalho, sobrando 3.229 enfermeiros (83%)”, descreveu. De acordo com Rosane, o objetivo do estudo foi, por meio das unidades hospitalares, pensar a profissão e a saúde dos enfermeiros, os impactos do trabalho sobre o profissional e os desafios a serem enfrentados.

O trabalho de investigação revelou que, em geral, o ambiente de trabalho nos hospitais do Rio, não é favorável, uma vez que os trabalhadores da Enfermagem estão submetidos a longas jornadas, multiempregos, estresse psicossocial e efeitos do presenteísmo e do absenteísmo. Alguns fatores chamaram mais atenção da pesquisadora, entre eles os problemas de sono que acometem os profissionais da Enfermagem e a dupla jornada de trabalho. Segundo ela, 67% dos entrevistados tinham dois ou mais trabalhos, e a insatisfação foi observada, em grande parte, tanto nos hospitais estaduais quanto municipais. “Tem gente que pensa em abandonar a profissão todos os dias”, revelou. Diante desse cenário, Rosane apontou os desafios a serem enfrentados, entre eles fomentar a formação em pesquisa e analisar e discutir as implicações da organização dos horários de trabalho, tornando o serviço agradável e atrativo.

 

Práticas inovadoras em saúde

 

Muitos dos problemas inerentes ao mundo do trabalho dizem respeito à gestão, o que implica também pensar a importância das tecnologias nessa tarefa. Na mesa redonda Tecnologias e práticas inovadoras em saúde, Jorge Lorenzetti, professor adjunto do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apresentou o projeto Praxis: tecnologia de gestão de unidades de internação hospitalares. Fruto de seu doutorado, o projeto consiste em um software que reúne informações com vistas a melhorar o atendimento e a atenção aos cuidados de enfermagem. “É um sistema de gestão de unidades de internação, por meio do qual é possível acessar dados do hospital universitário, da UFSC e da clínica médica”, detalhou.

O trabalho encontrou justificativa na constatação de que a Saúde, desde 2006, revela-se como principal problema dos brasileiros. “As pesquisas mostram que 67% das pessoas estão insatisfeitas com o setor Saúde, seguido da Educação, Segurança e Drogas”, observou. Segundo ele, a Saúde vai mal devido a dois macroproblemas: o subfinanciamento e a gestão.

Enfermeiro, doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará e professor da Universidade do Estado do Ceará (UEC), Raimundo Augusto Torres Martins apresentou o projeto Tecnologia e práticas inovadoras em saúde – tecnologia de comunicação e a saúde: a Web Rádio Ajir (Associação dos Jovens de Irajá), cujo propósito é ampliar a convivência e as possibilidades do espaço virtual de forma pedagógica. “O projeto tem o cuidado de produzir uma pauta de comunicação voltada para o compartilhamento e a educação em saúde”, explicou.

A Web Rádio Ajir é uma rádio na internet, com programação diversificada, tratando de questões como saúde, arte, mídia, economia e cultura. “É um ambiente virtual, que desenvolvemos desde 2008. No início, era um projeto de extensão, mas passou a ser de formação e pesquisa”, revelou. De acordo com ele, a rádio foi criada para ser um projeto de extensão no sertão do Ceará, como laboratório de pesquisa da UEC, recebendo, em 2010, o Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa.

Este e outros temas pertinentes à Enfermagem estarão no cerne da próxima edição do Congresso Brasileiro de Enfermagem, entre os dias 27 e 30 de outubro de 2014, na cidade de Belém (PA).

Galeria de Fotos

Comentar