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Um dia para entrar na história da Rede

Turma-piloto do mestrado profissional da RET-SUS inicia com debate sobre a iniquidade do acesso a uma formação em ciência e tecnologia de qualidade.

Maíra Mathias


O dia 1º de setembro de 2014 marca a história da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), dando início ao Mestrado Profissional em Educação Profissional em Saúde para os trabalhadores das Escolas Técnicas do SUS (ETSUS). Fruto de um convênio entre o Ministério da Saúde e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), a turma-piloto é composta por 21 profissionais das nove escolas do Nordeste. “O curso teve um percurso duro até sua concretização. Mas, se pretendemos fazer um SUS diferente, isso passa pela sala de aula, por uma formação consistente que potencialize a atuação dos atores locais dentro das secretarias de saúde”, avaliou o coordenador-geral de Ações Técnicas em Educação na Saúde do Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Deges/SGTES/MS), Aldiney Doreto, ao dar boas vindas aos alunos.

O diretor da EPSJV, Paulo César Ribeiro, lembrou que a oferta é um “sonho antigo” da escola e uma forma de estreitar ainda mais relações com as demais instituições da RET-SUS. “A Fiocruz entende a importância da formação de trabalhadores técnicos como forma de consolidar e tornar o sistema de saúde efetivamente universal”, disse, lembrando a importância de fazer com que os trabalhadores entendam-se como parte de um modelo produtivo que atua, interfere e atravessa a organização do SUS. “Os interesses em disputa são muitos e precisamos ter clareza de quais são eles para que possamos refletir criticamente e tenhamos capacidade de intervir e transformar esses processos”, acrescentou.

Aula inaugural

A iniquidade do acesso a uma formação em ciência e tecnologia de qualidade e os consequentes impactos para a classe trabalhadora foram algumas das reflexões trazidas pela doutora em Educação e professora da Universidade Feevale, em Nova Hamburgo (RS), Acacia Kuenzer, durante a aula inaugural do mestrado profissional. Sob o tema A dualidade estrutural e suas manifestações no capitalismo contemporâneo, a professora buscou apontar as diferenças entre dois momentos do modo de produção capitalista — taylorismo/fordismo x toyotismo — para compreender o que está oculto por trás do discurso hegemônico desde a década de 1980.

Segundo Acácia, há uma falsa ideia de que há “oportunidades para todos”. Com base no acúmulo de vinte anos de pesquisas, ela explicou que a dualidade estrutural — entendida como a separação entre aqueles que detêm os meios de produção e os trabalhadores — tornou-se mais aguda com a globalização e está longe de ter sido superada. “O discurso sobre a globalização traria como hipótese um aligeiramento da contradição entre capital e trabalho, com mais oportunidades e menos sofrimento para a classe trabalhadora. A hipótese da qual eu parto é que esse novo regime da acumulação, chamado flexível, aprofunda as diferenças de classe e não as atenua. E, ao fazê-lo, também aprofunda a dualidade estrutural”, explicou.

Ela observou, contudo, que para compreender a dualidade é preciso ter em vista que suas origens não estão na escola e, portanto, não será resolvida nesse espaço. “A dualidade estrutural se origina na sociedade capitalista e reside na distribuição desigual dos meios de produção. Enquanto os meios de produção estiverem nas mãos de poucos — e a uma expressiva maioria somente restar a força de trabalho para vender —, a dualidade estrutural não será superada”, afirmou.

Em sua análise, tal superação somente será possível na medida em que a sociedade capitalista for superada. “Isso significa uma paralisia?”, questionou, respondendo negativamente: “A transformação da sociedade é um processo que se desenrola dia após dia. Há, por um lado, projetos pedagógicos mais favoráveis à criação de uma consciência coletiva, de uma organização dos trabalhadores que facilite a superação do modo de produção capitalista. Por outro, projetos pedagógicos que acentuam essa visão burguesa de mundo, naturalizando-a”, comparou, afirmando que, para compreender os espaços de atuação, é preciso pensar na formação de subjetividades mais comprometidas com a construção do projeto contra-hegemônico da classe trabalhadora.

Semente produtiva

O mestrado da EPSJV, inaugurado em 2008, remonta os anos de 2002 e 2003, quando a escola elaborou e coordenou a Especialização Lato Sensu em Educação Profissional, a partir de demanda do Centro de Educação Profissional e Tecnológica da Universidade Estadual de Montes Claros (ETSUS Unimontes). Na ocasião, foram formados 40 profissionais, e as monografias desenvolvidas culminaram na criação da Estação de Pesquisa da ETSUS Unimontes, que integra a Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde.

Assim, a especialização impulsionou a criação do mestrado profissional, que foi aprovado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em 2007. Desde então, a EPSJV já ofereceu sete turmas regulares do curso, somando 72 dissertações defendidas e 59 alunos, hoje, matriculados, incluindo os trabalhadores das ETSUS.

Para viabilizar a oferta para a Rede, algumas adaptações foram feitas. Ao invés da oferta regular, ao longo dos 24 meses de duração prevista do curso, os alunos da turma-piloto dividem-se em momentos de concentração e dispersão. No primeiro e segundo semestres, por exemplo, quando a carga de disciplinas é maior, haverá quatro momentos de concentração, com duração de 15 dias cada — o financiamento do deslocamento dos alunos dos nove estados do Nordeste ao Rio de Janeiro (sede da EPSJV) e da estada na cidade ficam a cargo do Ministério da Saúde. As aulas acontecem de segunda à sexta-feira, e, no sábado, na parte da manhã, os encontros com os orientadores.

Durante a dispersão, os alunos desenvolverão atividades orientadas pelos professores, contando com ferramentas de comunicação como o Skype (software que permite comunicação pela internet por meio de conexões de voz sobre IP) para tirar dúvidas. A coordenação do curso também criou uma página no Facebook para facilitar a comunicação. “Essa turma é o nosso público-alvo desde quando esse mestrado foi pensado”, revelou o coordenador do curso e professor da EPSJV, Júlio França Lima. Segundo ele, o mestrado revestiu-se como uma proposta de formação de dirigentes, professores e demais trabalhadores da área da Educação Profissional em Saúde, especialmente da RET-SUS.  “Os alunos-trabalhadores da Rede trazem uma carga de experiência importante. Eles já passaram por diversas propostas, como o Profaps [Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde], o Profae [Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem] e o Larga Escala [Programa de Formação em Larga Escala de Pessoal de Nível Médio e Elementar para os Serviços Básicos de Saúde]. Estamos conversando com o público que a gente de fato quer formar”, afirmou.

Diretora da Escola Técnica de Saúde Professora Valéria Hora (Etsal), Janaína Duarte Andrade reúne as características citadas por Júlio. Há onze anos na escola como servidora concursada, viveu a experiência do fim do Profae, quando a escola ainda era Centro Formador de Recursos Humanos para Saúde. “Em junho de 2014, completamos dez anos de escola técnica, criada a partir da unificação do Centro Formador com a Escola de Auxiliares de Enfermagem de Alagoas”, recordou. A oportunidade de realizar o mestrado vem sendo encarada como mais um passo no processo de institucionalização da escola, que estabeleceu convênio com o programa Brasil Profissionalizado para reformar e construir novos laboratórios e, no plano da gestão, recentemente, passou por um processo de revisão do regimento interno, avançando na direção da gestão participativa. “Há o colegiado com representação de toda a comunidade escolar e um processo de cogestão, com direito à voz e voto”, citou. O fato de a Etsal ser vinculada à Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal) auxiliou nesse processo, uma vez que a instituição também é gerida por colegiado, no qual a escola tem assento.

De acordo com Janaína, a Escola Técnica de Saúde de Alagoas pretende, nesse momento de fortalecimento e em consonância com a proposta do mestrado profissional, oferecer novos cursos, a exemplo do Técnico em Vigilância em Saúde. “Na medida em que vão surgindo novas demandas, temos que inserir novos atores e instigá-los a se apropriar da proposta pedagógica das ETSUS, formando profissionais críticos e reflexivos. Esse mestrado, para quem faz parte da escola, como eu e mais duas colegas, representa uma oportunidade de rever nossas práticas”, avaliou a diretora.

Representante da nova geração de trabalhadores da RET-SUS, Josinaldo Bernardo integra a Escola de Governo em Saúde Pública de Pernambuco (ESP-PE) desde 2013, quando prestou o processo de seleção simplificada válido até 2019 — podendo ser renovado. Pedagogo, ele trabalhou durante muitos anos com a formação de professores na Educação Básica até entrar em contato com a Educação em Saúde por meio da Gerência de Educação e Trabalho na Saúde, no município de Goiana — sede de uma das doze gerências regionais de Saúde do estado. Para ele, o mestrado será uma oportunidade para que trabalhadores como ele, formados no campo da Educação, aprofundem conhecimentos sobre o SUS e para que os colegas, do campo da Saúde, mergulhem nos conceitos de currículo, prática pedagógica, projeto político pedagógico etc. “O mestrado vem justamente aproximar os campos Saúde e Educação”, resumiu.
 

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