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As desigualdades das relações profissionais

Enquanto os saberes profissionais são produzidos a partir da reconstrução dos conhecimentos, as culturas profissionais, pelo compartilhamento de saberes.

Flavia Lima
 

A relação entre o universo do trabalho e a formação profissional está no cerne da pesquisa Saberes, competências e culturas profissionais dos trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS): o processo de reconstrução do conhecimento na relação trabalho e educação. O trabalho, desenvolvido pela professora e pesquisadora do Laboratório do Trabalho e da Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(Lateps/EPSJV/Fiocruz), Marise Ramos, entre 2012 e 2014, como fruto de seu pós-doutorado, revela as desigualdades de poder entre técnicos e profissionais de nível superior, identificando a necessidade de revisão da formação técnica de nível médio, com foco nas ciências. “Os saberes que os trabalhadores mobilizam no trabalho não são necessariamente os que aprendem na escola, mas tem tudo a ver com o que aprenderam, pois o modo como se aprende na prática é influenciado pelo modo como se aprendeu a teoria”, resumiu Marise.

De acordo com a pesquisadora, os saberes profissionais são produzidos a partir da reconstrução de seus conhecimentos formais articulados com os saberes da experiência em situações de trabalho. Já as culturas profissionais são construídas pelo compartilhamento de saberes, produzindo novos conhecimentos.

Ela revela que o objeto de estudo da pesquisa foi os saberes profissionais de trabalhadores técnicos de nível médio do SUS, utilizando como sujeitos os técnicos em saúde bucal da Escola de Formação Técnica em Saúde Enfermeira Izabel dos Santos (Etis), instituição no Rio de Janeiro que integra a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS).

A proposta foi identificar como os técnicos utilizam o conhecimento adquirido na formação e como eles produzem novos conhecimentos — ou os próprios conhecimentos — na relação do processo de trabalho. “A ideia foi captar os saberes em uso pelos técnicos, com a finalidade sempre de tentar observar o quanto os saberes se relacionam com os saberes formais, no sentido de olharmos para a escola. Ou seja, foi olhar sobre o trabalho que nos leva a olhar para a escola”, explicou.

O estudo das competências, segunda a pesquisadora, se dá a partir da noção que reordena o trabalho e a educação e do processo de reestruturação produtiva. Ou seja, do ponto de vista político que remete aos modelos de gestão do trabalho e das diferenças curriculares, Marise tenta discutir como a noção de competência foi sendo construída contemporaneamente, coerente com a lógica neoliberal. Ao passo que o processo de reestruturação produtiva coloca o trabalhador na centralidade do processo de trabalho. “Os processos vão dando centralidade ao trabalhador, a sua subjetividade e aos saberes. Isso é um aspecto de interesse virtuoso, tanto que a noção de competência antes de ser apropriada na perspectiva neoliberal foi tratada no sentido de identificar o que os trabalhadores
sabem ou devem saber”, explicou.

Marise revela que a questão da competência sempre a instigou. “Como eu trabalho com formação de trabalhadores e tenho como tema relevante a questão do trabalhador se apropriar do conhecimento científico e se desenvolver como sujeito singular, coletivo e classe social, a perspectiva de dar centralidade ao trabalhador, de ele reconquistar a propriedade do conhecimento do seu trabalho e, com isso, qualificar-se e qualificar o próprio trabalho, é bastante virtuosa e interessante”, justifica.

Trajetória

A pesquisadora investigou a noção do saber profissional, tomando como referência, também, pesquisas realizadas pelo sociólogo português Telmo Humberto Lapa Caria, professor catedrático de Sociologia do Conhecimento Profissional e docente de Sociologia e Ciências Sociais dos cursos de Serviço Social da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. “Ele estudava grupos profissionais e saberes desses grupos. Iniciei, então, uma troca de conhecimento com Caria e elaborei um projeto de pesquisa, tentando usar a perspectiva teórica dos saberes profissionais — e não das competências”, relembra.

A pesquisa foi uma porta de entrada para o pós-doutorado em Portugal, onde Marise participou de um grupo de pesquisa estudando saberes profissionais de trabalhadores sociais do terceiro setor (terminologia sociológica que dá significado a todas as iniciativas privadas de utilidade pública com origem na sociedade civil). “Caria observou o terceiro setor, especificamente atividades voltadas para desempregados, idosos e educação de adultos. Esses sujeitos que ele investigou têm as mesmas características dos sujeitos que estudo aqui, que são os trabalhadores da saúde, em razão do componente social e interativo”, compara.

Ainda em Portugal, Marise desenvolveu uma ferramenta empírica, voltada para a análise dos saberes profissionais. Por meio dela, estudou a relação da situações de trabalho com as competências, buscando o sentido de competências práticas (o que eles fazem) e cognitivas (como é o processo de mobilização mental do conhecimento). Ao retornar para o Brasil, Marise foi a campo estudar os trabalhadores da saúde bucal, usando sujeitos formados pela Etis. Ela partiu do pressuposto que os trabalhadores reconstroem os conhecimentos formais, articulando-os com os saberes da experiência em situações de trabalho e, consequetemente, produzindo seus saberes profissionais.

Panorama

No plano microssocial, Marise observou que os grupos profissionais podem criar relações baseadas em racionalidades compreensivas que se opõem, simultaneamente, à violência simbólica associada à desigualdade de poder e à simples negociação de significados nas interações. Já no plano macrossocial, os grupos profissionais podem constituir-se em sujeitos coletivos, cujas práticas ultrapassam interações locais em direção a relações sociais de alianças e/ou conflitos com outros sujeitos coletivos.

Ela observa que a aprendizagem no trabalho e a experiência contam mais que o que trabalhadores aprenderam na formação. “Que tipo de formação então é essa?”, provoca a estudiosa. Em sua avaliação, os saberes profissionais dos técnicos estudados são mais influenciados pela experiência no trabalho que pela formação técnica/escolar. Isso se comprova por meio da observação de três tipos de competências cognitivas: automáticas; analíticas; e intuitivas/associativas.

Marise ensina que as competências automáticas são aquelas que expressam o que o trabalhador faz intensamente na rotina — ou seja, quase automaticamente. “O profissional é experiente a tal nível que quase não precisa recorrer ao conhecimento formal”, explica. As competências analíticas implicam necessidade e capacidade de análise diante das situações, recorrendo a conhecimento mais sistematizado por meio de um processo mental e cognitivo. Já as competências intuitivas e/ou associativas referem-se a uma dinâmica maior do saber da experiência. “É quando você faz uma coisa, mas não sabe exatamente como. Mas alguma coisa te diz que é daquela forma. Isso é uma influência da vivência e da experiência que o trabalhador já tem”, esclarece.

Segundo a pesquisadora, o trabalho técnico é sustentado predominantemente pela competência intuitiva. Isso porque, segundo ela, a fonte de conhecimento científico desse sujeito é tão completa, com capacidade de estruturar experiências de trabalho adequadas, bem realizadas e exitosas, que o saber profissional é um saber de caráter fundamentado na práxis. “Essa competência é estruturada no sentido pragmático. Ou seja, predomina a experiência do conhecimento formal”, acrescenta.

Relações de poder

A pesquisadora observa, também, que a prática profissional, por mais que seja de execução, se baseia em fundamentos científicos. “Quanto mais acesso aos fundamentos científicos e tecnológicos da sua prática, mais a ciência constitui-se como fonte do saber profissional”, afirma. Uma segunda observação baseia-se na relativização de poder no interior da equipe. Ou seja, na mensuração de quem tem mais poder em dispôs-se a perder um pouco dele e quem não tem, em adquirir poder.

Isso quer dizer que, diante das situações que exigem análise, é o profissional do nível superior que vai atuar, observando uma relação de desigualdade de poder. “O técnico nem sempre é chamado e, por vezes, é interditado a dar sua opinião”, garante. Segundo Marise, os profissionais de nível superior são reconhecidos como profissionais capazes de analisar uma situação, porque em sua formação é impositiva a necessidade de base científica. Já, na formação técnica de nível médio, a base científica não é necessariamente imposta. “É possível fazer uma formação técnica sem recorrer a bases ou fundamentos científicos e, com isso, a atividade técnica de nível médio pode não ser reconhecida como uma atividade profissional”, diz a pesquisadora.

Marise afirma que a divisão do trabalho, por sis só, já estabelece uma desigualdade de poder, conferindo apenas ao profissional de nível superior a legitimidade para decidir sobre situações que implicam deliberações. “No que se refere à relação de poder, é preciso observar que por vezes há uma dinâmica por meio da qual o técnico de nível médio pode exercer poder de outra maneira. Isto é, ele tem competência na ação e, consequentemente, tem elementos e fontes que o permite ser crítico ao trabalho do profissional de nível superior”, revela.

A tendência é que esses profissionais busquem exercer o poder a partir de seu conhecimento prático. “O profissional de nível superior coloca menos a ‘mão na massa’ e, por isso, ele recorre mais ao técnico de nível médio, porque ele vai trazer mais elementos em relação ao usuário. De todo modo, meu foco é a relação entre experiência e ciência. Minhas conclusões me levam a defender que uma formação baseada nos fundamento científico coloca o técnico em outro lugar nessa relação”, afirma.

Para a estudiosa, consciência prática e práxis são um mesmo fenômeno. Ou seja, uma dialética entre conhecimento científico e experiência. “Sendo uma possibilidade ontológica da sociocognição, tal dialética é mais potencializada quanto menos as relações de trabalho basear-se em desigualdades de poder”, acrescenta.

Reflexão

A pesquisadora defende a necessidade de se repensar a formação técnica de nível médio com base nas ciências, promovendo o reconhecimento social desses profissionais e conferindo a eles mais poder simbólico. Ela observa que a formação técnica de nível médio está, predominantemente, centrada nos processos operacionais do exercício do trabalho. Isso, segundo ela, encontra explicação na lógica da pedagogia das competências. Ou seja, mais na ideia que o profissional é útil para a boa prática e menos na concepção que o sujeito compreenda a base científica do processo de trabalho ou área de conhecimento “A fonte de conhecimento predominante do trabalhador é a experiência”, garante.

Marise reforça que elevar o poder simbólico dos técnicos, mediante a fundamentação científica de sua formação, e relativizar o poder simbólico dos profissionais de nível superior são desafios importantes. “Precisamos de uma formação em que o sujeito vai se constituindo como um sujeito de transformação,  desenvolva sua autonomia, procurando compreender a sua realidade. Tomando essa referência de uma formação orientada pela práxis e pelo desenvolvimento do sujeito, visando à capacidade de ação e transformação, eu constato que ainda temos um ensino pragmático. Olhando para o trabalho, temos a experiência como fonte principal do saber profissional”, observa.

Ela critica que a formação dos técnicos tem caráter pragmático, visando ao desenvolvimento de competências práticas para o exercício do trabalho, de tal forma que o conhecimento científico esbarra no limite da melhoria da necessidade imposta por um desempenho eficiente. “Esse tipo de ensino é convergente com uma lógica do trabalho que reitera a divisão técnica e social do trabalho, que reforça o lugar subordinado do técnico em nível médio”, orienta.

Para Marise, os desafios impostos à Educação Profissional em Saúde são compreender a formação técnica de nível médio dos trabalhadores de saúde como política educacional, de formação científica, técnica, cultural e ética-política —  e não somente como política de recursos humanos—, fortalecer as escolas técnicas do SUS (ETSUS) como instituições de formação e, assim, providas de condições para tal exercício e, por fim, admitir que a política de educação profissional integrada ao ensino médio abrange, também, a formação de técnicos em saúde.
 

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