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Maria do Carmo Leal

‘A prática facilita a vida do médico’

Ana Paula Evangelista e Flavia Lima
 

O país é recordista mundial em cesarianas. Somente no setor privado, onde as mulheres têm maior escolaridade e poder aquisitivo, os índices chegam a 88% dos nascimentos. No setor público — incluindo os serviços próprios do SUS e os contratados do setor privado —, a cesariana alcança a marca de 46%. Se considerarmos os partos realizados na rede própria do SUS (instituições federais, estaduais e municipais), o índice é menor, 38%, mas ainda alto se compararmos ao que preconiza a Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo a qual até 15% dos partos devem ser realizados por meio de procedimento cirúrgico. Os dados são da pesquisa Nascer no Brasil – Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, coordenada por Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Estudiosa do tema há 20 anos, ela afirma à RET-SUS, nesta entrevista, que não há justificativa para índices tão altos, mas que em geral os médicos brasileiros defendem a cesárea como melhor forma, quando na verdade deve ser indicado em casos específicos.

Maria do Carmo alerta que o número excessivo de cesarianas expõe desnecessariamente as mulheres e os bebês a riscos de efeitos adversos. “Apesar de 70% das brasileiras optarem pelo parto normal no início da gestação, são poucas as que conseguem tanto no setor púbico quanto no privado”, revela. A prática cirúrgica atinge também as mães adolescentes: 42% delas — que representaram 19% do total de mulheres do estudo — fizeram cesariana. E a tendência é que realizem novas cesáreas em partos futuros.

Além disso, o modelo de atenção ao parto normal no Brasil é extremamente medicalizado, com intervenções excessivas e uso de procedimentos que, além de não serem recomendados pela OMS como rotina — como é o caso do uso da citocina —, provocam dor e sofrimento desnecessários. “No Brasil, 40% das mulheres sem nenhum risco usaram a citocina, pois é um padrão de atendimento. São intervenções desnecessárias sobre o parto vaginal que fazem ser doloroso e ruim para a mulher”, esclarece. Segundo ela, a revisão da formação do profissional obstetra e a maior participação do técnico poderia mudar esse cenário.

 

Como a pesquisa Nascer no Brasil surge?

A pesquisa foi recomendada pelo Ministério da Saúde, que estava preocupado com as altas taxas de cesariana. O título inicial do estudo era Inquérito nacional sobre cesáreas desnecessárias. Um nome complicado, pois classificar uma cesárea como ‘necessária’ ou ‘desnecessária’ não é comum, e isso inibiu alguns pesquisadores. Estabelecemos um critério e mudamos o nome, que acabou sendo muito mais representativo, já que não estudamos apenas a cesariana. A pesquisa envolveu 266 hospitais, 191 municípios de todas as capitais e cidades do interior e 24 mil mulheres, além de cerca de 600 pessoas da equipe. Tínhamos uma coordenação nos estados e uma coordenação regional. Em cada estado havia um coordenador. Foram quase dois anos de coleta de dados. Íamos deslocando por todo o Brasil. E os equipamentos que usávamos (máquinas, mochilas e camisetas, computadores) precisavam ir andando de um estado para outro, não tínhamos como atender simultaneamente.

O que se pode destacar nesse estudo?

Foi a primeira vez que se mostrou como a atenção ao parto e o nascimento no Brasil estavam acontecendo. Tínhamos algumas informações de estudos, mas eram particulares. Não tínhamos uma amostra que representasse o país. Por exemplo, as taxas de cesárea do Brasil já eram conhecidas, mas não sabíamos o quão grande elas eram no setor privado, e isso não fica discriminado no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos. Foi a primeira vez que se mostrou que no setor privado a taxa de cesariana chega a quase 90%, o que significa que é absurdamente alta, e isso precisa ser revisto. Outra novidade foi descrever como acontece o atendimento ao parto vaginal em si. Sabíamos que não estava bem, mas ninguém sabia o quanto de intervenções se praticava e o quanto não se fazia das boas práticas obstétricas que são recomendadas na literatura. Foi a primeira vez que pudemos ver essas informações e isso causou um impacto na sociedade e no setor dos profissionais de saúde.

Por que encontramos números tão altos no setor privado? Quais são os impactos disso? A cesariana seria a primeira opção das mulheres?

No Brasil, esse número realmente surpreende, pois observamos uma enorme quantidade de mulheres que, ao início da gestação, já desejava a cesariana, o que equivale a 29%. Sendo que isso foi maior no setor privado e bem menos no público. Essa constatação foi maior entre as que já tinham passado pela experiência do parto e menor entre as mulheres que estavam grávidas pela primeira vez. E elas queriam apenas repetir a experiência. Ou seja, quem fez cesariana queria cesariana e quem já tinha feito parte normal queria o mesmo modelo. Como a cesariana já era em maior número, a tendência por esse tipo de parto foi só crescer.

Quem normalmente decide pela cesariana, o médico ou a gestante?

Uma parte das entrevistadas diz que foram as mulheres. Outra diz que foi a gestante juntamente com o seu médico. Verificamos que das mulheres do setor público que estavam grávidas pela primeira vez somente 15% tinham preferência inicial pela cesárea. Já no setor privado, 36%. No setor público, 15% permaneciam com o mesmo desejo até chegar à maternidade. Já no setor privado, 70% mudaram de ideia quando chegou o momento do parto. Os números revelam que alguma coisa se passa no pré-natal no setor privado que faz com que a mulher mude de ideia. E essa alguma coisa, provavelmente, é o profissional médico. Os médicos brasileiros, especialmente do setor privado, acreditam que a cesárea é a melhor forma, que não tem nenhum risco. Além disso, a prática facilita a vida do médico, porque tudo é programado. E a mulher entra nesse processo, desejando a cesariana e achando que vai organizar melhor a vida dela, que o bebê não vai sofrer. Uma série de mitos equivocados, já que a cesárea é indicada em casos específicos.

As taxas de mortalidade materna e neonatal poderiam estar ligadas a essa prática?

Nesse estudo não vimos isso, pois para ver mortalidade e óbito é preciso um número maior de mulheres. Mas o que sabemos da literatura é que há estudos que revelam a associação da cesariana com o óbito materno em mulheres sem outras patologias, só mesmo pelo fato de ter feito cesariana. Quanto aos casos de eclampsia [hipertensão arterial específica da gravidez], ocorreriam com menor incidência se fossem prevenidos na gestação. A primeira causa de óbito materno no Brasil é a pressão arterial, pois nosso pré-natal tem problemas de qualidade.

A pesquisa conseguiu avaliar os riscos a que o bebê está submetido em caso de cesariana?

Não vimos o óbito, mas o principal risco do bebe é que ele vai para a UTI com mais frequência quando nasce de cesariana. Vimos isso no estudo e está escrito na literatura também. Muitas vezes, quando a cesariana é marcada, o bebê é tirado do útero antes da hora. Por causa disso ele nasce imaturo, sem capacidade de respirar sozinho.

Quais são os mitos que estão por trás de tudo isso?

Há uma discussão de que as mulheres têm medo da dor do parto. No Brasil, isso encontra justificativa, pois o parto vaginal é muito ruim, já que se usa a citocina para aumentar as contrações, e não é recomendado. Aqui no Brasil, 40% das mulheres sem nenhum risco usaram a citocina, pois é um padrão de atendimento. Isso faz doer muito o parto, pois excede a intensidade das contrações, o útero entra em exaustão. O procedimento pode até paralisar o trabalho de parto, obrigando a fazer uma cesariana. São intervenções desnecessárias sobre o parto vaginal que fazem ser doloroso e ruim para a mulher. Boas práticas obstétricas como caminhar, tomar um banho morno e fazer massagem são muito pouco usadas. A OMS recomenda que a mulher não chegue cedo no hospital — pois, caso contrário, as chances de intervenções são maiores —, e que receba orientação e acompanhamento. Mas em geral isso não acontece.

A cirurgia de cesariana já estaria no inconsciente coletivo?

Está no inconsciente coletivo do Brasil. Acho que há uma tentativa das classes mais baixas também optarem pela cesariana, acreditando ser esse um bom padrão de parto. Eu faço sempre um paralelo com a época do aleitamento materno: as mulheres de classe alta pararam de amamentar e passaram a dar fórmulas lácteas; e as mulheres mais pobres, que tinham dificuldade de comprar leite, passaram a fazer o mesmo. Isso trouxe um prejuízo grande não somente em relação à alimentação e à nutrição, como também ao contato com o bebê. Estamos vivendo com a cesariana algo parecido. Mas isso não é igual no mundo todo. Na Inglaterra, por exemplo, se uma mulher sabe que vai ser submetida a uma cesariana ela fica apavorada, pois sabe que é uma gestante de risco. Lá a cesariana é evitada justamente pelos riscos que pode trazer.

Nesse sentido, como você avalia a formação dos médicos?

Há necessidade de se rever a formação dos profissionais que atendem mulheres gestantes. O Ministério da Saúde vem buscando formar mais enfermeiros voltados para o parto e o pré-natal. Mas esse esforço está longe do tamanho da necessidade do país — hoje, somente 7% dos partos são realizados pelo enfermeiro-obstétrico. Isso é uma coisa que precisa mudar. Além disso, cesariana é o que se ensina na maioria das faculdades.

Qual seria o papel do profissional técnico na atenção à gestante?

É o técnico que está perto para reforçar a autonomia da mulher, para atendê-la e ouvi-la. O que a gente precisa é voltar ao tempo em que a mulher conduzia o parto com a ajuda de uma parteira. O Brasil precisa de uma parteira que tenha ido à universidade.

O estudo revelou um indicador de prematuridade elevado. Como você avalia esse dado?

O Brasil apresenta uma taxa de 10,3% de nascimentos prematuros, o que é alto. Na Inglaterra, a taxa é de 7% e a média geral dos países, de 6%. Isso se dá devido a problemas na qualidade da assistência pré-natal e retirada do bebê antes do tempo, ao optar pela cesariana, antes do tempo.

O estudo contribui para mudar o cenário futuro?

Eu não tenho dúvidas disso. Já há muita gente desconfiada e pedindo por outras opções que não seja a cesárea.

A Rede Cegonha contribui para essa mudança?

Sim. A proposta da Rede Cegonha é correta, uma pena que não conseguimos andar tão rápido. A ideia é de modificar a atenção ao parto normal e que as mulheres desejem menos a cesárea.

 

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