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entrevista
Oscar Feo

‘A saúde passou a ser um espaço fundamental da economia’

Maíra Mathias


As políticas de saúde passaram a ser influenciadas pelos interesses do Complexo Médico-Industrial e Financeiro da Saúde. A análise é do médico venezuelano e coordenador nacional da Universidade de Ciências da Saúde da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba), Oscar Feo, expoente do pensamento da Medicina Social latino-americana. Em visita à Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), no Rio de Janeiro, em agosto deste ano (ver págs. 22 a 25), Feo concedeu entrevista à Revista RET-SUS, alertando para o interesse de entidades financeiras, como o Banco Mundial, em participar da elaboração das políticas de saúde em nível global, em contraposição ao que defende a Medicina Social. “Há um texto do Banco Mundial que diz claramente que a saúde é uma responsabilidade individual e o Estado deve intervir só para garantir assistência mínima para os que fracassam no mercado”, critica. Ele discorre, também, sobre o modelo venezuelano de formação em saúde, pautado em princípios que são defendidos pela RET-SUS, como inclusão e trabalho como princípio pedagógico. “Nós tratamos de construir algo totalmente diferente. Isso implicou romper o caráter classista e excludente da formação universitária”, declarou.

 

O que a Medicina Social propõe?

A Medicina Social, que no Brasil se chamou Saúde Coletiva, tem quatro grandes componentes: saúde como direito; determinação social da saúde; participação social; e universalização da saúde. O movimento propõe a saúde como direito — que deve ser garantido unicamente pelo Estado, em oposição ao conceito de saúde como mercadoria. Propõe, também, a determinação social da saúde. Isso quer dizer que a gênese de doenças, desigualdades e iniquidades diz respeito ao modelo de desenvolvimento e consumo capitalista, que é preciso observar as condições de vida que adoecem ou promovem a saúde, como alimentação, educação, cultura, lazer etc. Um terceiro componente fundamental é a participação da sociedade organizada, que não pode ser convertida em uma burocracia ou assembleia que se reúne uma vez ao ano. O povo deve ser o protagonista da ação sobre os determinantes e os sistemas de saúde. Isso nos leva ao quarto elemento: o sistema de saúde público e universal não é só para os pobres. É necessariamente um sistema para todos. Dizia outro dia um governante sul-americano que a única forma de demonstrar que temos um bom sistema de saúde é quando os dirigentes do país são atendidos por ele. Esse é o principio de coerência entre o discurso e a prática.

O senhor define a Medicina Social como um pensamento contra-hegemônico, que se contrapôs à hegemonia da Saúde Pública de viés biologicista, centrada na enfermidade. O que isso significa?

Na década de 1990, houve uma mudança fundamental: desapareceu a bipolaridade que cindia o mundo em capitalista e socialista. A partir desse momento, passamos a vivenciar o que se chama hegemonia planetária do capital. O que é hegemonia, segundo Gramsci [Antonio Gramsci, filósofo e cientista político italiano, nascido em 1891 e falecido em 1937]? É quando a classe dominante faz com que as classes subordinadas assumam as concepções de classe dominante sem coerção. O que é mais eficaz: dominar alguém pela força ou pelo pensamento? Hoje, essa hegemonia faz com que as pessoas pensem segundo a lógica do capital, substanciosamente veiculada pelos meios de comunicação. A tarefa fundamental é quebrar essa hegemonia. Por isso, exaltamos a necessidade de construir um pensamento e uma ação contra-hegemônicos.

Pode dar um exemplo?

Há um texto do Banco Mundial [Financiamento dos sistemas de saúde, de 1989] que diz claramente que a saúde é uma responsabilidade individual e o Estado deve intervir só para garantir assistência mínima para os que fracassam no mercado, ou seja, os pobres. Partindo dessa lógica, se constituiu um mito na Saúde Pública — estudado nas escolas, inclusive — de que são quatro as funções dos sistemas de saúde: gestão; asseguramento; financiamento; e prestação de serviços.  Essa teoria foi a base funcional para argumentar que ao Estado só cabe a gestão. Todo o resto pode ser transferido para a iniciativa privada. Nós, da Medicina Social, nos posicionamos contrários a essa abordagem, defendendo que a função fundamental do sistema de saúde é garantir o direito à saúde do povo. Para isso, temos que ter o controle total do sistema de saúde.

O que acontece no cenário internacional das políticas de saúde?

Hoje, a saúde é a terceira indústria que mais lucra no mundo, depois da eletrônica e de telecomunicações, acima das armas e do petróleo. Isso faz com que as políticas sejam influenciadas pelos interesses do que estamos chamando, na América Latina, de Complexo Médico-Industrial e Financeiro da Saúde, conformado pelas grandes corporações privadas. Essas empresas não têm como interesse a saúde da população e, sim, a acumulação de capital e a realização do lucro. O melhor exemplo disso é a criação da proposta de Cobertura Universal de Saúde, apresentada durante a Assembleia Geral das Nações Unidas de 2013 pela Organização Mundial da Saúde [OMS] e seus parceiros, Banco Mundial e Fundação Rockefeller.

O senhor aborda a atuação articulada de agências, como o Banco Mundial, e entidades, como a Fundação Rockefeller, na proposição de um novo eixo orientador para as políticas de saúde globais, intitulado Cobertura Universal de Saúde. O que estaria por trás disso?

Devemos estar bastante alertas para a forma como hoje se camuflam as políticas neoliberais e ter em mente que a saúde passou a ser um espaço fundamental da economia. Nos anos 1990, os neoliberais eram mais sinceros, falavam em privatização. Hoje, qualquer texto do Banco Mundial discorrerá sobre direito e equidade. Conceitos fundamentais foram transformados em instrumentos funcionais.

A quem esse conceito de cobertura universal atenderia?

Não sei bem se em português acontece o mesmo, mas, em espanhol, cobertura é uma palavra que diz respeito à quantidade de serviços cobertos, profundamente vinculada à indústria asseguradora. Foi um ato falho. Nós, da Venezuela e do Brasil, defendemos o acesso universal por meio de sistemas de saúde públicos e universais e estamos querendo demonstrar que a proposta de cobertura universal é funcional ao mercado e ao capital. Ela foi assumida pela OMS e pela Opas [Organização Pan-Americana da Saúde] depois de ser desenhada nos grandes centros financeiros internacionais. A Fundação Rockefeller é um exemplo disso. Ela é o braço filantrópico da Exxon Mobil, indústria petrolífera fundada por John Rockefeller em 1870. Em 1978, em uma cidade da extinta União Soviética, se realizou uma reunião da OMS [tratou-se da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, mais conhecida como Alma-Ata], clamando a ‘Atenção Primária em Saúde para todos no ano 2000’. O que fez a Fundação Rockefeller? Reuniu, no ano seguinte, um grupo de especialistas em seu centro de formação em Bellagio [Itália] e converteu o que era uma concepção integral da saúde em uma APS seletiva, voltada para a prestação de um pequeno pacote de serviços para os pobres, como imunização, orientação à amamentação etc. É isso o que querem fazer com a cobertura universal.

O mesmo aconteceu com a área da formação?

Nos anos 1990, paralelamente às reformas privatizantes da saúde, houve reformas para converter a educação em um instrumento funcional ao mercado. Surgiu a ideia da educação por competências, entendendo que educação não é para produzir conhecimento, mas, sim, pessoas com competências para o trabalho. Há escolas de Saúde Pública que, hoje, ensinam marketing ao invés de epidemiologia — ou ensinam uma epidemiologia acrítica. Isso talvez explique o motivo pelo qual o Brasil, apesar de formar muitos médicos, precise trazer profissionais de fora. Porque os médicos, aqui, se formam para o mercado, para a prática privada. Acontece o mesmo em todos os países. Há que começar a formar profissionais com compromisso, vocação, mística, amor e solidariedade. Mas isso não acontece quando o modelo educativo está voltado para o mercado. Precisamos construir, nesse caso, soberania educativa.

A Venezuela, desde 1999, propõe um modelo de formação que está em consonância com princípios defendidos pela RET-SUS, como inclusão e trabalho como princípio pedagógico. Como esses princípios se articulam à formação dos profissionais da Saúde?

O modelo formativo hegemônico tem quatro características fundamentais: excludente; fragmentado; centrado na enfermidade; e tem como espaço fundamental de prática o hospital. Nós [Venezuela] tratamos de construir algo totalmente diferente. Se antes, havia apenas cem vagas para o curso de Medicina, hoje, todos que querem estudar podem fazê-lo. Temos 30 mil estudantes, quando antes havia dois mil. Isso implicou romper o caráter classista e excludente da formação universitária, transformando o país em universidade — o Barrio Adentro [principal programa do Ministério da Saúde venezuelano] é a nossa universidade. Para fazer frente à fragmentação, por meio da qual se divide o ensino em especialidades e disciplinas e se ensina anatomia apartada da fisiologia ou a bioquímica separada da histologia, propomos um modelo integrador, no qual não mais se ensina pediatria — mas atenção integral à criança —, nem anatomia e bioquímica — mas, integradamente, as ciências morfofisiológicas. Na contramão da centralidade na enfermidade proposta pelo velho modelo, temos como foco o conhecimento dos determinantes para que possamos atuar sobre a doença. Por fim, é um modelo de ‘portas abertas’, que não está centrado nos hospitais, mas difundido por toda a comunidade, no qual o médico não fica sentado no consultório à espera do paciente. Ele vai ao encontro das pessoas, realizando visitas familiares e participando com a comunidade do controle das condições que adoecem e da promoção de um modelo de vida saudável.

Como se dá a formação dos profissionais de nível médio?

Isso é, ainda, uma debilidade e, por isso, para nós [Venezuela], essa escola [EPSJV] é um exemplo a ser seguido. Temos cerca de onze programas nacionais que formam especialistas em reabilitação, terapia ocupacional, órteses e próteses, fonoaudiologia etc. Cremos que é necessário romper com o caráter medicalizado, centrado na formação de médicos. É indispensável ampliar a formação já que nosso problema não é a Medicina nem a doença, mas manter a população em condições saudáveis. E, para isso, precisamos de uma equipe de trabalho na qual o centro não é o médico e, sim, a população.
 

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