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Eno Filho

‘Aplicação clínica da espiritualidade é apoiar os recursos internos que as pessoas já têm’

Jéssica Santos

 

A relação entre saúde e espiritualidade apresenta-se como importante campo de estudos científicos da atualidade. No livro Medicina, Religião e Saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade, Harold G. Koening, considerado um dos maiores estudiosos do tema, reafirma a importância que as emoções têm sobre os sistemas de cura do corpo e se afirma a favor de uma conexão entre religião e saúde quando há a predominância de evidências. O argumento é compartilhado pelo médico de família e comunidade Eno Dias de Castro Filho, mestre em Educação e doutor em Epidemiologia. O especialista trabalhou na gestão municipal do SUS em Porto Alegre e há 17 anos atua no posto Barão do Bagé, vinculado ao Serviço de Saúde Comunitário do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), em Porto Alegre (RS). Ele é, também, teleconsultor pelo núcleo Rio Grande do Sul do Programa Telessaúde Brasil Redes, do Ministério da Saúde.

Em entrevista à Revista da RET-SUS, Eno Filho explica como a espiritualidade e a religiosidade podem influenciar o processo de saúde-doença e cita pesquisas científicas úteis a quem está no serviço da Atenção Básica ou atua na formação de profissionais do SUS. “As hipóteses dessa relação incluem o suporte social recíproco, a adoção de comportamentos que reduzem a exposição a fatores de risco e o estímulo ao altruísmo, à tolerância e ao desapego, minimizando o estresse e trazendo efeitos positivos à saúde mental e ao sistema imunitário”, apontou.
 

O que é aplicação clínica da espiritualidade e o que se entende por espiritualidade?

Significa apoiar os recursos internos que as pessoas já têm, sob os aspectos da fé, os valores transcendentes e a relação com o Sagrado, com foco no desenvolvimento de uma vida saudável e no enfrentamento do sofrimento e da doença.Espiritualidade pode ser entendida como dimensão pessoal e comunitária de busca de respostas para o sentido da vida, de celebração da gratidão essencial e de expressão de esperanças profundas. Tudo isso diz respeito ao Sagrado, ao Transcendente, a Deus ou à fonte da existência.

Qual a diferença entre espiritualidade ou participação religiosa?

A espiritualidade pode ser vivenciada no interior de uma tradição religiosa ou de modo independente. A religião é uma maneira sistemática de vivenciar a espiritualidade a partir de uma relação específica com o transcendente à luz de uma crença que atravessa gerações e organiza a prática comunitária e individual da espiritualidade.

Como a espiritualidade e a religiosidade podem influenciar o processo de saúde-doença?

Cogita-se que a influência das religiões e das espiritualidades sobre a saúde e a doença pode se dar por diferentes vias. Isso ainda é assunto de pesquisas, mas as hipóteses incluem o suporte social recíproco, a adoção de comportamentos que reduzem a exposição a fatores de risco e o estímulo ao altruísmo, à tolerância e ao desapego, minimizando o estresse e trazendo efeitos positivos à saúde mental e ao sistema imunitário. A questão da ação divina ou do espírito não é tema das cogitações científicas, porque, por definição, o transcendente (fora do alcance da ação ou do conhecimento) não pode ser enquadrado e testado cientificamente.

Há evidências científicas da influência do papel da espiritualidade e da religiosidade nas condições de saúde das pessoas?

Sim. Há um grande número de pesquisas científicas nesta área e os resultados, geralmente, apontam efeitos protetores da vida e da saúde. Há, também, formas de vivenciar a espiritualidade e a religiosidade que podem prejudicar a saúde. É o caso de crenças que apontam para um Deus do castigo ou para a submissão de outras pessoas.

Poderia citar pesquisas científicas que investigam essa relação?

Há pesquisas que apontam redução da mortalidade geral, aumento de sobrevida diante de doenças diversas, melhora da qualidade de vida diante de doenças que levam ou levarão ao sofrimento e/ou à morte, redução de parâmetros patológicos, como níveis pressóricos arteriais elevados, bem como da depressão. Há, também, estudos comparativos com intervenções usuais para os mesmos problemas ou objetivos, como as estatinas (medicamentos para baixar colesterol). Entretanto, o esforço para aperfeiçoar essa área de pesquisas ainda deve aumentar muito. A obra de autoria do doutor Harold Koenig revisou a maior parte dos estudos disponíveis.

Esse campo de investigação pode ser útil às práticas da Atenção Básica à Saúde, especificamente aos profissionais de nível médio que atuam na Atenção Básica?

Certamente. Trata-se de um recurso efetivo, cujo custo é apenas o da formação dos profissionais para aproveitá-lo adequadamente e que diz respeito ao dia a dia de toda a população e das equipes de saúde. Os profissionais de nível médio e os agentes comunitários de saúde que atuam em atenção primária tratam diretamente com as pessoas em sofrimento. Está ao seu alcance o apoio às pessoas que fazem uso dos recursos da espiritualidade no autocuidado e dos seus familiares.

Como os profissionais de saúde de nível médio podem se utilizar desse conhecimento?

Antes de tudo é fundamental que todo trabalhador de atenção básica evite, a todo custo, influenciar as pessoas com suas próprias crenças. Apoiar o uso da espiritualidade em prol da saúde é o oposto do proselitismo e da conquista de fiéis para qualquer prática ou religião. Significa deixar a pessoa à vontade para falar sobre sua fé ou ausência dela, acolhendo e respeitando, potencializando os aspectos das crenças que porventura a pessoa tenha e que sejam positivos para a saúde. Se o trabalhador de saúde se julgar em conflito sobre como fazer isso, é melhor que não o faça e busque, na equipe ou em recursos da comunidade, alguém mais preparado.

Abordar as questões da espiritualidade implica fortalecer os processos de humanização?

A espiritualidade é uma característica ancestral do ser humano. Mesmo pessoas que se professam sem crenças espirituais, em alguns estudos, revelaram que sua confiança em quem as trata aumentaria se elas produzissem uma abertura para abordagem de temas do gênero. Sendo uma característica humana, abordá-la com respeito e habilidade implica produzir efeitos positivos na humanização dos serviços de saúde em geral e na capacidade de cuidar.
 

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