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Saúde Rural em diversos cenários

Evento evidencia diversidade regional, estimula a produção de conhecimento e traz à tona o debate acerca da formação profissional na área.

Ana Paula Evangelista e Flavia Lima

A diversidade da saúde rural no mundo e a importância de formação e recrutamento de profissionais voltados ao cuidado de populações que estão situadas em áreas de difícil acesso estiveram no centro do debate da 12ª Conferência Mundial de Saúde Rural da Wonca (sigla em inglês de Organização Mundial de Médicos de Família), realizada, pela primeira vez no Brasil, em Gramado (RS), de 3 a 5 de abril, concomitantemente ao 4º Congresso Sul-Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade. O evento reuniu cerca de 700 pessoas — entre gestores e representantes das decisões políticas no campo da Saúde Rural — e 26 convidados de 20 países, buscando não somente refletir as diferentes práticas rurais em saúde no mundo como também apontar saídas para o avanço deste campo do conhecimento em países emergentes como o Brasil. “Nesse espaço de convívio, foi possível apontar recomendações e conclusões para o avanço dos serviços de saúde com qualidade nas áreas rurais”, avaliou o presidente do congresso e coordenador do Grupo de Trabalho de Medicina Rural da Sociedade Brasileira de Família e Comunidade (SBMFC), Leonardo Vieira Targa. “É emocionante estar aqui e participar dessa conferência no Brasil e com a participação de países da América do Sul. O Brasil é um grande exemplo de um país que leva a Saúde a sério”, destacou, na cerimônia de abertura, o então presidente da Wonca, Michael Kidd — no encerramento, ele passou o cargo para a médica inglesa Amanda Howe, professora de Atenção Primária à Saúde, da Escola de Medicina de Norwich, no Reino Unido.

O tema do evento — Saúde Rural: uma necessidade emergente — encontrou justificativa no Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta que a populac?a?o rural brasileira corresponde a 15% da totalidade do pai?s. Segundo o IBGE, em 2000, essa populac?a?o correspondia a 19%, enquanto que, em 1980, 32% da populac?a?o brasileira vivia em meio rural. Segundo o levantamento, a população indígena voltou a ser maioria na zona rural: desde 1991, o Brasil ganhou 523.832 indígenas. O maior crescimento demográfico desse grupo ocorreu entre 1991 e 2000, quando 439.996 índios foram incorporados aos cálculos do IBGE. Já, entre 2000 e 2010, o número de indígenas cresceu de 734.127 para 817.963. “O campo da Saúde Rural no Brasil está bastante defasado em relação a muitos países. Há poucos profissionais para atender a diversidade brasileira e faltam políticas públicas”, observou Targa.

Estratégias conjuntas

A conferência foi organizada em workshops, oficinas e rodas de conversa sobre experiências e pesquisas na área, mesas-redondas sobre políticas de saúde e de formação de recursos humanos em Saúde Rural e visitas a serviços de saúde local, a partir de sugestões encaminhadas pelos próprios congressistas. Segundo Targa, o evento destacou-se pelo debate acerca do recrutamento e retenção de profissionais em áreas rurais, focalizando o processo de formação voltado para a realidade rural e o uso de ferramentas tecnológicas para o desenvolvimento da Saúde Rural. ”A programação atendeu a todos os públicos, entre estudantes e residentes e gestores da política pública”, informou, citando como exemplo o debate em torno da comunicação com o paciente que tem dor crônica, que traz à tona a importância de qualificar o profissional na condução e gestão dessas situações. “Foi possível, ainda, tratar do tema do uso de ferramentas e da tecnologia a favor da saúde rural, como o Telessaúde”, citou, em referência ao programa brasileiro, lançado em 2007, com vistas a melhorar a qualidade do atendimento e da atenção básica no SUS, integrando ensino e serviço por meio de ferramentas de tecnologias da informação, que oferecem condições para promover a teleassistência e a teleducação.

Diretor de Programa da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, Giliate Cardoso Coelho Neto falou sobre a importância do trabalho dos médicos de família no desenvolvimento da Saúde Rural. “Apesar das dificuldades com infraestrutura, é maravilhoso o trabalho que realizamos para o desenvolvimento do SUS”, reconheceu. “Compartilhamos de um grande sonho, que é universalizar a atenção básica, fazendo dela, de fato, ordenador do cuidado no SUS”, acrescentou.

O mesmo avaliou Targa, para quem o médico de família e comunidade é preparado para acompanhar os pacientes em seu contexto familiar e social, diagnosticando e tratando os problemas mais frequentes e, principalmente, prevenindo doenças e promovendo a saúde das populações — no Brasil, tais ações se dão por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), referência de atenção à saúde para muitos países, apesar de alguns problemas ainda observados. “O acesso das populações rurais aos serviços básicos de saúde é um desafio em várias partes do mundo, inclusive no Brasil”, frisou o presidente da conferência. Para ele, o problema é agravado, principalmente, pela falta de profissionais qualificados, alta rotatividade profissional e infraestrutura deficiente.

Em sua avaliação, o avanço da saúde rural no mundo, e especialmente no Brasil, depende de uma série de estratégias conjuntas, como, por exemplo, a formação de profissionais voltada para as áreas rurais.  “As recentes políticas de saúde relativas ao recrutamento de profissionais de saúde e ao aproveitamento de recém-formados, para atuarem em áreas rurais brasileiras, são bastante eficientes, mas devem ser encaradas como ações emergenciais e complementares”, orientou, fazendo alussão ao programa brasileiro Mais Médicos, que já levou milhares de médicos, inclusive estrangeiros, para municípios com maior vulnerabilidade social e Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei). “O profissional com a especialização de médico de família e comunidade é capaz de solucionar 95% dos problemas de saúde de qualquer comunidade rural”, resumiu.

América do Sul Rural

A oficina América do Sul Rural, realizada na manhã do primeiro dia de evento (3/4), composta por representantes do Brasil, Uruguai e Colômbia, abordou os problemas e as singularidades desses países frente às políticas de saúde voltadas para a população rural. Dora Patrícia Bernal Ocampo, médica de família e vice-presidente da Sociedade Colombiana de Medicina Familiar, informou que 120 milhões de colombianos vivem no campo e a maioria está excluída das políticas de saúde. “Maior parte dessa população, formada por indígenas e mulheres, é de baixa renda e não recebe assistência de programas governamentais”, caracterizou, informando que a Colômbia precisa inspirar-se no Brasil para mudar esse quadro, uma vez que nosso país, em sua observação, apresenta o maior índice de cobertura da medicina rural da América do Sul.

A coordenadora da Unidade Docente Assistencial Santoral Rural (UDA), do Uruguai, Marcela Cuadrado, por sua vez, apresentou o projeto EcoHealth 2013: agricultura sustentável e saúde. Voltado especialmente aos alunos de medicina, o projeto tem como objetivo promover abordagens para a saúde do ecossistema, enfatizando as interações entre as dimensões ecológicas e socioeconômicas de uma determinada situação e sua influência na saúde humana. Temas como exposição de trabalhadores rurais a agrotóxicos fazem parte da iniciativa, que envolve, também, o Departamento de Medicina Preventiva e Social e a Unidade de Extensão da Faculdade de Medicina, o Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais, o Departamento de Toxicologia da Faculdade de Química e o Projeto Resgate e Reavaliação Criollas Sementes e Soberania Alimentar da Rede Amigos da Terra do Uruguai. Além de aulas teóricas, o projeto inclui trabalho de campo e avaliação continuada dos alunos a partir da participação, interesse, cooperação e atitude. “É uma experiência inovadora que permite a participação direta e consciente do estudante, a partir da investigação, e a detecção precoce de vocações e capacidades de pesquisa”, revelou.

O projeto, segundo Marcela, encontrou justificativa nas mudanças pelas quais a população rural do Uruguai passa. Segundo artigo da UDA, publicado na Revista Salud Pública, em abril de 2014, o país tem uma população de 3.286.314 habitantes e, desse total, 175 mil vivem em áreas rurais e enfrentam grandes mudanças no ambiente, incluindo a adoção em larga escala do modelo agroexportador, a unificação de grandes extensões produtivas de propriedade de investidores estrangeiros, o uso massivo de pesticidas e fertilizantes, a monocultura e a perda da biodiversidade. “Em 1970, 93,2 % dos agricultores eram familiares, enquanto os grandes produtores correspondiam a 6,8% desse grupo. No entanto, em 2010, os produtores familiares recuaram para 37% e os grandes produtores evoluíram para 17,4%”, revelou a pesquisadora com base no artigo, informando, ainda, que há uma grande migração dos jovens das áreas rurais para a cidade, afetando assim a qualidade de vida das famílias.

Ao diretor de Medicina Rural da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Nilson Massakasu Ando, coube falar sobre a importância dos agentes comunitários de saúde e técnicos em enfermagem na promoção da saúde em regiões geograficamente isoladas do Amazonas. “Precisamos rever e ampliar os limites de atuação desses profissionais em regiões de difícil acesso, como no estado do Amazonas”, recomendou, fazendo alusão aos procedimentos que são exclusivos dos médicos.  “Um exemplo clássico disso é a realização do preventivo. Em alguns locais, a equipe de Saúde da Família defende que ele só pode ser feito por um ginecologista, uma vez que a Lei do Ato Médico (nº 12.842, de 10 de julho de 2013) define certas atividades como exclusivas de um médico. Porém, nós defendemos que o profissional de enfermagem possa fazer essa coleta, principalmente quando se trata da população rural, de lugares onde a presença do especialista é rara”, orientou.

Ando fez menção, também, à necessidade de melhorias quanto à formação e à informatização do sistema de saúde rural no Brasil. “Não temos uma formação nas universidades e nos cursos técnicos voltada para as questões rurais. Formamos apenas profissionais para trabalhar em áreas urbanas”, observou.  Quanto à informatização dos sistemas, ele citou o e-SUS como uma das principais estratégias do Ministério da Saúde com vistas a permitir um registro individualizado por meio do Cartão Nacional de Saúde. “O e-SUS faz referência a um SUS eletrônico, que tem como objetivo facilitar e contribuir com a organização do trabalho dos profissionais de saúde”, explicou. A estratégia inclui também o e-SUS Atenção Básica, cujo objetivo é avaliar e acompanhar o processo de trabalho deste nível da atenção, fortalecendo, no território, os processos de gestão do cuidado dos usuários e facilitando a busca de informações epidemiológicas. “Com essa iniciativa, os profissionais da saúde terão ferramentas de auxilio como tablets, que serão usados nas visitas à população”, contou Ando. Segundo ele, em áreas rurais sem acesso à internet, o trabalho se dará por meio de uma unidade móvel com antena via satélite. “Assim, podemos colher as informações e, quando tivermos acesso a um ponto de conexão, faremos a transmissão desses dados”, contou.

Mais médicos

A emergência de mais médicos em regiões remotas foi o foco de debate da mesa-redonda Princípios pedagógicos para a supervisão em programas de provimento (Provab e Mais Médicos). O médico sanitarista Vinícius Muricy da Rocha, professor da Universidade Federal de Campinha Grande (PB) e diretor de Desenvolvimento de Educação e Saúde do Ministério da Educação, discorreu sobre o projeto Mais Médicos, que além de levar mais profissionais para regiões onde há escassez e ausência deles, prevê a expansão do número de vagas de medicina e de residência médica, além do aprimoramento da formação médica no Brasil.

Segundo Rocha, há uma meta de mais vagas para cursos de medicina, especialmente nas instituições federais de ensino superior, com foco na Atenção Básica à Saúde. “Nosso objetivo é aumentar o número de vagas da Residência Médica em torno de 40% e que elas sejam direcionadas para a Medicina de Família e Comunidade”, revelou, lembrando, ainda, que este é um projeto provisório, com perspectiva de execução de 3 a 6 anos, até que medidas estruturantes sejam consolidadas. “É preciso pensar uma rede de preceptores de saúde da família que abarque todos os residentes”, recomendou.

A gerente de projetos da área pedagógica do Departamento de Planejamento e Regulação da Provisão de Profissionais de Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Sgtes/MS), Érika Siqueira da Silva, falou sobre o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), cujo objetivo é estimular a formação do médico para a real necessidade da população brasileira e levar esse profissional para localidades com maior carência.

O programa prevê incentivos aos profissionais que optarem por atuar nas equipes de saúde da família e outras estratégias de organização da atenção básica, incluindo a atenção à saúde das populações ribeirinhas, quilombolas, assentadas e indígenas. Segundo Érika, o médico que participa da edição do Provab 2013 tem a obrigatoriedade de realizar curso de pós-graduação prático-teórico em saúde da família, com 12 meses de duração. Para tanto, o profissional recebe uma bolsa federal no valor de R$ 8 mil (mensais) e tem suas atividades supervisionadas por uma instituição de ensino. Nesse contexto, explicou, a supervisão é fundamental, uma vez que é responsabilidade do supervisor realizar uma avaliação mensal presencial de forma individual de seus supervisionados e manter contato com a Coordenação Nacional do Provab e respectivas comissões estaduais, oferecendo dados referentes aos instrumentos de acompanhamento e monitoramento do programa.

Os supervisores são também responsáveis por manter o sistema de informação oficial do programa atualizado de forma permanente. “É a figura que irá avaliar os médicos, concedendo, por cumprirem as atividades estabelecidas pelo programa, a pontuação adicional de 10% nos exames de residência médica”, esclareceu.  De acordo com Érika, além dos supervisores, os médicos participantes do Provab 2013 contam com os Núcleos de Telessaúde Brasil Redes, a Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UnA-SUS), a Comissão Coordenadora do Provab e o Comitê de Acompanhamento do programa.

Realidades distintas

Na roda de conversa Saúde Rural no Brasil: conhecendo os diferentes cenários, médicos de família e comunidade apresentaram distintas realidades observadas em cada região rural do Brasil, revelando o desejo comum de dar qualidade ao atendimento à saúde das populações. A médica de família e comunidade Ariane Pinheiro falou sobre o perfil da comunidade do município de João Molevade, interior de Minas Gerais, formada, em grande parte, por ciganos. Segundo ela, face ao contexto histórico dos primeiros ciganos que chegaram ao Brasil, essas pessoas são marcadas pelo preconceito, vistas como baderneiras, ladras e enganadoras. “Esse grupo apresenta baixa escolaridade, prevalência de mulheres, expectativa de vida muito baixa, altos índices de alcoolismo, iniciados muitas vezes na infância, além de serem nômades”, enumerou. Somado ao preconceito, acrescentou, “isso faz com que o acesso aos serviços de saúde e o monitoriamente dessas pessoas sejam prejudicados”.

O cenário não se revelou diferente na comunidade quilombola do Vale do Ribeira, interior de São Paulo. De acordo com a médica de família Mônica Correia Lima, os remanescentes de quilombos são igualmente excluídos, porque ainda carregam o preconceito histórico da escravidão. Na comunidade onde atua, contou, foram criados grupos de trabalho com foco na conscientização e na educação em saúde face à necessidade de promover a atenção integral à saúde dessa população. “Eles resistiam em sair da sua região. Depois de muitas conversas, as consultas passaram a ser realizadas em uma unidade de saúde fora do quilombo, oferecendo uma estrutura melhor e com mais qualidade”, revelou.

Em ambulanchas

O atendimento aos povos ribeirinhos — população tradicional que residem nas proximidades dos rios — do estado do Amazonas foi o exemplo dado pelo médico de família rural Ricardo Amaral. Ele trouxe fotos de partos que são feitos em redes e de atendimentos realizados por ambulanchas — unidades móveis de saúde fluviais —, na comunidade ribeirinha de Rosa do Rio Negro (AM), e citou o Programa Saúde Manaus Itinerante Fluvial, por meio do qual o atendimento dos povos ribeirinhos é feito, quinzenalmente, pela ambulancha Catuiara. “O programa, fruto de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Saúde de Manaus e o Tribunal de Justiça do Amazonas, permitiu aos moradores da região do Rio Negro, pela primeira vez, o acesso a exames especializados de mamografia, ultrassonografia e oftalmologia”, contou.

O navio adaptado para tais fins traz consultórios médicos e odontológicos, salas de vacina, farmácia e laboratório e conta com uma equipe multidisciplinar de médicos, enfermeiros, dentistas, bioquímicos, assistente social, técnicos de enfermagem, auxiliar de saúde bucal e de patologia, além do apoio de agentes comunitários de saúde presentes nas comunidades atendidas. “Cada equipe leva, em média, 20 dias de viagem por mês assistindo as comunidades ribeirinhas”, revelou Amaral.

O médico de família Nilson Massakasu Ando apresentou o trabalho desenvolvido com as populações em áreas confinadas do Amazonas, onde o acesso somente é possível por meio de aviões, uma vez que, pelo rio, a equipe de saúde levaria em torno de sete dias de viagem. De acordo com Ando, os profissionais que atuam nessas regiões precisam desenvolver habilidades diferenciadas, incluindo as relações com a natureza.

Marcados pelo preconceito

Cenário similar, o médico de família e comunidade Rodrigo Pinheiro Silveira, do Acre, falou sobre o atendimento aos indígenas, que além do isolamento geográfico, sofrem com problemas que vêm de encontro com as questões culturais, como o alcoolismo. Nesse contexto, revelou, os agentes comunitários indígenas de saúde cumprem papel essencial. “Os agentes indígenas de saúde são profissionais híbridos, uma vez que conhecem a saúde e a cultura da comunidade”, observou.

Na região Sul do país, surgiu uma experiência bastante diferente das demais apresentadas. O médico de família e comunidade Fabio Duarte Schwalm discorreu sobre o trabalho desenvolvido no pequeno município de Barão, interior do Rio Grande do Sul, onde 80% da população são descendentes de alemães e 20%, de italianos. “As dificuldades enfrentadas pela equipe de saúde da família não dizem respeito ao acesso e à estrutura das unidades de atendimento, mas a fatores culturais muito enraizados nessas populações”, descreveu. Segundo Schwalm, em Barão, observa-se elevados índices de obesidade, inclusive na população infantil, e de alcoolismo, que podem ser explicados pela cultura do consumo de alimentos gordurosos e cerveja. Em contrapartida, a expectativa de vida é muito alta, sendo necessário, também, um atendimento especial aos idosos e uma atenção qualificada à saúde mental. “Há, também, uma grande porcentagem de casamentos consanguíneos — relações matrimoniais entre indivíduos com grau de parentesco muito próximo —, o que contribui para os índices de problemas hereditários, como a anemia falciforme”, acrescentou.

No atendimento realizado na unidade de saúde da cidade e nas visitas domiciliares, ele conta com a participação de duas técnicas em enfermagem que moram na comunidade. “Elas, além de profissionais de saúde, são também tradutoras, já que a maior parte dos moradores tem o alemão como idioma oficial”, revelou. O médico de família informou que cada morador tem um número de consultas anuais superior à média nacional, face ao número de habitantes (seis mil) que residem no município.

Coube ao médico de família e comunidade Hiroki Shinkai, que atua no estado do Ceará, revelar a realidade do sertão nordestino. Segundo ele, a seca que assola boa parte da região não é a maior dificuldade enfrentada pelos profissionais de saúde, mas sim o excesso de chuva. “Se chover além do normal, as estradas se tornam intransponíveis, os carros ficam atolados e temos que seguir a pé com os sapatos nas mãos”, contou. O Sertão nordestino é uma das quatro sub-regiões do Nordeste do Brasil, estendendo-se por grande parte da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas, Piauí e por todo o Ceará, incluindo, ainda, a Mesorregião Norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e trechos do norte do Espírito Santo. De acordo com Shinkai, as chuvas concentram-se em apenas três ou quatro meses do ano, maior parte da população que vive nessas áreas é de baixa renda e alguns locais não têm luz elétrica.

Problemas comuns

Para entender melhor esta realidade, Shinkai realizou uma pesquisa comparativa, por meio da qual aplicou um questionário online, enviado por e-mail, a 45 profissionais médicos de equipes de Saúde da Família de áreas urbanas e rurais de Sobral (CE). Ele avaliou a satisfação com o ambiente de trabalho, a equipe, a qualidade do atendimento, a disponibilidade de materiais e o grau de reconhecimento social. Os indicadores de satisfação que apresentaram os piores resultados foram, segundo o médico, stress, ambiente físico, materiais e adesão. O pior indicador apontado pelos médicos da zona urbana foi o stress. Já, os médicos da zona rural, identificaram o ambiente como pior indicador de satisfação. “Apesar das diferenças, os resultados sugerem melhorias nas condições de trabalho e carreira do médico de família e comunidade das duas áreas”, concluiu.

Os assentamentos rurais também foram focos de debate da roda de conversa. De acordo com o médico de família e comunidade André Luiz da Silva, apenas um terço das pessoas em assentamentos tem acesso a serviços de saúdes completos e funcionando junto as suas comunidades. Silva lembrou que os serviços de atenção básica à saúde, cuja distribuição é bastante irregular pelos assentamentos rurais e urbanos, além de melhorar os indicadores de saúde, configuram-se estratégia de inclusão social e eliminação de preconceitos, por considerar a forma como essas comunidades se organizam. “A atenção básica pode ser um elemento mediador da relação com os movimentos sociais, uma vez que está atenta aos princípios de continuidade e reconstrução de legitimidades e tem protagonismo no processo de redução das iniquidades”, explicou. O médico focalizou, também, a necessidade de políticas de fixação de profissionais qualificados nessas regiões e lembrou que os movimentos sociais são capazes de organizar a saúde como um projeto político coletivo, adotando estratégias que tenham como referência as metodologias participativas.

Contribuições de Freire

Na mesa-redonda Integralidade na Saúde Rural: contribuições da pedagogia freiriana, o médico de família do Centro de Saúde Lagoa da Conceição, em Santa Catarina, Murilo Leandro Marcos, falou sobre a importância da literatura de cordel no cuidado da saúde do pequeno município do interior catarinense. Para relatar sua experiência, ele trouxe uma viola e cantou e tocou, alegrando o público, o cotidiano de seu trabalho como médico de família. “Nas cidades do interior, não temos muitas opções. Então, usamos a literatura de cordel na atenção integral à saúde da população. Caso contrário, teríamos que voltar para a cidade e não teríamos concluído o trabalho”, recordou. A ação da equipe do Centro de Saúde Lagoa da Conceição toma como base a cultura e as tradições locais. “Sempre buscamos dialogar com os moradores, entendendo suas diferenças. Esse trabalho serviu para mostrar aos moradores que não sou médico de uma parte da população, mas de um município”, resumiu.

Ao fim do evento —  cuja 13ª edição terá como sede a cidade do Rio de Janeiro, em 2016 —, Targa leu a Declaração de Gramado pela Saúde Rural, como foi chamado o documento final da 12ª Conferência Mundial de Saúde Rural da Wonca, sugerindo, entre outras ações, ampliar a formação e a capacitação de médicos especializados no atendimento às famílias e às comunidades rurais e descentralizar os cursos de medicina. “Precisamos ter políticas públicas para as áreas rurais, descentralizar os cursos de medicina e recrutar profissionais”, recomendou.

Tema de destaque das ETSUS

Com o objetivo de qualificar os trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS), as 40 escolas que integram a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS) também realizam ações em áreas remotas e rurais de todo país, a exemplo da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (ESP-MG). A partir de demanda apresentada durante o 3° Encontro dos Movimentos Sociais Mineiros, ocorrido em abril de 2011, em Belo Horizonte, a ESP-MG iniciou, em 2012, duas turmas da Oficina de Educação Popular em Saúde Mental para populações assentadas e acampadas em projetos de reforma agrária do estado de Minas Gerais. 

A iniciativa, construída por um grupo de trabalho formado por representantes da própria escola e da Secretaria de Estado de Saúde de Minas e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Minas Gerais, compreendeu 35 alunos, entre cuidadores populares, lideranças de saúde, assentados e acampados em áreas do MST de diversas regiões do estado, além de 35 trabalhadores da Rede de Saúde Mental e da Atenção Básica do SUS mineiro, abarcando, ao todo, 35 municípios.

O processo formativo foi organizado em três momentos presenciais, realizados na sede da ESP-MG, em Belo Horizonte, e em atividades locais e regionais. A primeira etapa presencial contou com a participação das lideranças de saúde dos assentamentos e acampamentos do MST durante quatro dias. A programação envolveu rodas de conversas, socialização de experiências e trabalhos de grupos que trataram de temas como saúde das mulheres do campo, cuidado em saúde mental, uso nocivo de álcool e outras drogas, redução de danos e direito ao SUS, além de oficinas práticas sobre terapia floral, homeopatia, fitoterapia e massoterapia e apresentações teatrais.

Escola e comunidade

Na segunda etapa, foram abordados os temas do processo histórico, organização e objetivos do MST, da saúde das populações do campo e da floresta, das práticas populares de cuidado no MST, do cuidado em saúde mental e do uso de álcool e outras drogas. Nessa fase, foram realizadas atividades de concentração (tempo escola) e de dispersão (tempo comunidade). “Para os representantes do MST, o tempo comunidade consistiu na realização de um mapeamento das situações de saúde identificadas nas áreas de assentamento e acampamento, e que contou com a contribuição dos coletivos de saúde locais, regionais e demais integrantes da coordenação da área”, exemplificou Bianca Rückert, referência técnica da Oficina na ESP-MG. Segundo ela, o mapeamento contemplou a situação de acesso aos serviços de saúde — em especial, à rede de saúde mental —, os principais problemas de saúde mental enfrentados por essas populações, as condições de vida e as práticas de saúde realizadas no âmbito comunitário.

As atividades de dispersão também abarcaram as oficinas locais, que envolveu as famílias das áreas participantes do projeto. “O momento consistiu na realização de uma visita a uma área de assentamento ou acampamento, na elaboração de um registro sobre essa visita e no mapeamento da rede de atenção psicossocial de abrangência das respectivas áreas de reforma agrária visitadas”, revelou Bianca.

A terceira etapa da oficina, cujo objetivo foi propiciar a integração e a aproximação entre os participantes do MST e os profissionais de saúde do SUS, tratou de temáticas relacionadas à política do SUS e sua interlocução com a saúde do campo e a saúde mental, incluindo discussões sobre a reforma psiquiátrica, os serviços substitutivos, o uso nocivo de álcool e outras drogas e a estratégia de Redução de Danos, reconhecendo e ressaltando os saberes e as práticas de cuidados utilizados pelo MST. “O momento permitiu a elaboração conjunta de estratégias de ação, envolvendo SUS e MST, com vista à efetivação do direito à saúde por parte das populações da reforma agrária, em especial relacionado à atenção psicossocial”, destacou. A terceira etapa, segundo Bianca, teve duração de dois dias para os trabalhadores do SUS e de quatro dias para os integrantes do MST.

Estórias ‘reais’

O curso culminou, ainda, na elaboração do caderno Cuidados em Saúde Mental: diálogos entre o MST e o SUS. “A publicação revela as discussões promovidas na oficina por meio de estórias contadas por três personagens. Eles falam sobre as experiências trocadas e as práticas propostas para o cuidado em Saúde Mental das populações assentadas e acampadas do MST”, contou. O caderno traz também algumas receitas utilizadas por lideranças de saúde do MST nos assentamentos e acampamentos e informações sobre a atenção em saúde mental nas redes do SUS.

Em sua avaliação, a oficina não somente permitiu a aproximação e o diálogo entre assentados, gestores, trabalhadores do SUS e educadores como também a construção de saberes e práticas de cuidado no campo da saúde mental, estruturados a partir dos princípios e valores do MST, da pedagogia do movimento, da reforma psiquiátrica e da proposta de redução de danos. “Conseguimos dar visibilidade, valorizar e fortalecer as práticas e os saberes populares de cuidado, em especial as relacionadas às práticas integrativas e complementares desenvolvidos pelo MST”, resumiu.

Para Bianca, quando se trata do tema da saúde da população do campo, é necessário destacar as condições de vida e infraestrutura desses povos, os conflitos e a violência no campo, o perfil de adoecimento relacionado ao trabalho e ao meio ambiente e a precariedade de acesso aos serviços de saúde. “Tais aspectos irão evidenciar enorme diferença entre as populações do campo e urbana e permitirá planejar estratégias mais condizentes para os povos do campo e da floresta”, frisou.

Pedagogia da terra

Trabalho semelhante pode ser observado na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), no Rio de Janeiro.  Pesquisador do Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa) da EPSJV, graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal de Pelotas, com especialização em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o professor-pesquisador André Campos Búrigo revelou que são dez anos de cooperação da escola com o MST. Primeiro surgiu um projeto de pesquisa sobre determinantes sociais de saúde em áreas de reforma agrária. “Essa cooperação começou força, em 2007, com a participação da EPSJV em um seminário de educação profissional realizado no Instituto de Educação Josué de Castro, no Rio Grande do Sul”, recordou.

Entre 2008 e 2009, a escola promoveu o primeiro Curso de Especialização Técnica em Saúde Ambiental para as Populações do Campo. A formação, segundo Búrigo, teve como base curricular elementos centrais da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta — em construção na época —, além de incorporar os saberes da pedagogia da terra, trazendo o território da reforma agrária enquanto elemento central.

O curso da EPSJV teve carga horária de 720 horas, formando 26 alunos de 12 estados das cinco regiões do país, contou com financiamento da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) e foi realizado em quatro etapas de tempo escola (aulas presenciais) — Conhecendo o lugar da produc?a?o social da sau?de da populac?a?o do campo; Analisando a sau?de ambiental da populac?a?o do campo; Analisando os problemas de sau?de ambiental da populac?a?o do campo; e Intervindo sobre problemas de sau?de ambiental da populac?a?o do campo —, e cada uma teve duração de três semanas.

As três primeira etapas foram realziadas em uma área de assentamento da Reforma Agrária, localizada no Centro de Formação Maria Olinda, no município de São Mateus, no Espírito Santo. A última etapa aconteceu no bairro de Curicica, zona oeste do Rio de Janeiro, onde havia uma unidade da Fiocruz que oferecia a infraestrutura necessária para acolher um curso durante 30 dias. “Foi um trabalho importante para a escola, pois foi realizado dentro de um espaço do MST, erguido pelas mãos dos trabalhadores”, destacou.

O curso resultou de dois projetos da escola: Determinantes sociais da sau?de nos territo?rios de assentamentos do MST: elementos para a elaborac?a?o de proposta de formac?a?o em sau?de ambiental para a populac?a?o do campo; e Formac?a?o de formadores em Sau?de Ambiental nos territo?rios dos assentamentos do MST: uma estrate?gia para o enfrentamento dos determinantes sociais da sau?de da populac?a?o do campo.

Experiências exitosas

O interesse da EPSJV na população rural e no tema da reforma agrária, fomentado pela 1ª Conferência Nacional de Saúde Ambiental, realizada em 2009, implicou, ainda, a promoção do Curso de Especialização Técnica em Políticas Públicas de Saúde. “Na conferência, foi realizado um encontro com movimentos sociais e pesquisadores da Saúde do Campo, chamando atenção para a necessidade da formação”, lembrou Búrigo. Entre 2010 e 2011, a escola promoveu o curso, cujo objetivo foi formar trabalhadores rurais em Políticas Públicas de Saúde, no Centro de Formação Hélio Fraga, em Curicica (RJ). Entre 2011 e 2013, a escola também ofertou o curso de pós-graduação Trabalho, Educação e Movimentos Sociais. “A formação trouxe à tona o debate da politecnia e do referencial teórico que está por trás das categorias de trabalho e educação e permitiu a escola se aproximar ainda mais dos desafios da educação do campo”, avaliou.

O curso com maior enfoque nos territórios da Reforma Agrária, voltado para os povos do campo e da floresta, foi iniciado pela EPSJV em setembro de 2012. O Curso Técnico em Meio Ambiente, com ênfase em Saúde Ambiental das Populações do Campo, contemplou integrantes de movimentos sociais de diversos estados do Brasil. Búrigo revelou que a iniciativa teve como objetivo formar trabalhadores rurais com uma visão integral e crítica sobre os diferentes territórios, permitindo a identificação e o enfrentamento dos principais determinantes sociais da saúde das populações do campo e fortalecendo a luta dos movimentos sociais pela construção de ambientes saudáveis e sustentáveis.

A formação, realizada nos estados do Ceará e Paraná, teve a duração de um ano e dois meses, com carga horária de 960 horas, divididas em tempo escola (aulas presenciais), tempo comunidade (trabalho de campo para estudo e pesquisa nos territórios de origem dos educandos) e estágio supervisionado, e foi organizada em três eixos transversais — Ontem e hoje, nossa terra: o território na América Latina; Das ameaças à promoção da vida; e Produzindo e sistematizando conhecimento, saberes e práticas para a promoção de territórios saudáveis —, que, por sua vez, foram compostos por quatro unidades de aprendizagem — Planejamento; Produção de ambientes saudáveis; Política, trabalho, ciência e cultura; e Trabalho de campo e estágio.

Brasil a fora

No Ceará, o curso aconteceu na Escola de Ensino Médio João dos Santos Oliveira, localizada no Assentamento 25 de Maio, no município de Madalena. No Paraná, as aulas ocorreram no Centro de Desenvolvimento Sustentável e Capacitação em Agroecologia (Ceagro), no Assentamento Ireno Alves, no município de Rio Bonito do Iguaçu. Búrigo informou que, durante o curso, o laboratório da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), no campus de Laranjeiras do Sul, no Paraná, foi utilizado pelos professores. “A UFFS foi a primeira experiência de um campus universitário dentro de uma área de reforma agrária”, ressaltou, acrescentando que as escolas técnicas do SUS dos dois estados também foram convidadas a participar do curso.

Segundo o pesquisador, o curso foi construído em cooperação técnica com o MST, o Núcleo TRAMAS (Trabalho, Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade) da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e o Centro de Desenvolvimento Sustentável e Capacitação em Agroecologia (Ceagro). “A nossa maior preocupação foi com relação ao êxodo rural. Hoje, a juventude quer estudar, mas também quer saber o que fazer da vida dela depois do estudo. A ideia era promover um curso de saúde ambiental e por meio do qual os técnicos tivessem como base o território, a exemplo dos cursos técnicos em Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Vigilância em Saúde”, explicou. “A proposta geral é ter pessoas formadas que possam contribuir com o desenvolvimento dos territórios da reforma agrária, conseguindo perceber os grandes elementos e os impactos sobre a saúde das populações e intervir nesse processo”, acrescentou, lembrando que a população do campo, na última década, tem enfrentado impactos bastante negativos.

Em 2013, a EPSJV lançou o Dicionário da Educação do Campo. Segundo Búrigo, o livro pretendeu fazer uma síntese sobre a compreensão teórica e prática da Educação do Campo. Os verbetes selecionados referem-se a conceitos ou categorias que expressam, sob a perspectiva dos movimentos sociais camponeses e de suas lutas, os fundamentos filosóficos e pedagógicos da educação do campo, articulados em torno dos eixos Campo, Educação, Políticas Públicas e Direitos Humanos. “A publicação permite conhecer a questão agrária no país”, contou. O dicionário é dirigido a educadores das escolas do campo, pesquisadores da área da educação, estudantes de ensino médio à pós-graduação, integrantes dos movimentos sociais e lideranças sindicais e políticas comprometidas com as lutas da classe trabalhadora.

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