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escola em foco
Uma década de colaboração e quase 30 anos de criação

EPSJV comemora dez anos como centro colaborador da OMS, com foco nas políticas de saúde e de cooperação internacional na América Latina.

Flavia Lima
 

Para comemorar 29 anos de criação e dez anos como Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Educação de Técnicos em Saúde, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promoveu, em  27 de agosto, em sua sede, no Rio de Janeiro, evento que tratou das políticas de saúde e da cooperação internacional na América Latina. “Isso é resultado de um trabalho visionário e idealizador da Fiocruz”, declarou o diretor da EPSJV, Paulo Cesar Ribeiro. “A participação da escola na área da Cooperação Internacional provoca uma visão ampla sobre os processos de formação de técnicos conduzidos tanto na América do Sul quanto na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa [CPLP]”, observou.

Ao recordar que foi aluno da primeira turma de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio da escola, Ribeiro citou a missão da EPSJV quanto ao campo da Formação Profissional em Saúde, balizada no conceito de politecnia. “Pensar a politecnia é refletir sobre o que ela traz como proposta: uma formação integrada, no sentido de fornecer ao trabalhador elementos para o processo de trabalho, e formando esse trabalhador no seu aspecto humano, como produtor da sociedade”, descreveu.

Presente à cerimônia de abertura, o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, ressaltou a importância que a escola tem no cenário da formação de recursos humanos em saúde. “Aqueles que pensaram um modelo de sociedade precisaram, necessariamente, pensar as pessoas, e a EPSJV fez isso de maneira inaugural, buscando aprofundar o conceito de educação e de formação para o mundo”, enfatizou. Gadelha destacou, também, o papel da EPSJV como Centro Colaborador da OMS: “Estamos fazendo isso de maneira muito intensa, buscando uma cooperação estruturante e horizontal”. Ao fim da cerimônia, a escola recebeu uma placa comemorativa da coordenadora de Ensino do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), Valquíria Matos, pela parceria entre as instituições na realização de cursos de formação técnica em saúde.

Saúde X Lucro

Seguida à abertura, a conferência Políticas de Saúde na América Latina, com o coordenador nacional da Universidade de Ciências da Saúde da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba), Oscar Feo (ver entrevista nas págs. 11 a 13), tratou de como a saúde se tornou parte fundamental da economia nas últimas décadas. Feo fez críticas ao avanço do que chamou de Complexo Industrial Médico e Financeiro da Saúde. “Nesses trinta anos, a saúde entrou no circuito de acumulação e produção de capital, tornando-se ator central desse processo o complexo”, frisou. “Há 30 anos, o que o médico precisava para fazer uma consulta cabia em uma bolsa. Hoje, temos uma medicina altamente tecnológica que resulta em uma desumanização da saúde”, acrescentou.

Segundo Feo, o Complexo Industrial Médico e Financeiro da Saúde, formado por grandes corporações privadas, tem como finalidade a ganância e o lucro, produzindo não somente tudo o que o setor Saúde necessita, como também, vendendo planos de saúde e serviços. Os grandes negócios em saúde, cita, são a fabricação de doenças e a venda de tecnologia médica, medicamentos, vacinas, serviços clínicos e planos de saúde. “Enquanto isso, as grandes corporações vendem a ideia de que o público é para os pobres”, criticou.

Com base na revista americana Fortune, Feo informou que esse complexo ocupa os terceiro e quarto lugares da indústria mais rentável do mundo, perdendo apenas para os equipamentos eletrônicos e das telecomunicações. “Qual é a principal contradição disso em saúde?”, indagou. “Temos, por um lado, políticas públicas que defendem o direito à saúde. Por outro, a saúde como mercadoria, sujeita à oferta e à demanda. Mas a hegemonia neoliberal oculta essa contradição”, respondeu, lembrando que a construção de uma proposta de cobertura universal em saúde assumida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) se deu com a participação de fundações filantrópicas privadas, como a Fundação Rockefeller, e organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial. “Essa proposta é somente funcional ao mercado e ao capital”, afirmou, acrescentando que a ideia é cooptada por empresas e organismos internacionais, que se apropriaram de bandeiras históricas da medicina social, como a ideia de universalidade e de direito à saúde, para camuflar as políticas neoliberais, criando programas de saúde focalizados.

Defensor da ideia de que saúde é um direito humano, Feo propôs: resgatar e fortalecer o pensamento da medicina social e da saúde coletiva, preconizada no Brasil na década de 1980; denunciar e confrontar as propostas que vêm do mundo e do capital; fortalecer os sistemas públicos universais; fazer investigação e formação docente para a transformação social; acompanhar os movimentos e lutas sociais; e ampliar a influência do pensamento da medicina social. Ele citou como exemplo, nesse sentido, o Conselho de Saúde Sul-Americano (CSS), criado em dezembro de 2008, que aprovou um plano quinquenal (2010-2015) para o desenvolvimento de sistemas universais de saúde, incluindo o acesso universal a medicamentos, os determinantes sociais e a promoção da saúde.

Tendências

O evento comemorativo seguiu com o painel Cooperação internacional: organismos internacionais e as políticas de saúde na América Latina, com João Márcio Mendes Pereira, doutor em História e professor-colaborador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), e Maria Lúcia Rizzotto, doutora em Saúde Coletiva e professora da Universidade Estadual Oeste do Paraná.

Coube a Mendes falar sobre as principais questões teóricas e históricas da cooperação internacional no mundo e as tendências mais recentes sobre o tema. De acordo com ele, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a “ajuda” entre países passou a ser tratada como “cooperação”. “A cooperação sempre envolve um discurso bem-intencionado, mas isso se choca com o caráter discricionário de quem aciona a cooperação”, observou, explicando que a ajuda é dada a quem se quer ajudar. “Os que mais se beneficiam das desigualdades de poder do mundo são os que constroem os elos de cooperação”, esclareceu, referindo-se especialmente a modelos de cooperação propostos por países desenvolvidos .

Mendes apontou quatro principais enfoques teóricos da cooperação internacional, a citar a cooperação como instrumento de política externa dos estados doadores, a cooperação como instrumento necessário para a governança global, a avaliação dos resultados da assistência ao desenvolvimento, criando indicadores para mensurar o que é transferido e o que é aplicado, e a teoria da assistência ao desenvolvimento como uma rede e uma perspectiva de poder, identificando os padrões de gestão que devem ser difundidos. “‘A cooperação é uma forma de fazer política, que teve sua estreia no Plano Marshall, quando os Estados Unidos emprestaram dinheiro a fundo perdido aos países europeus em troca de algumas exigências, montando assim uma estrutura econômica de poder e contra o comunismo”, destacou o professor, em alusão ao principal plano dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, que recebeu o nome do secretário de Estado, George Marshall.

O Banco Mundial e o setor de saúde no Brasil: cooperação internacional como forma de intervenção nas políticas internas deu título à palestra de Maria Lucia. Ela lembrou as práticas do Banco Mundial, orientadas por cinco pressupostos: princípios liberais; desenvolvimento econômico; Estado com papel corretivo e compensatório das desigualdades sociais; justiça social; e equidade. Segundo ela, o Banco Mundial começou a se interessar pela área da Saúde nos anos 1970, a partir da explosão demográfica do planeta. “O objetivo era dar uma face mais humana ao banco. Mas, tinha outro interesse: o setor Saúde mobilizava — e, ainda, mobiliza — um volume razoável de recursos que interessavam bastante ao capital”, revelou.

Para intervir na Saúde dos países, explicou Maria Lúcia, o Banco Mundial passa a usar estratégias como o financiamento de programas e pesquisas e a produção e divulgação de relatórios e documentos. Sua trajetória inicia nos anos 1980, quando foram divulgados os primeiros documentos institucionais sobre o setor de Saúde brasileiro e iniciados os financiamentos aos primeiros projetos no país. “Até os anos 1980, o organismo fazia financiamentos específicos. Depois, passaram a financiar os programas de ajuste estrutural, que davam mais visibilidade a ele, bem como a produzir e divulgar relatórios e documentos”, informou, citando como exemplo os programas Governança no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro: fortalecendo a qualidade dos investimentos públicos e da gestão de recursos (2007) e Vinte anos de construção do sistema de saúde no Brasil: uma análise do Sistema Único de Saúde (2013), financiados pelo Banco Mundial.  Ainda, segundo a professora, o Banco Mundial vem mudando sua estratégia e priorizando programas de ajuste estrutural com estados e municípios ao invés de projetos nacionais.

Após o debate, que contou com a mediação da vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da EPSJV, Marcela Pronko, a escola foi presenteada com a apresentação da Orquestra de Câmara do Palácio Itaboraí, formada por cerca de 30 jovens — um projeto social do Palácio Itaboraí (Fiocruz Petrópolis), cujo objetivo é promover a inclusão social e a capacitação profissional pela música — e uma cerimônia de lançamentos editoriais. Sete noves títulos — Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio: 10 anos como Centro Colaborador da OMS para a Educação de Técnicos em Saúde, Conceitos básicos e aplicados em imuno-hematologia, Coleção – Conceitos e métodos para a formação de profissionais em laboratórios de saúde, Iniciação Científica na Educação Profissional em Saúde: articulando trabalho, ciência e cultura – volume 8, Segurança alimentar no contexto da vigilância sanitária: reflexões e práticas, Trabalhadores Técnicos da Saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS e Caderno de Debates 4 – Os desafios da integração regional para os trabalhadores técnicos em saúde — passam a integrar o catálogo de publicações da EPSJV.

Missão

A EPSJV foi criada em 27 de agosto de 1985. A unidade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) tem como principal missão apoiar a Educação Profissional em Saúde e a Iniciação Científica no Ensino Médio, em âmbito nacional e internacional, através da coordenação e implementação de programas de ensino em áreas estratégicas para a Saúde Pública, além de elaborar propostas de política, regulamentação, currículos, cursos, metodologias e tecnologias educacionais e produzir e divulgar conhecimento nas áreas de Trabalho, Educação e Saúde.

Mais do que uma área de atuação, a pesquisa na Escola Politécnica funciona como princípio educativo. Por essa razão, a instituição tem um Programa de Vocação Científica (Provoc), que incentiva alunos do ensino médio de escolas regulares a se interessarem pelas carreiras da investigação científica. Outro exemplo nesse sentido é o Projeto Trabalho, Ciência e Cultura, por meio do qual os alunos desenvolvem monografias de conclusão de curso, aprendendo todas as etapas de um processo de pesquisa.

Em relação ao ensino, a EPSJV oferece cursos de formação inicial e continuada e técnicos de nível médio nas áreas de Vigilância, Atenção, Informações e Registros, Gestão, Técnicas Laboratoriais e Manutenção de Equipamentos. Os cursos técnicos são desenvolvidos na modalidade integrada ao ensino médio.

Politecnia

A escola tem como eixo basilar de atuação a politecnia. No Dicionário de Educação Profissional em Saúde, editado pela EPSJV, o professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) José Rodrigues define assim as possibilidades de um projeto de politecnia: “A construção de uma concepção de educação politécnica precisaria, necessariamente, estar embasada em práticas pedagógicas concretas que deveriam buscar romper com a profissionalização estreita, por um lado, e com uma educação geral e propedêutica, livresca e descolada do mundo do trabalho, por outro”.

No campo da educação, a ideia de politecnia preconiza a defesa do direito universal e a perspectiva ampliada de saúde trazida pelo SUS. “O projeto de politecnia da criação da EPSJV traduzia a articulação entre o conceito ampliado de saúde e o conceito de relação trabalho/educação, para além do capital”, observa a ex-diretora da escola, professora-pesquisadora Isabel Brasil. Em sua análise, o objetivo do projeto de educação politécnica é superar a fragmentação do conhecimento e, com isso, buscar uma sociedade justa, digna e igualitária.

Politecnia, segundo Fernando Fidalgo e Lucília Machado, editores de Dicionário de Educação Profissional em Saúde, “refere-se a um conceito central do pensamento pedagógico que toma o trabalho como princípio educativo. Ele compreende uma avaliação crítica da visão pragmática e instrumentalista das relações entre educação e trabalho e do dualismo entre ensino geral/acadêmico e ensino profissional, que seriam expressões da divisão social do trabalho”. Os autores acrescentam: “Do conceito de politecnia, surgem propostas sobre a formação omnilateral, a partir da integração e prática, da cultura geral e tecnológica e das diversas dimensões do processo educativo. Isso não significa ensinar tudo, mas orientar o processo de ensino/aprendizagem pelo princípio ontológico da totalidade”.
 

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