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Em direção à equidade racial

A educação dos trabalhadores da Saúde se destaca entre as ações contra o racismo institucional, tendo as ETSUS como parceiras dessa iniciativa.

Maíra Mathias
 

O Brasil é o segundo país com a maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria. De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, somos mais de cem milhões de negros (somatório das pessoas que se declaram pretas e pardas), equivalente a 50,7% da população do país. Segundo o Ministério da Saúde, essa grande parcela da população representa 70% dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar do grande quantitativo, é, ainda hoje, a população negra a mais atingida pelas iniquidades, não só na área da Saúde, bem como na Educação, Habitação, Trabalho etc.

Dados divulgados, em dezembro de 2014, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) revelaram que, entre 2001 e 2012, apesar da diminuição da iniquidade racial, as diferenças entre brancos e negros persistiam: em 2012, enquanto 22% dos brancos tinha 12 anos ou mais de estudo, apenas 9% dos negros conseguiram se manter tanto tempo na escola. A renda continua, também, discrepante: em 2012, o valor obtido pelos negros nunca foi superior a 62,9% do que é pago aos brancos. No que tange à moradia, a proporção de negros que moram em habitações adequadas é sempre menor, com destaque para a situação nas regiões metropolitanas (77,1% entre brancos e 60,9% entre negros) e urbanas não metropolitanas (61,9% brancos contra 41,9% negros).

Os números da violência retratam ainda mais a iniquidade entre os grupos populacionais, revelando que são os negros as maiores vítimas desse problema. Segundo divulgou, em janeiro, o Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens, coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a probabilidade de um jovem negro ser assassinado é três vezes maior do que um branco.

O abismo racial é retratado, também, pelos dados oficiais da Saúde ao identificar taxas de mortalidade materna e infantil na população negra muito acima das registradas entre mulheres e crianças brancas. Segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, 60% das mortes maternas vitimam negras. Entre as brancas, o índice cai para 34%. Ainda no parto, enquanto 46% das mulheres brancas tiveram acompanhantes, apenas 27% das negras tiveram o direito atendido. Das mortes na primeira semana de vida, 47% atingiram bebês negros, enquanto 36% ocorreram entre crianças brancas. Até mesmo os procedimentos corriqueiros se tornam discrepantes dependendo da cor da pele da usuária: 77,7% das mulheres brancas foram orientadas para a importância do aleitamento materno, enquanto 62,5% das mulheres negras receberam essa informação. Por fim, no mundo do trabalho na Saúde, um levantamento inédito do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) revela que somente 0,9% dos cerca de três mil novos médicos formados em 2014 no estado são negros.

Política Nacional

Esse quadro, porém, tende a mudar na Saúde. Desde agosto de 2004, a área conta com um instrumento valioso contra o racismo. Trata-se da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), cujo objetivo é combater a discriminação étnico-racial nos serviços e atendimentos oferecidos pelo SUS e, assim, promover a equidade em saúde da população negra. Fazem parte dessa iniciativa ações de cuidado, atenção, promoção à saúde e prevenção de doenças, bem como de gestão participativa, participação popular e controle social, produção de conhecimento, formação e educação permanente para trabalhadores da saúde. Por ter sido incorporada ao Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, a PNSIPN tem força de lei e deve ser cumprida em todo o território nacional pelas três esferas de governo.

A sua condução nacional está a cargo da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (Sgep/MS) que, para tanto, conta com a assessoria do Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN), criado em 2004. O CTSPN é responsável pela construção, elaboração e pactuação da PNSIPN, como a articulação para aprovação da política no Conselho Nacional de Saúde (CNS), em novembro de 2006. Atualmente, o comitê passa por uma reestruturação que busca abrir espaço para representantes do movimento social, o que vem sendo considerado um avanço importante por quem acompanha o tema. No CNS, por exemplo, o movimento negro tem uma cadeira titular (Unegro) e duas suplentes.

A PNSIPN já está em seu segundo plano operativo. O primeiro vigorou entre 2008 e 2012 e o atual, que começou em 2013, termina neste ano. O objetivo dos planos, que são pactuados pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT), é estabelecer estratégias e diretrizes de aplicação da Política. O atual está estruturado em cinco eixos, dentre os quais figura a Educação permanente em saúde e a produção do conhecimento em saúde da população negra. Nele, a primeira estratégia a ser implantada é a inclusão da temática étnico-racial nas capacitações, assim como na política nacional, estadual e municipal de educação permanente em saúde.

Racismo institucional

Segundo a PNSIPN, o racismo institucional pode ser definido como “a produção sistemática da segregação étnico-racial nos processos institucionais”, se manifestando em “normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de trabalho, resultantes da ignorância, falta de atenção, preconceitos ou estereótipos racistas”. Ainda, segundo a política, o racismo muitas vezes é velado, tomando a forma de linguagem codificada (violência simbólica) e negligência nas instituições.

Em 2014, para comemorar os dez anos da PNSIPN, o Ministério da Saúde lançou duas grandes ações de combate ao racismo institucional. A mais ampla se dirigiu a todos os brasileiros, pois se tratou da primeira campanha contra o racismo no SUS. Lançada no dia 25 de novembro do ano passado, em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a ação — que teve veiculação em todas as mídias — trouxe o slogan Racismo faz mal à saúde. Denuncie!. “Essa campanha é um alerta para os profissionais de saúde e para toda a sociedade brasileira. A desigualdade e o preconceito produzem mais doença, mais morte e mais sofrimento”, disse o ministro da Saúde, Arthur Chioro, durante o lançamento.

Outro passo decisivo foi em direção ao campo da educação permanente. O curso Módulo Multidisciplinar de Saúde Integral da População Negra, resultado da articulação entre os departamentos de Apoio à Gestão Participativa (Dagep/Sgep) e de Gestão da Educação em Saúde (Deges/Sgtes), em parceria com a Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS), foi lançado em 22 de outubro de 2014. Em apenas uma semana, recebeu 2,4 mil inscrições — a maior parte da sociedade civil e da militância. Atualmente, são mais de quatro mil inscritos. “O desafio [do módulo] é tratar com os profissionais de saúde dos temas do racismo na sociedade e do racismo institucional como determinante social que incide sobre a saúde da população negra, bem como promover a reflexão sobre as práticas de atenção, cuidado e gestão, protagonizando mudanças que contribuam para um melhor acolhimento no SUS”, resumiu a diretora do Dagep, Kátia Souto.

Segundo a antropóloga Lina Barreto, responsável pela coordenação do módulo na UNA-SUS, a participação de representantes de movimentos sociais foi chave para que se alcançasse o resultado almejado. O curso trata o racismo institucional sob diversos ângulos, apresentando depoimentos reais de pacientes negros, retratando experiências negativas de acolhimento em unidades de saúde, entrevistas com gestores e profissionais de saúde e vídeos onde especialistas apresentam estudos epidemiológicos que dão conta da iniquidade. “Embora as pessoas neguem que seja racismo, afirmando que se trata de preconceito com os pobres, sejam eles pretos ou brancos, as evidências científicas mostram que não é verdade. A justificativa não é a pobreza, e sim a cor da pele”, afirmou Lina.

Ela revela que a iniciativa tem uma dimensão propositiva que visa a tirar o profissional do imobilismo diante do problema. Lina esclarece que, embora o público-alvo inicial seja o profissional de nível superior, o curso alcança o trabalhador técnico de nível médio ao usar uma linguagem dinâmica, baseada em vídeos, depoimentos e dramatizações.

SP na vanguarda

A Rede de Escolas Técnica do SUS (RET-SUS) abriga duas experiências de vanguarda na educação permanente de trabalhadores contra o racismo institucional, ambas em São Paulo. Maria do Carmo Sales Monteiro, uma das duas pesquisadoras responsáveis pelo Módulo da UNA-SUS e integrante da CTSPN e que atua na Escola Municipal de Saúde de São Paulo (EMS-SP), conta que o tema faz parte do curso Técnico em Enfermagem. A proposta se deu com a criação da Rede, em 2000, quando então a escola reformulou seus currículos. A experiência chegou a ser divulgada nos principais eventos da saúde, como o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão) — que segue para sua 11ª edição em julho de 2015 — e o Congresso Internacional da Rede Unida — com a próxima edição (12ª) a ser realizada em março de 2016 —, sob o título O currículo integrado e a temática racial nos cursos de formação do Técnico em Enfermagem. O tema foi, em seguida, incluído na primeira etapa formativa do Técnico em Agente Comunitário de Saúde e no Técnico em Vigilância em Saúde, onde os alunos são incentivados a identificar nos territórios problemas quanto ao acesso da população negra ao serviço de saúde e a propor soluções, bem como na qualificação Excelência do Atendimento ao Cidadão, realizada anualmente pela escola para atendentes de recepção.

Outra recente ação da EMS-SP, nesse sentido, diz respeito à formação do conselheiro gestor, cujo objetivo é fazer com que o trabalhador seja capaz de desenvolver suas atividades, considerando a diversidade da população e suas características culturais. O curso vai ao encontro das ações da Área Técnica de Saúde da População Negra da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, bem como do Conselho Municipal de Saúde, que conta, desde 2003, com uma comissão específica para a Saúde da População Negra.

Ainda em São Paulo, as seis ETSUS do estado contam com a interlocução com o Programa Integral de Saúde da População Negra da Secretaria Estadual de Saúde (SES), responsável pela coordenação de ações de educação permanente e implantação das metas específicas do Plano Estadual de Saúde. Anna Volochko, coordenadora do programa, conta que o Instituto de Saúde (órgão da SES) oferece há anos o curso Iniquidades em Saúde, que aborda temas econômicos, raciais, de gênero e geracionais. Como forma de aprofundar as questões, a SES promove oficinas regionais de sensibilização e planejamento de ações em saúde da população negra. Recentemente reformulada, a oficina passou a ser oferecida de forma descentralizada, tendo sido realizada nas regiões de Barretos e de Taubaté.

Ações específicas

O atual Plano Estadual de Saúde de São Paulo reúne quatro ações específicas, sendo a primeira delas referente à anemia falciforme. Isso encontra justificativa nos números: a doença atinge em maior proporção a população negra (de 6% a 10% contra uma incidência entre 2% e 6% no conjunto da população). Nesse contexto, São Paulo pretende abrir centros de referência para a enfermidade em suas 17 regionais de Saúde, evitando que a população percorra grandes distâncias para ter acesso ao tratamento. A segunda ação diz respeito ao levantamento das condições de saúde e acesso a serviços de saúde da população quilombola do estado. Atualmente, 34 quilombos são reconhecidos e, do total, 26 já passaram pelo levantamento. “Pretendemos incluir o estudo das práticas tradicionais de saúde, buscando pensar, no futuro, uma estratégia de Saúde da Família que tenha aproximação cultural com as práticas tradicionais dos quilombos”, anunciou Anna.

O plano inclui, ainda, o diagnóstico da saúde da população negra no estado. Segundo a coordenadora do Programa Integral de Saúde da População Negra, essa ação está atrelada diretamente à implantação do quesito raça-cor nas informações e registros em saúde. “Embora o preenchimento seja obrigatório, nem sempre ocorre. Queremos que o Ministério da Saúde revogue a possibilidade de se colocar ‘cor ignorada’, como opção válida para o preenchimento do quesito”, adiantou. Mas o que isso significa na prática? Segunda Anna, implica ter, nas autorizações de internação hospitala, o quesito preenchido. “Caso contrário, o prestador não recebe pelo atendimento”, esclareceu. Vale citar que, em média, 25% das internações hospitalares têm o quesito raça-cor ignorado. Como um terço da população de São Paulo é negra, acrescentou, a lacuna invalida todo e qualquer estudo de morbidade, criando graves desvios estatísticos. O quadro piora quando se trata das autorizações para procedimentos de alto custo/complexidade, conhecidas como APACs. Nesse caso, a porcentagem do quesito raça-cor ignorado chega a 85%. “Ficamos sem poder saber se procedimentos de alta complexidade são igualitariamente distribuídos na sociedade. Aliás, sabemos por relatos, mas não temos condições de colocar o dedo na ferida em relação a quantas sessões de quimioterapia os brancos recebem versus os negros para um determinado câncer, como o de próstata, cuja mortalidade dos negros é maior”, criticou.

A dificuldade se estende às doenças renais crônicas, mais comuns em negros, e inclui, até mesmo, o procedimento mais complexo que existe: o transplante. Segundo Anna, na década de 1990, o Ipea divulgou uma pesquisa que mostrava que a maior parte dos doadores eram negros enquanto a maior parte dos receptores eram brancos. Mas qual seria a dificuldade de preencher esse quesito corretamente? Tanto Anna quanto Maria do Carmo elencam algumas razões. Segundo elas, os atendentes se sentiriam envergonhados ou teriam receio de serem tachados de racistas por perguntar o quesito raça-cor. Por outro lado, vários usuários se sentem ameaçados pela pergunta.

Por fim, a quarta ação do Plano Estadual de Saúde está relacionada ao incentivo da produção e divulgação do conhecimento científico sobre temas de saúde da população negra, apontada como desafio por Anna. No horizonte das ETSUS, o maior desafio, segundo Maria do Carmo, diz respeito a uma formação docente que contemple a questão étnico-racial. Por ser um problema árido, considerado estrutural na sociedade brasileira, as especialistas fazem um balanço realista das conquistas. “Não há dúvidas que avançamos. Hoje, ao andar pelas supervisões técnicas de Saúde em São Paulo [município] ou por outras cidades e estados, encontro muitas pessoas envolvidas com o enfrentamento do racismo. Em 1990, quando começamos com a implantação do quesito-cor no sistema de informação da saúde, nos sentíamos peixes fora d’água. Atualmente, temos pesquisadores e referenciais próprios”, observou Maria do Carmo. No entanto, segundo ela, o avanço está longe de ser suficiente, pois, na medida em que se progride, novos mecanismos de racismo são desenvolvidos. “Não podemos esquecer que vivemos em um Estado racista, em uma sociedade racista”, ponderou. E Anna concorda: “Do ponto de vista amplo, temos no SUS avanços grandes em relação à universalidade e à integralidade, mas acho que em relação à questão da equidade na saúde temos, ainda, um longo caminho a trilhar”.
 

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Marcos e conquistas de uma população excluída

1995: Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em 20 de novembro, reunindo 30 mil pessoas em Brasília. 

2001: 3ª Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata em Durban (África do Sul).

2003: É criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

2004: 1º Seminário Nacional de Saúde da População Negra (Brasília-DF)

2004: De forma inédita, o sistema de cotas para negros é instituído na Universidade de Brasília (UnB).

2006: Durante o 2º Seminário Nacional de Saúde da População Negra, em Brasília (DF), o Ministério da Saúde reconhece a existência do racismo institucional no SUS.

2011: Instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. A data é feriado em mais de mil municípios brasileiros.

2014: Cotas para negros em serviços públicos da administração federal são aprovadas.

2015: Começa a Década Internacional dos Afrodescendentes da ONU

2015: É criada a primeira Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão Negra, pela Ordem dos Advogados Brasil (OAB)
 

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