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- Sem surpresas, nem divergências

Etapa nacional da Conferência de Educação destacou-se pelo consenso em torno da regulamentação do PNE e pela pouca discordância em relação a outras pautas.

Ana Paula Evangelista, Maíra Mathias e Katia Machado

 

Promover o debate democrático sobre os rumos da educação brasileira foi o foco da 2ª Conferência Nacional de Educação (Conae 2014), realizada de 19 a 23 de novembro, em Brasília, sob o tema O Plano Nacional de Educação (PNE) na articulação do Sistema Nacional de Educação: participação popular, cooperação federativa e regime de colaboração. Organizada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), a Conae 2014 reuniu 3,6 mil participantes, dos quais 2.658 eram delegados — estavam previstos 3,5 mil —, e o restante foi de observadores (262), convidados (45), palestrantes (70), jornalistas (138), expositores (107), acompanhantes (42), pessoas ligadas a atrações culturais (17), visitantes (114) e da organização (223).

Precedida por 2.824 conferências municipais e intermunicipais, 26 estaduais e uma distrital, entre os anos 2012 e 2013, envolvendo cerca de três milhões de pessoas pelo país, a etapa nacional foi aguardada com grande expectativa, em vista de dois cancelamentos — o primeiro em novembro de 2013 e o segundo em fevereiro de 2014 —, e foi organizada a partir de sete eixos temáticos: O Plano Nacional de Educação e o Sistema Nacional de Educação: organização e regulação; Educação e diversidade: justiça social, inclusão e direitos humanos; Educação, trabalho e desenvolvimento sustentável: cultura, ciência, tecnologia, saúde e meio ambiente; Qualidade da educação: democratização do acesso, permanência, avaliação, condições de participação e aprendizagem; Gestão democrática, participação popular e controle social; Valorização dos profissionais da Educação: formação, remuneração, carreira e condições de trabalho; e Financiamento da Educação, gestão, transparência e controle social dos recursos.

Representantes de todos os níveis da Educação — pública e particular —, de setores sociais, gestores, trabalhadores, pais e estudantes participaram de colóquios, mesas de interesse e das plenárias de eixo e final, por meio das quais aprovaram, sem novidades, 833 propostas de 30 mil emendas ou novos parágrafos, oriundos das conferências municipais, estaduais e distrital — o documento final da Conae 2014, aprovado pela plenária final, deverá estar disponível em março de 2015, após revisão do texto, a ser realizada pelo FNE.

Houve mais consensos do que dissensos, já que a maior preocupação foi em relação às propostas que disseram respeito à regulamentação do Plano e à criação do Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração. Questões polêmicas, como o financiamento público (meta 20 do PNE) — que recebeu muitas críticas de pesquisadores e militantes da educação durante a tramitação da Lei nº 13.005, aprovada em junho de 2014 — instituindo o novo plano para os próximos dez anos, não encontraram discordâncias, muito menos as propostas em torno do tema da Educação Profissional, de que trata a meta 11 do Plano — nesse caso, foram apenas polêmicas em torno do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec). “Aprovamos a instituição do sistema. Portanto, o que a Conae 2014 deliberou vai ao encontro daquilo que o PNE aprovou”, comemorou o então coordenador do FNE, Francisco Chagas — substituído, em eleição realizada em 9 de dezembro, por Heleno Araújo, representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), em acordo com o Regimento Interno do Fórum, que prevê o revezamento entre poder público e sociedade civil, sem possibilidade de reeleição.

A primeira edição da Conae, realizada em 2010, em Brasília, havia tratado da criação de um sistema nacional de educação e proposto diretrizes e estratégias para a construção do PNE, que, em dezembro daquele ano, foi concluído e enviado ao Congresso Nacional. O Plano, aprovado e sancionado apenas quatro anos depois, traz 20 metas — duas delas voltadas, exclusivamente, à educação profissional — e 229 estratégias, tratando de questões como a ampliação de matrículas, a inclusão de pessoas com deficiência, melhorias na infraestrutura e a valorização dos professores e trabalhadores em educação. A próxima edição da Conae está prevista para 2018.

Noite de abertura

A abertura da Conae 2014, realizada na noite de 19 de novembro, contou com a presença de Chagas, Raimundo Jorge, representando o Movimento Negro, Glauber Braga, presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, José Henrique Paim, ministro da Educação, Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Tereza Campello, ministra do Desenvolvimento Social, Ideli Salvatti, ministra dos Direitos Humanos, e Miguel Rossetto, ministro do Desenvolvimento Agrário.

Ao dar boas vindas aos participantes, Chagas falou sobre o processo de preparação da Conae, iniciado em 2013, fazendo um resgate dos principais momentos e conquistas que antecederam o evento. “Começamos esse movimento sem nenhum ineditismo, ainda mobilizados pelas greves e reivindicações, bem como pelos encontros e conferências municipais e estaduais”, lembrou.

Coube a Paim avaliar as conquistas e apontar os novos desafios para a área. “É a educação que vai emancipar o país e dar esperança a crianças e jovens”, disse, destacando, em seguida, o novo padrão de relacionamento exigido aos estados e municípios para que se possa avançar com o Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração. “Nosso PNE é uma oportunidade histórica, temos nas mãos a grande chance de fazer um alinhamento dos níveis educacionais e precisamos aproveitar e assumir esse compromisso”, frisou.

A necessidade de fortalecer a participação popular nos rumos da educação foi destacada por Carvalho. Segundo o ministro, foi por meio de conferências e mesas de negociação que políticas fundamentais para o país foram criadas. “Precisamos lutar por uma educação integral, pela implementação dos centros tecnológicos, pela erradicação do analfabetismo, pela integração real com as políticas de cultura, ambiental, de saúde e direitos humanos. Isso se dá com a participação da sociedade”, orientou. Vale citar que as propostas do quinto eixo da Conae 2014, sobre gestão democrática, participação popular e controle social, foram aprovadas com mais de 50% pelos delegados, ainda no dia 22, na respectiva plenária de eixo.

A cerimônia de abertura foi encerrada com uma homenagem ao Patrono da Educação brasileira, educador, pedagogista e filósofo Paulo Freire (1921-1997), que há 50 anos alfabetizou a primeira turma de adultos no município de Angicos, no Rio Grande do Norte. A Conae 2014 contou, ainda, com mais 25 atividades artísticas, interligando educação e cultura e reverenciando, além de Paulo Freire, o romancista e poeta Ariano Suassuna (1927-2014) e o escultor e artística plástico Francisco Brennand, com 87 anos.
 

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A educação é ponto focal do governo, diz presidenta

Presente no segundo dia da Conae 2014, a presidenta Dilma Rousseff foi recebida com coros e aplausos — algumas poucas vaias. Durante seu discurso, Dilma fez destaque à representatividade que envolveu todo o processo de construção da conferência, com participação de quase três milhões de pessoas em suas etapas preparatórias. “Poucos países têm um processo de participação desse porte, temos que nos orgulhar. Por isso, reintero o compromisso do meu governo com a educação, que é a prioridade das prioridades, a número um”, afirmou, atribuindo à educação o caminho para a redução da desigualdade e o crescimento com inclusão social.

Ao falar sobre a questão dos recursos a serem destinados à educação, em especial os 75% dos royalties do pré-sal e parte do fundo social, Dilma reforçou o compromisso com os trabalhadores da área. “Não me canso de afirmar que a base de uma educação de qualidade é a valorização do professor, tanto na sua formação quanto no salário. Esse é um desafio inadiável, que teremos que considerar”. Ela anunciou mais 12 milhões de vagas para o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e falou sobre sua expectativa de regulamentação do PNE e implantação do Sistema Nacional de Educação.

Dilma lembrou, ainda, que a democracia em uma sociedade moderna e inclusiva demanda participação popular na construção das políticas públicas. “Nós temos aqui um diálogo qualificado sobre a educação e, nesse novo mandato, preciso de sugestões, para que juntos possamos construir um país mais desenvolvido”, frisou. Por fim, a presidenta fez uma menção especial ao Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro. “Tivemos um grande avanço quando, em 2010, o país declarou-se, majoritariamente, de raça negra, assumindo com orgulho nossa origem afrodescendente. O racismo é crime e a igualdade social de forma afirmativa é um valor da nossa nacionalidade”, finalizou.

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A prioridade é regulamentar o sistema em regime de colaboração

Os colóquios O Sistema Nacional de Educação (SNE), a articulação federativa e o papel do Estado democrático na garantia do direito à educação e Regime de colaboração entre sistemas de ensino e organização da educação nacional, realizados na tarde do dia 20/11, reuniram reflexões e proposições sobre o tema central da Conae 2014. Além desses, o debate O PNE na articulação do Sistema Nacional de Educação, realizado no terceiro dia da Conae, trouxe Dermeval Saviani, professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para falar sobre o papel da União na colaboração federativa para a organização e operação do SNE, dando subsídios às plenárias. Não por um acaso que os 2,6 mil delegados inscritos aprovaram, por unanimidade, a proposta de regulamentar o artigo 23 da Constituição, segundo o qual a educação deve ser feita em regime de cooperação e colaboração entre os entes federados.

Na primeira mesa, o doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e professor da PUC Minas Gerais, Carlos Roberto Jamil Cury, iniciou sua análise sobre o tema, resgatando a Lei nº 13.005, que aprova o PNE, para discorrer sobre o novo conceito que a expressão “sistema nacional de educação em regime de colaboração” busca responder. Segundo ele, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) já remeteria à prática da colaboração, bem como o quarto parágrafo do artigo 211 da Constituição Federal, ao indicar que, na organização de seus sistemas de ensino, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios definam formas de colaboração de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.

Qual seria então a novidade que a expressão traz? O Fundeb e outros mecanismos de colaboração não seriam suficientes? O problema, respondeu o professor, é que o conceito de colaboração não diz respeito apenas à função redistributiva, ou seja, à assistência técnica e financeira aos estados, Distrito Federal e municípios. Segundo Cury, o tema compreende o sétimo artigo da Lei do PNE, ao escrever que “a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios atuarão em regime de colaboração, visando ao alcance das metas e à implementação das estratégias do PNE”. Ele destacou o quinto parágrafo desse artigo, no qual é proposto a criação de uma instância permanente de negociação e cooperação entre União, estados, Distrito Federal e municípios. “Se o quinto parágrafo diz respeito aos quatros entes federativos, o seguinte implicará, especificamente, os estados e seus municípios. Isso porque escreve o sexto parágrafo desse artigo que o fortalecimento do regime de colaboração entre estados e respectivos municípios incluirá a instituição de instâncias permanentes de negociação, cooperação e pactuação em cada estado”, destacou. “Isso significa ter uma segunda mesa de pactuação entre estados e municípios, o que é absolutamente fundamental para a educação infantil”, acrescentou.

Os três parágrafos (5, 6 e 7) do sétimo artigo da Lei do PNE, porém, estão em aberto, carecendo de um debate mais amplo, alertou Cury. “A Conae tem a responsabilidade de pensar os sujeitos desse processo de negociação, cooperação e pactuação. Não são termos comuns”, defendeu, citando, nesse contexto, o projeto de lei do deputado federal Ságuas Moraes (PT/MT), apresentado em julho de 2014, que estabelece normas da cooperação federativa entre União, estados, Distrito Federal e municípios e entre estados e municípios, para garantia dos meios de acesso à educação pública básica e superior regida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Regime de colaboração

“Para que possamos ter, efetivamente, um Sistema Nacional de Educação, é preciso garantir por meio de lei complementar o regime de colaboração nos termos do parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal”, frisou Célia Maria Vilela Tavares, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense e professora da Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo. A integrante do Fórum Nacional de Educação (FNE) fez parte da mesa Regime de colaboração entre sistemas de ensino e organização da educação nacional, ao lado do professor Paulo Hentz, integrante do Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina.

De acordo com Célia, trata-se, nesse caso, de se construir um conjunto unificado e orgânico de ações que articula todos os aspectos da educação do país, com normas comuns válidas para todo o território nacional, visando assegurar uma educação com o mesmo padrão de qualidade para todos. Ela lembrou a Emenda Constitucional 59/2009 que determina que o ensino obrigatório, a partir de 2016, passa a ser dos quatro aos 17 anos, compreendendo a idade correspondente à segunda etapa da educação infantil e aos ensinos fundamental e médio. A mesma norma que instituiu a obrigatoriedade dos quatro aos 17 anos, também determinou que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios definirão formas de colaboração para garantir a universalização do ensino obrigatório. Dessa forma, completou, fica estabelecida a corresponsabilidade dos estados e da União para com a oferta da educação infantil, bem como a corresponsabilidade da União com a oferta do ensino médio.

Célia apontou para a urgência da discussão e implantação de uma justiça tributária no país face ao que, hoje, fica concentrado nas mãos da União (57%), dos estados e DF (25%) e dos municípios (18%). “Igual distorção se apresenta quando temos os percentuais de investimento na educação: a União investe 20%, os estados e o DF investem 41% e os municípios, 39%”, comparou.

Para ela, o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), como está apresentado na estratégia 20 do PNE, faz frente ao desafio da justiça tributária e é um avanço para a promoção da educação de qualidade para todos. Segundo o texto da lei, o CAQi será implantado no prazo de dois anos, referenciado no conjunto de padrões mínimos estabelecidos na legislação educacional e cujo financiamento será calculado com base nos respectivos insumos indispensáveis ao processo de ensino-aprendizagem e será progressivamente reajustado até a implantação plena do Custo Aluno Qualidade (CAQ).

Hentz frisou que colaboração significa convivência autônoma entre os entes da Federação. “Guardamos, porém, alguns vícios ao sairmos de Estado unitário, no tempo do Império, para Estado federativo, com a República, considerando que a União deve assumir tudo e conservando a crença de hierarquia de legitimidade e de competência”, ressalvou. Segundo ele, a sociedade preserva a ideia de que a competência dos órgãos federais é excelente, dos estaduais, mediana e dos municípios, totalmente incompetente. “Está em nossa cultura que os municípios sabem menos que os estados e os estados menos que a União”, reconheceu.

Ele citou, porém, o artigo 18 da Constituição, para frisar que não há hierarquia entre os entes federativos. A descentralização, acrescentou, está explícita, ainda, na LDB, nos artigos 9, 10 e 11.

O professor fez, também, referência aos artigos cinco e seis da Lei nº 13.005, ressaltando que o sistema poderá se constituir como instância de fiscalização e responsabilização de cada ente diante de suas competências. Para ele, são aspectos importantes do tema: os entes se reconhecerem autônomos; compreenderem que competências legais não são permissões, mas obrigações; exigirem a prática do regime de colaboração em diferentes instâncias; praticarem o regime de colaboração com sistemas pares e com outras instâncias da federação; e construírem um sistema nacional não baseado em outros órgãos, mas na relação colaborativa dos órgãos existentes, conforme está no artigo sete do PNE.

Papel da União

Considerado um dos maiores defensores da implantação do SNE no país, Saviani iniciou sua exposição, em 21/11, resgatando a importância dos sistemas nacionais para a erradicação do analfabetismo e a superação das desigualdades regionais na qualidade da educação. Segundo ele, a organização desses sistemas ocorreu a partir da segunda metade do século 19 nos países centrais da Europa, como Alemanha, Inglaterra e França e, a partir do século 20, nos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai. “Nós fomos adiando e já entramos no século 21 sem resolver esse problema”, disse.

Segundo o professor, o sistema nacional pode ser considerado o fiel da balança quando se analisa a disparidade atual, por exemplo, entre Brasil e Itália que, no século 19, exibiam indicadores semelhantes. Isso porque o país europeu, que tinha metade de sua população analfabeta, conseguiu universalizar a escola elementar e erradicar o analfabetismo após a criação do sistema, em 1911. Para ele, o exemplo italiano serve, ainda, para rebater os argumentos que se apoiam na preservação das especificidades locais para emperrar a criação do SNE, já que os italianos não deixaram de falar os dialetos, sendo beneficiados pelo aprendizado de uma língua comum.

Saviani acredita que a experiência ilustra a compatibilidade do sistema nacional com o regime federativo, ao contrário do tom do debate no Congresso Nacional, onde, segundo ele, o sistema sempre aparece como imposição do governo federal. A luta, portanto, defendeu o professor, deve ser pela construção de um “verdadeiro” SNE. Para isso, a adesão de estados, municípios e Distrito Federal não pode acontecer depois dele instituído, mas no processo de construção do sistema. Outro ponto de partida é o entendimento de que, mesmo tendo atribuições diferentes, todos os entes devem participar da administração do SNE, que precisa ser público. “As instituições privadas integrarão o sistema como particulares e, nesta condição, darão sua contribuição específica. Não cabe travesti-las de públicas, seja pela transferência de recursos, na forma de subsídios e isenções, seja pela transferência de poder, admitindo-as na gestão e operação”, orientou.

Críticas à abordagem

Ele fez algumas críticas ao modo como o SNE foi abordado na 2ª Conae, pois os sete eixos norteadores da conferência não teriam contribuído para o aprofundamento do assunto. “Sobre o SNE paira um desconhecimento mais ou menos generalizado. O que deveria nortear o debate da Conae é a busca de maior clareza sobre o significado daquilo que queremos, buscando avançar na compreensão da base de sua sustentação, organização e conteúdo”, destacou. A confusão, segundo o professor, começa no tema da conferência, que dá a entender que é o plano que sustenta o sistema, e não o contrário.

O pesquisador alertou para os riscos que envolvem a aprovação do SNE. Se, por um lado, o prazo pode ser ultrapassado, a exemplo do que aconteceu com o PNE, aprovado com dois anos de atraso, por outro, uma aprovação rápida, sem a devida discussão, mudaria pouco o quadro brasileiro. “Não cabe compreender o SNE como um guarda-chuva com a mera função de abrigar o sistema federal, os 26 sistemas estaduais, o Distrito Federal e, no limite, os 5,7 mil sistemas municipais de ensino. Se for aprovada uma proposta nesses termos, o SNE se reduzirá a uma mera formalidade”, concluiu.

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Valorização vai além de melhores salários

O colóquio Valorização dos profissionais da educação: desafios e perspectivas, promovido na manhã do dia 21/11, fez coro à fala da presidenta da República, Dilma Roussef, que ressaltou, um dia antes, ser esse um desafio inadiável a ser enfrentado pelo seu governo (ver pág. 6). Mas quem são os profissionais da Educação? E quais são as questões fundamentais desse debate? Maria Izabel Azevedo Noronha, conselheira nacional de educação e presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), informou que o Brasil tem 1,8 milhão de professores que lecionam em escolas públicas, além de mais de um milhão de funcionários de escola. Desse total, 450 mil professores — ou seja, 1/4 — são temporários. No ensino médio, 30% são temporários e, em disciplinas como química e física, esses índices chegam a 40%. “O grande problema é a terceirização”, criticou. Ela defendeu o parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Câmara de Educação Básica (CEB) 09/2009, do qual é relatora, que aponta as diretrizes nacionais para os planos de carreira do magistério da educação pública. O documento recomenda que o percentual de professores temporários não ultrapasse a 10%, bem como a contratação dos profissionais se faça por concurso público.

Falar de valorização implica, segundo a palestrante, tratar antes de tudo dos salários desses profissionais. Izabel revelou que a média salarial relativa dos professores no Brasil é de 1,9 mil por mês, enquanto que no mundo é de 5,9 mil. “A Lei nº 11.738/2008 [que instituiu o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica], o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], e outras iniciativas representam o início da valorização dos professores, mas os salários são, ainda, muito baixos”, observou. De acordo com Izabel, nove estados não aplicam o piso nacional do magistério que passou de R$ 950,00, em 2009, para R$ 1.024,67 (2010), R$ 1.187,08 (2011), R$ 1.451,00 (2012), R$ 1.567,00 (2013) e R$ 1.697,39 (2014), para jornada de 40 horas.

Péssimos salários

Na avaliação de 66% de três mil pessoas com mais de 16 anos entrevistadas em setembro de 2014, nas cinco regiões do país, o salário oferecido aos professores da rede pública é ruim ou péssimo — apenas 8% disseram que é bom. Os dados são da pesquisa A educação e os profissionais da educação, encomendada ao Data Popular pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e Apeoesp. O estudo, cujos dados foram divulgados na noite do dia 21 e antecipados por Izabel, identificou, também, que 49% disseram que a remuneração dos professores das escolas privadas é ótima ou boa.

Para a maioria (98%), mostrou a palestrante, os professores e funcionários precisam ter bons salários para que a escola seja de qualidade. Muitos entrevistados (85%) acreditam que os profissionais da educação deveriam ter um piso salarial nacional que valorize o salário. “A Conae precisa indicar que seja aplicada a meta 17 do PNE”, recomendou, revelando que, em São Paulo, uma campanha pela aplicação da meta, que trata da valorização dos profissionais do magistério das redes públicas de educação básica de forma a equiparar seu rendimento médio ao dos demais profissionais com escolaridade equivalente, até o fim do sexto ano de vigência do PNE, já foi lançada. “No estado, o salário em média dos profissionais da educação básica é de R$ 2.422,58, enquanto o salário médio dos demais profissionais com nível superior completo é de R$ 4.247,48. O aumento necessário, nesse caso, é de 75,33% para equiparação salarial, como determina a meta 17 do PNE”, esclareceu.

A valorização implica, também, assegurar aos profissionais da educação condições de trabalho e carreira justa e atrativa. Com base no mesmo estudo, Izabel revelou que 99% dos brasileiros pesquisados afirmaram que a educação é importante para o futuro do país, mas apenas 15% gostariam de tornar-se educador. Do total, 85% acreditam que esses profissionais não são valorizados como deveriam pelo governo e 76% disseram que os professores não são valorizados pela sociedade.

Segundo a presidente da Apeoesp, a valorização dos professores e funcionários é o fator mais importante, depois da segurança, para que a escola seja de qualidade. “É preciso aplicar a Lei nº 11.738/2008 no que se refere, também, à jornada de trabalho”, frisou, revelando que, segundo a CNTE, onze estados não aplicam a jornada do piso. Por fim, Izabel defendeu a aplicação efetiva dos 10% do Produto Interno Bruto (PIB) e dos 75% dos royalties do pré-sal na Educação, além da garantia de novas fontes permanentes de recursos, de que trata a meta 20 do PNE.

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Polêmicas em torno da educação profissional

O colóquio Políticas de expansão da educação profissional, técnica e tecnológica, participação e desenvolvimento nacional e a mesa de interesse As políticas de educação profissional e tecnológica articuladas à Educação de Jovens e Adultos e políticas de inclusão colocaram em foco a meta 11 do PNE, que trata de triplicar as matrículas da educação profissional técnica em nível médio, assegurando a qualidade da oferta e, pelo menos, 50% da expansão no segmento público. Polêmicas em torno dos efeitos do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) para o desenvolvimento nacional deram o tom da primeira mesa de debate, que se caracterizou, também, pela acentuada — e sonora — presença de delegados do setor privado na plateia.

Realizada na tarde do terceiro dia da Conae 2014, em 21 de novembro, o primeiro debate — que integrou o eixo temático Educação, Trabalho e Desenvolvimento Sustentável: cultura, ciência, tecnologia, saúde e meio ambiente —, trouxe como debatedores Antonio Almerico, superintendente de Educação Profissional da Secretaria de Educação da Bahia, Luiz Augusto Caldas, presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), e Domingos Leite, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Almerico observou que, depois de ocupar por muito tempo o posto de “patinho feio”, a educação profissional passou a ter destaque. Contudo, o interesse crescente embutiria uma falsa unanimidade, de que “ninguém mais é contrário ao campo, nem o empresário, nem o trabalhador, nem os governantes”. A disputa de significados em torno da área, segundo ele, vai muito além do financiamento e diz respeito a concepções de sociedade. “Quando vamos discutir a fundo o que é educação profissional — para quem, com qual objetivo —, aparecem os conflitos”, disse.

O mesmo avaliou Caldas, para quem, desde a criação das primeiras escolas de aprendizes artífices no governo Nilo Peçanha (1906-1909), passando por Juscelino Kubitschek (1956-1961), que vinculou seu plano de metas à qualificação profissional, a dimensão econômica se constituiu como base do consenso em torno da importância da educação profissional para o desenvolvimento do país. “Ao longo desse tempo, há uma disputa nítida entre a defesa mais humanista de uma educação profissional que emancipe e forme as pessoas e aquela que se pauta unicamente pelo mercado”, frisou. O pêndulo incidiria, também, sobre os sentidos da expansão, ora inclinada para o fortalecimento da rede pública, ora dando centralidade à rede privada que, no país, tem forte representação empresarial. O presidente do Conif argumentou que, desde a redemocratização, programas voltados à expansão da educação profissional se sucederam sem que, contudo, o país tenha traçado estratégias a longo prazo.

Os palestrantes frisaram que a atual expansão da educação profissional deve ser analisada a partir de dois marcos históricos: um primeiro ciclo que começa na segunda metade da década de 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), marcado, segundo os debatedores, por um recuo do papel das redes públicas e mesmo da concepção pública da educação profissional técnica; e uma segunda fase, cuja estagnação tem seu ápice em 1997, com a promulgação do Decreto nº 2.208, que impediu a Rede Federal de crescer, impondo a redução de 50% da oferta de cursos técnicos integrados ao nível médio. Para Domingos Leite, as 120 mil matrículas daquele ano foram minguando, até atingirem 75 mil em 2004. 

Ele observou que, na direção contrária, as parcerias público-privadas foram estimuladas, uma vez que o financiamento da área provinha do Banco Mundial e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o FAT era a fonte de recursos do Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (Planfor), lançado em 1995, como foco na oferta de cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC). “Se formos analisar, os recursos do Fundo tiveram uma escala semelhante ao Pronatec, com o desembolso de alguns bilhões por ano. O programa começou oferecendo cursos de 140 horas e terminou com 80 horas, em média. Foi daí que surgiu a expressão cursos ‘Walita’, que mexiam e não resolviam o problema”, afirmou Almerico, que ocupou a direção de Qualificação do MTE entre 2003 e 2007. Segundo ele, outra marca do período foi a desarticulação entre o Trabalho e Emprego e o MEC.

Retomada do público

Todos foram unânimes em identificar uma inflexão no período entre 2003 e 2010. De um lado, houve uma tentativa de articulação interministerial, já que o MTE deixou de financiar cursos FIC e, de outro, o governo federal fechou, em 2008, um acordo histórico com o Sistema S, que previu um aumento de 66,6% da oferta de cursos gratuitos até 2014. “Mas a grande novidade é a recuperação do protagonismo da Rede Federal e o início do financiamento das redes estaduais”, identificou Almerico, se referindo ao Decreto nº 5.154/2004 e ao programa Brasil Profissionalizado, lançado em 2007. O primeiro, lembrou, revogou a proibição de expansão da oferta integrada ao nível médio e foi o ponto de partida para a maior expansão da história da Rede Federal, com a criação de 214 novas escolas no governo Lula. Já o Brasil Profissionalizado passou a financiar a construção, a ampliação e a reforma de escolas estaduais, incluindo a implantação de laboratórios e bibliotecas, assim como a formação de professores e profissionais técnico-administrativos. Em 2007, a soma das matrículas em cursos técnicos nas redes públicas ultrapassou, de forma inédita, a oferta do setor privado, segundo apontou o Censo daquele ano realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). 

A ênfase na elevação da escolaridade foi apontada pela mesa como um dos grandes avanços do período.  “Apesar das críticas que podem ser feitas, devemos isso ao Decreto nº 5.154, que completou dez anos. Já é hora de fazer uma reflexão sobre seu significado e impacto na educação profissional, assim como do Decreto do Proeja [Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, de 2006] nas redes públicas. Nesse período, temos um sucesso relativo no sentido de caminhar para uma estratégia de Estado”, observou Almerico.

Desafios do Pronatec 2.0

Os efeitos do Pronatec no cenário da educação profissional técnica nas redes públicas foram analisados por todos os debatedores. “A primeira questão problemática é a desvinculação da elevação da escolaridade. É uma discussão de fundo, pois sabemos que não basta fazer qualificação. Não só no sentido da emancipação, mas mesmo para conseguir espaço no mercado de trabalho, já que o empresariado quer pessoas com a educação básica completa”, destacou Almerico, cuja crítica diz respeito à ênfase do programa na oferta de FIC.

Na avaliação de Caldas, que atuou como diretor de Políticas da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec/MEC) no governo Lula (2003-2010), observou-se, no Pronatec, um distanciamento da receita que casava a expansão ao reestabelecimento de uma concepção pública e integral da educação profissional. “A tentativa de se fazer um movimento forte na direção da qualificação da juventude e do trabalhador brasileiro é uma política importante, assim como a busca pela diminuição da dispersão do ponto de vista dos atores e responsáveis pela formulação e desenvolvimento. No entanto, preciso dizer que me preocupa o financiamento e, mais ainda, o aprofundamento e afirmação de uma concepção pobre de educação profissional”, ressalvou. De acordo com o atual presidente do Conif, o Pronatec está muito vinculado à Bolsa-Formação que, por sua vez, se direcionou mais fortemente, até o momento, para a oferta de cursos FIC em instituições particulares. Ele analisa que os cursos de 160 horas aparecem sob a alegação de um “apagão de mão de obra” e, sob essa justificativa, a política federal incorporaria um caráter emergencial.  Para Caldas, é urgente a avaliação coletiva e pública do Pronatec 2, como foi chamado a continuação do programa nesse segundo mandato da presidenta Dilma. “No debate do futuro, não há lugar para qualquer coisa que não pense o modelo de sociedade e desenvolvimento que queremos. Se não eliminarmos a ideia de que educação profissional se faz a partir de conjunturas e de curto prazo, seremos eternamente subdesenvolvidos”, defendeu.

Os debatedores propuseram se repensar a transferência de recursos públicos para empresas da Educação. Para Domingos, o empresariado já entendeu que a educação profissional é um “nicho de mercado emergente” e “vem se organizando para abocanhar maiores fatias dele”. Como exemplo, citou um seminário realizado em novembro de 2013, sob o sugestivo título Como montar sua escola técnica ingressando nos programas Vence SP e Pronatec, no qual se elencaram as “vantagens” da educação profissional: a otimização dos custos fixos; o crescimento do fluxo de caixa; a baixa inadimplência; e o fortalecimento da “marca”. Um segundo exemplo disso seria a maior empresa educacional do mundo, a brasileira Kroton. Domingos chamou atenção para o fato de que as verbas do Pronatec foram apontadas pela administração do grupo como um dos fatores que garantiram o lucro líquido de R$ 213 milhões, aferido entre julho e setembro de 2014. Segundo ele, basta visitar os sites dessas empresas para verificar o marketing que existe em torno dos cursos FIC. Segundo o pesquisador, a regra é vender a falsa ideia de que a qualificação de 160 horas muda a vida dos indivíduos, assegurando seu futuro profissional.

Potencial de elevação

Promovida no quarto dia (22/11), após as plenárias de eixo, a mesa de interesse, que contou com a participação da atual diretora de Políticas da Setec, Nilva Schroeder — presente no debate do dia anterior —, buscou esclarecer a posição do MEC em relação ao potencial de elevação de escolaridade dos cursos FIC. Segundo Nilva, o órgão faz dois esforços “pragmáticos” nesse sentido: o primeiro diz respeito à elaboração do Guia Pronatec para cursos nessa modalidade, por itinerários formativos, induzindo as instituições a pensarem no alinhamento de diversos cursos de 160 horas rumo à certificação técnica de nível médio; e o segundo refere-se à elaboração de um documento de referências nacionais para os cursos FIC, que tratará de forma mais conceitual e metodológica a questão dos itinerários formativos, com foco nas instituições parceiras do Pronatec. “Em um primeiro momento, os cursos FIC podem parecer condenáveis, mas a verdade é que eles possibilitam o desenho de diferentes itinerários formativos que podem organizar trajetórias de formação dos sujeitos com um ponto de partida não linear”, disse. Ela deu como exemplo um catador de lixo que pode começar fazendo um curso de operador de usina de compostagem e, sucessivamente, realizar outros, até se formar técnico em meio ambiente. Quanto ao segundo esforço, uma versão piloto das referências está em teste nos Institutos Federais de Goiás e de Goiânia, antecipou Nilva. 

Ela ressaltou, ainda, que a elevação da escolaridade é parte integrante do compromisso com o direito à educação profissional e há vários caminhos possíveis para que isso se concretize, como a articulação entre redes que fazem EJA e aquelas que ofertam cursos técnicos de nível médio. “Pode ser feito um convênio entre instituições, tendo por base um projeto pedagógico unificado, como prevê a LDB”, concluiu.
 

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