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Entre a crise política e o futuro do SUS

Conferência afirma necessidade de ampliação de fontes de recursos, em meio a manifestações políticas.

Ana Paula Evangelista e Katia Machado
 

Cerca de 4.600 pessoas, entre 3.260 representantes de gestores, prestadores de serviço, trabalhadores da saúde e usuários, participaram da 15ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada de 1º a 4 de dezembro, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília. Sob o tema Saúde pública de qualidade para cuidar bem das pessoas, direito do povo brasileiro, o encontro se deu em meio a uma crise econômica e política, sendo especialmente atravessado por atos de apoio ao governo, a despeito de algumas críticas, diante da abertura de impeachment contra a presidente da República Dilma Rousseff, aceita na ocasião pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) — no dia 2 de dezembro.

Momento aguardado e que anteciparia o debate de pautas caras ao SUS, antes da abertura da 15ª CNS, foi promovida a Marcha em Defesa do SUS, reunindo em torno de 10 mil pessoas ligadas à saúde, movimentos sociais e centrais sindicais. Entre as reivindicações, puxadas principalmente por integrantes da Frente em Defesa do SUS, destacou-se a ampliação de fontes de financiamento, além da rejeição à privatização da saúde e do apoio à luta contra o consumo abusivo de agrotóxicos. O tema, por sinal, foi focal para um grupo de mulheres militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) que, vestindo panos sobre a boca e coletes pretos, com caveiras brancas desenhadas, formaram um círculo no gramado em frente ao Congresso Nacional — os manifestantes caminharam da Catedral de Brasília até o Congresso. Algumas embalavam nos braços bonecos que traziam a mesma caveira branca, fazendo alusão à posição da amamentação. Outras empunhavam cartazes que diziam “O leite materno está contaminado” e “Alto consumo de agrotóxico = má formação”. A encenação fez alusão aos inúmeros agravos à saúde da população provocado pelo uso massivo de agrotóxicos, entre eles a contaminação do leite materno de mulheres que foram expostas à pulverização aérea de agrotóxicos em plantações de soja em estados como o Mato Grosso (sobre a Marcha, veja matéria publicada no site da RET-SUS).

Saúde em xeque

Na abertura oficial, realizada na noite do dia 1º, aplaudida pela plateia em vários momentos, Maria do Socorro, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) — que deixou o cargo após eleição realizada no dia 16/12 —, chamou atenção para questões que precisam ser enfrentadas, como o subfinanciamento do SUS, a relação público-privada e o consumo abusivo de agrotóxicos, aproveitando a oportunidade para cobrar da presidente Dilma Rousseff o cumprimento do compromisso que fez de lançar o Programa Nacional de Redução de Uso de Agrotóxicos (Pronara), e reconheceu a necessidade de algumas medidas de ajuste fiscal, ponderando, porém, que tais medidas não podem afetar direitos sociais. Nesse contexto, defendeu a taxação das grandes fortunas e movimentações financeiras.

Socorro também fez críticas a propostas que estão em tramitação no Congresso Nacional, a exemplo da redução da maioridade penal, da terceirização dos serviços públicos, da flexibilização do Estatuto do Desarmamento, da retirada dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e, principalmente, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 451, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que obriga os empregadores brasileiros a garantirem a seus empregados planos de saúde, privilegiando o sistema privado de saúde em detrimento do público. “Nós vivemos em um país capitalista, mas temos que ter a capacidade de entender os processos históricos e se posicionar contra uma elite intolerante e forças conservadoras que tentam criminalizar nosso jeito de fazer política”, orientou, recebendo o apoio da plateia sob os gritos “fora Cunha”.  “Eu queria gritar o mesmo que vocês, mas a institucionalidade me impede”, explicou, conduzindo o novo ministro da saúde, Marcelo Castro, ao púlpito, quebrando o protocolo e tomando o lugar do mestre de cerimônia.

Castro iniciou a fala de forma amistosa. No entanto, ao defender a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) como umas das novas fontes de arrecadação de recursos para saúde, recebeu uma das mais fortes reações negativas ao seu discurso. Outro momento criticado pela plateia foi quando o ministro fez referência à necessidade de apoio à participação da iniciativa privada na saúde, ponderando que “o setor privado participe de forma complementar” e “subordinado ao poder público”, como nos casos das transferências de tecnologias. 

O ministro voltou a falar na manhã do dia seguinte, durante a mesa de abertura intitulada Reformas democráticas e defesa do SUS. Ele focalizou os programas do Ministério da Saúde que vem se destacando no cenário atual, como o Mais Médicos e Mais Especialidades, e lembrou o Programa de Combate ao HIV, reforçando o compromisso junto a outros países de erradicar a epidemia até 2020. Na lista, incluiu ainda a distribuição gratuita de medicamento para tratamento dos portadores de hepatite C e os programas de imunização e de transplantes de órgãos, como exemplos exitosos para o mundo. O ministro finalizou fazendo mais uma vez defesa à CPMF.

Taxação dos mais ricos

Antecedendo Castro, o presidente da Fundação Perseu Abramo, Márcio Pochmann, discorreu sobre alguns desafios impostos pelo século 21. Para ele, quando nos referimos à saúde pública, os pontos a serem observados são a profunda transição demográfica no Brasil, a alteração no mundo do trabalho e a saúde com foco na doença. O economista, que presidiu durante parte do governo Lula o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), vinculado à extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, fez críticas ao que chamou de “constrangimentos causados pela transição do centro dinâmico do capitalismo”, marcado por um cenário mundial dominado por grandes corporações, que insiste em uma mesma política econômica e provoca o esgotamento do ciclo político. “O sistema político eleitoral caiu em descrédito. Precisamos recuperar o modelo de sistema político”, orientou. Como forma de promover a equidade e garantir recursos que a saúde carece, Pochmann defendeu a taxação sobre grandes fortunas e movimentações financeiras.

Sob aplausos, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ) voltou a criticar a PEC 451 e a proposta que aumenta a punição ao aborto, ferindo direitos sexuais e reprodutivos da mulher — as duas de autoria do deputado Eduardo Cunha. Ela também orientou os sindicatos a atentarem para a luta por um SUS universal, sugerindo trocar a pauta de reivindicação por planos de saúde pela defesa por um SUS de qualidade para os trabalhadores. Ela ainda citou como desafios a serem enfrentados o subfinanciamento, defendendo a CPMF e a taxação sobre grandes fortunas e movimentações financeiras como forma de buscar novas fontes para o setor, além da necessidade de regulação do setor privado e da democratização dos meios de comunicação. “Não há solução no plano individual, precisamos democratizar os meios de comunicação no Brasil e permitir a liberdade das ideias, garantindo que a política seja um instrumento de transformação”, defendeu.

Em debate

Direito à Saúde, garantia de acesso e atenção de qualidade, Participação e controle social, Valorização do trabalho e da educação em saúde, Financiamento do SUS e relação público-privado, Gestão do SUS e os modelos de atenção à saúde, Informação, educação e política de comunicação do SUS, Ciência, tecnologia e inovação no SUS e Reformas democráticas e populares do Estado deram título aos oito eixos temáticos que balizaram as discussões dos 28 grupos de trabalhos, sobre o relatório consolidado da etapa estadual — os GTs foram distribuídos entre os sete primeiros eixos temáticos e todos analisavam o eixo oito, considerado transversal. Antecedendo o momento de discussões das propostas — os participantes, durante a manhã do segundo dia da Conferência, ouviram ainda as reflexões de especialistas sobre os eixos temáticos.

Na mesa Valorização do trabalho e formação no SUS, por exemplo, balizando o eixo dois, o secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Sgets/MS), Hêider Aurélio Pinto, apresentou alguns princípios norteadores da temática, a exemplo da criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, em 2003, com a missão de articular e construir políticas permanentes de educação na saúde e formar trabalhadores segundo as necessidades do SUS. Para ele, são desafios para o SUS que estão diretamente ligados à formação e à valorização dos profissionais: reduzir as desigualdades geográficas e de grupos sociais; fortalecer atenção básica e as redes assistenciais regionalizadas, como estratégia de garantia do acesso e do cuidado integral; reforçar a estruturas de respostas às urgências em saúde pública; aprimorar o pacto interfederativo para o fortalecimento do SUS; aumentar a capacidade de produção de insumos estratégicos em saúde e a produção de inovações tecnológicas, bem como o financiamento da saúde e a eficiência no gasto; e incentivar propostas de fixação dos trabalhadores da saúde em áreas com carência desses profissionais. O tema da educação permanente em saúde (EPS), segundo Hêider, é focal quando se trata de pensar o SUS com qualidade, informando que os trabalhadores de nível médio representam 60% do total de recursos humanos da área.

No debate, a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Maria Helena Machado, falou sobre as tendências da força de trabalho na saúde a partir de pesquisas que realizou. Ela destacou como características atuais dessa força de trabalho a elevação da escolaridade das equipes profissionais, produzindo no nível médio o fenômeno da superqualificação, o crescimento descontrolado da oferta de profissionais, gerando desequilíbrio entre oferta e demanda, o aumento da privatização desordenada das escolas de formação profissional de saúde, bem como do desgaste profissional, seguido de depressão, obesidade, cansaço e sentimento de desvalorização, gerando volumes alarmantes de licenças médicas.

Ao citar a pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, que coordenou pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recursos Humanos em Saúde da Escola de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp\Fiocruz), ela evidenciou dados importantes sobre as condições de trabalho e formação de auxiliares, técnico e enfermeiros no país. O estudo revelou que 53% da equipe de enfermagem declararam ser maltratados e desrespeitados pela população usuária, especialmente pelos familiares dos pacientes; 70% da equipe não se sentem protegidos no seu ambiente de trabalho; e 60% não têm qualquer assistência básica nas instituições onde trabalham.  “Eles atendem e dão assistência, mas não são assistidos quando adoecem em seu próprio ambiente de trabalho, e metade do contingente afirma não ter infraestrutura e enfrenta descanso quanto a jornadas de trabalho longas”, destacou.

Saída pela regionalização

Na mesa Gestão do SUS e modelos de atenção à saúde, os debatedores destacaram o problema da fragmentação do SUS, apontando saídas que passavam por concursos públicos e pelo fortalecimento das redes de saúde. Integração foi a palavra motriz das reflexões sobre o sexto eixo da Conferência. Na mesa, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Gastão Wagner de Sousa Campos, discorreu sobre a fragmentação do SUS. Defensor de uma estratégica unificada de gestão do sistema público de saúde, que batizou de SUS Brasil, Gastão apontou caminhos para a superação do problema, começando pela reforma do Estado e diminuição do clientelismo. “Isso se faz com concurso público”, defendeu. Para ele, até mesmos os cargos de confiança deveriam ser preenchidos com concurso interno e período de mandato. Ele também propôs a criação de carreiras do SUS e a reflexão crítica sobre a gestão participativa.

O secretário estadual de saúde de Minas Gerias, Fausto Pereira dos Santos, seguiu na mesma direção, defendendo um grande pacto entre os atores da saúde para que se possa romper com o corporativismo e, ao mesmo tempo, ampliar a articulação em rede. Santos observou como problemas a pouca prática de atuação em rede, a fragilidade no planejamento, as disputas entre gestores e a insipiência do processo de regulação e contratualização dos serviços de saúde. Ele reforçou que a regionalização tem enorme potencial de superar a fragmentação do SUS e, consequentemente, garantir a integralidade, otimizar recursos, estimular a cooperação intermunicipal e estabelecer mecanismos de governança.

A mesa não deixou de analisar a origem do problema da gestão do SUS. Especialista em gestão e direito público, a secretária de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, Lenir Santos, tratou de recordar que o SUS foi pensado para um Estado unitário, sendo o Brasil um Estado federativo. De acordo com ela, o SUS tem como diretriz constitucional ser descentralizado ao mesmo tempo em que por conceituação — também constitucional — constitui-se como resultado da integração das ações e serviços públicos em rede regionalizada e hierarquizada.

Diferentemente de países como Itália, Inglaterra e França, que são unitários, o Brasil é um país federativo, formados por entes independentes que, segundo a lei, são obrigados a cooperar entre si. “O artigo 18 da Constituição Federal diz que todos os entes são autônomos entre si. Já o artigo 198, que o SUS resulta da articulação dos entes”, citou. Outra característica peculiar do país é que nele coexistem União, estados e municípios, aumentando as dificuldades em razão das desigualdades regionais.

A lei, portanto, busca resolver o problema das desigualdades regionais por meio da harmonização entre autonomia e interdependência dos entes federados, regionalizando a descentralização e tornando a integração obrigatória, mediante cooperação dos entes para alcançar a igualdade e a solidariedade sistêmica. Na avaliação de Lenir, a descentralização associada a uma interdependência operativa e orçamentária e a forte centralização federal pela via dos programas de saúde federais tornam o SUS bastante complexo e de difícil gestão.

Ela defendeu como soluções possíveis a gestão interfederativa por consenso e contratos, a exemplo das comissões intergestores tripartite, e o fortalecimento das redes de ações e serviços de saúde. “O Decreto 7.508 vem tentar superar alguns desafios do ponto de vista da teoria, definindo a região de saúde, as responsabilidades e o mapa sanitário que orienta o planejamento e identifica as necessidades de saúde”, lembrou, referindo-se a norma de 2011 que regulamentou a Lei Orgânica da Saúde 8.080/90. ”Não podemos perder de vista que, para que o SUS alcance seu ideal de justiça, cooperação e solidariedade federativa, requer mudança na cultura centralista e que esta deve ser sobreposta por práticas federativas”, finalizou, sugerindo, a despeito do tema da mesa, a participação popular na construção do orçamento.

Privatização em foco

Os grupos de trabalhos analisaram 625 proposições gerais. Destas, 80% foram aprovadas com mais de 70% dos votos, 13% foram rejeitadas e 7% foram para a plenária final. A luta contra a privatização, puxada por movimentos sociais e estudantis, estava expressa em muitas propostas, a exemplo do fim das Organizações Sociais (OS) como modelo de gestão para o SUS e da revogação da lei que criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Centro da crítica de estudantes que integram executivas nacionais de cursos de graduação da área da saúde, como medicina, enfermagem e farmácia, entre outros, que estavam representados na Conferência como convidados, fazendo manifestação iniciada pelas redes sociais com a hashtag #Ocupa15CNS, a Ebserh torna-se a identidade jurídica e o modelo de gestão dos hospitais universitários e, segundo os militantes, a exemplo de integrantes da Frente Goiana Contra a Privatização da Saúde, o modelo fere a autonomia universitária. Eles criticaram a precarização do trabalho que a Ebserh representa e manifestaram preocupação com o perfil dos profissionais de saúde que estão sendo formados a partir de uma lógica que eles consideram hospitalocêntrica e tecnicista, com cada vez menos enfoque crítico e, portanto, adequada ao processo de privatização da saúde.

Expressas nas propostas aprovadas estavam, ainda, posicionamentos contrários à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que reduz a maioridade penal e à que obriga os empregadores a oferecerem planos de saúde privados para os contratados — esta última de autoria do deputado Eduardo Cunha e muito criticada também nas falas oficiais da cerimônia de abertura —, e a recusa do Projeto de Lei 5.069/2013, que reduz os direitos das mulheres vítimas de violência sexual. Outras pautas expressas entre as diretrizes e propostas aprovadas, estavam a taxação sobre as grandes fortunas e movimentações financeiras e a rejeição à PEC 451.

Caráter popular

Na avaliação de Socorro, em artigo publicado no site do Conselho Nacional de Saúde (7/12), a 15ª CNS posicionou-se frente à ameaça de golpe ao Estado democrático e de direito, além de defender, atualizar e ressignificar o conceito de direito universal à saúde. “E foi além, ao discutir, também, condições necessárias para dar materialidade a este direito mediante a formulação e execução de políticas públicas”, escreveu. Para ela, a 15ª CNS conquistou êxito ao discutir o papel do Estado na regulação do trabalho em saúde, os espaços de negociação permanente entre trabalhadores e gestores da saúde e os mecanismos de precarização, valorização e qualificação do trabalho na saúde, por meio da criação e implementação do Plano de Carreira, Cargos e Salários.

Além disso, acrescentou, a Conferência aprovou propostas que tentam superar o acumulado e histórico subfinanciamento, bem como a insuficiência de recursos, e vetou o repasse de recursos públicos para instituições de direito privado, como Organização Social da Saúde e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, sem esquecer-se da rejeição de medidas que estão nas agendas legislativas e ameaçam os direitos da classe trabalhadora e dos povos indígenas, inclusive no que se refere à sua permanência em terras originárias.

Papel do controle social

Por um lado, uma avaliação bastante positiva da presidente do Conselho Nacional de Saúde sobre a 15ª CNS, comparando a edição à 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), ao recuperar e ampliar o caráter político e popular dessa instância do controle social. Por outro, a Conferência e o próprio Conselho Nacional de Saúde foram alvo de críticas.

Na avaliação do farmacêutico e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, a 15ª CNS foi um espetáculo de manipulação e controle absoluto por parte do governo e aliados que estão na instância nacional do controle social. “Não somente foi pensada para não ter contestações, como a 15ª CNS não provocou debates coletivos”, opinou, fazendo críticas a metodologia de debates nos grupos de trabalho, por meio dos quais aos participantes somente era reservado  discutir as propostas de dois eixos, o transversal a todos os grupos e o específico, escolhido ao se credenciar.

Júnior, que integra a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde — composta por diversos fóruns estaduais em torno da luta por um SUS 100% público, estatal e de qualidade —, reconhece a relevância da presença de um presidente da República na Conferência Nacional de Saúde, a exemplo do ex-presidente Lula na 14ª CNS. “É legítimo o presidente da República falar em uma conferência. O que não se pode é ficar fazendo apoio a governo e trazer um chefe de Estado sem a ele apresentar as críticas e as devidas reivindicações”, disse.

Para o ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde, coube à Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde ser o protagonista dos debates mais significativos. “O SUS decididamente não tem hoje, no controle social cooptado, governista, fisiologista e sem qualquer autonomia ou independência, um aliado para resistir ao seu processo de destruição”, garantiu. Para ele, a Frente conseguiu garantir na 15ª CNS o debate sobre a privatização da saúde, independente de governo e partidos. “Todas as propostas da Frente foram aprovadas. Mais do que isso, conseguimos ampliar o debate sobre um modelo de privatização nocivo que acontece no SUS”, avaliou.

Apesar dos problemas apontados, Júnior acredita que a Conferência produziu um relatório final — que ainda será divulgado — sintonizado com as propostas defendidas pela Frente e aprovadas nas últimas conferências nacionais. “Temos um acúmulo de sucessivas conferências a nosso favor. O relatório deve reiterar aquilo que já vínhamos aprovando, como a necessidade de fortalecimento da atenção básica, das equipes multiprofissionais em saúde na perspectiva de superação do modelo centrado no médico e da rede pública em substituição à rede privada”, enumerou, ponderando, no entanto, que face ao enfraquecimento do controle social os relatórios finais não têm sido considerados pelos governos.

A presidente do CNS, porém, discorda de que se tenha adotado postura acrítica em relação ao governo federal. Segundo ela, foram feitas críticas ao ajuste fiscal e tomadas posições em relação ao capital estrangeiro e ao Ato Médico. “Apresentamos, também, uma crítica ao corte de R$ 16 bilhões na Ploa [Projeto de Lei Orçamentária Anual] que está no Congresso Nacional”, citou Socorro, que afirma que o Conselho vem travando embates com o governo por um projeto nacional que defende pautas como a reforma agrária, tributária e dos meios de comunicação.

Ela lembrou que a 15ª CNS debruçou-se sobre uma questão fundamental que é a comunicação, em um mundo integrado por redes digitais. “Nela, tiramos propostas para o uso da internet e de rádios comunitárias de forma a fortalecer e inovar a participação e a comunicação social no SUS”, destacou. Outro ponto de avaliação foi o orçamento participativo que, segundo a presidente do CNS, foi reafirmado como forma de combater a corrupção e a má gestão pública, comprovando um posicionamento bastante crítico.  

Atravessamento da política

O último dia da 15ª CNS foi marcado pela realização da plenária final. Os mais de três mil delegados iniciaram os trabalhos por volta das 10h30 com a votação das 27 moções que obtiveram mais de 590 assinaturas — o que provocou algumas reclamações, já que a mesa, ao contrário do previsto, propôs votar primeiro as moções, deixando as propostas para o fim. Por volta das 11h, a votação foi interrompida pela presença da presidenta Dilma Rousseff, cuja presença chegou a ser anunciada para a noite do dia 3.

Apesar do entusiasmo da maioria com a presença de Dilma Rousseff, sob os gritos de “Não vai ter golpe”, “Fora Cunha” e “Ole, olé, olá, Dilma, Dilma”, um clima bastante tenso foi formado logo no início da plenária final. Isso porque, para acomodar os delegados no auditório principal, foi montado um esquema de segurança, comum quando há presença de chefes de Estado. A Polícia Militar do DF foi acionada e alguns participantes alegarem ter sofrido agressões ao tentar acessar o espaço. “Se somos delegados eleitos, tínhamos que estar acompanhando a plenária, mas a Polícia impediu a nossa entrada. Isso sim que é golpe contra a democracia, ao controle social”, reclamou Rodrigo Brito, representante do segmento de usuários de Minas Gerais. 

De dentro do auditório, alguns reclamavam da interrupção e da postura do Conselho Nacional de Saúde. “Isso é uma postura ideológica partidária. A presidente do Conselho não pode defender partido na plenária final. Isso é uso da máquina pública. Começa a ser pacto de governo e não de Estado”, criticou o médico psiquiatra Lucas Gabriel Maltoni Romano, representante do segmento de profissionais de saúde de São Paulo. “Nós estamos aqui para defender o SUS e não para entrar na confusão de Dilma e Cunha, isso é problema deles”, afirmou Paulo César, do Espírito Santo. Por outro lado, muitos acolhiam toda aquela mobilização. “Somos seres políticos e esse espaço é para discutir política. Eu estou aqui em apoio a Dilma e ao SUS”, disse Carla Minisiatta, delegada na 15ª CNS, representando o segmento de usuários de Minas Gerais.

Dilma iniciou seu discurso, fazendo alusão à defesa que o governo faz à saúde. “Estamos juntos nessa luta, que vai nos exigir muito diálogo e trabalho. Até 2018, eu e meu governo seremos incansáveis na tarefa de construir saúde de qualidade para cuidar bem dos brasileiros”, frisou. A presidente da República destacou as estratégias para conter a epidemia do vírus Zika. Entre as medidas está a mobilização de agentes de saúde, da Defesa Civil, do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em todo o país e o lançamento — que acorreu em 5 de dezembro, de um plano de ação para estancar o aumento de casos de microcefalia no Brasil. Ela também citou as conferências nacionais de saúde como mola propulsora do controle social na saúde e lembrou a criação do programa Mais Médicos. “Há quatro anos, entre as diretrizes aprovadas na 14ª Conferência Nacional de Saúde, destacava-se a necessidade de fortalecer a atenção básica. Nós escutamos essa reivindicação e avançamos muito, construindo uma rede bem mais estruturada. Construímos novos postos de saúde, melhoramos e reformamos os existentes, fortalecemos o Samu e criamos as farmácias populares. Mas eu quero dizer para vocês que a maior vitória da atenção básica no nosso país foi o Mais Médicos”, ressaltou.
 

ENTREVISTADOS

Mara Oliveira da Costa, representante do segmento de usuários (RJ)

“O SUS era para ser algo maravilhoso, mas ainda deixa muito a desejar, principalmente na questão do financiamento. Estamos entregando nossas conquistas ao sistema privado. Isso significará a morte do sistema conquistado pelo povo. Sendo assim, espero que essas propostas se tornem leis e que sejam colocadas em prática. Como cadeirante luto pela causa dos portadores de deficiência, especialmente pela ampliação da acessibilidade”.
 

Aparecida de Carvalho Porto, representante do segmento de trabalhadores (RS)

“O grande objetivo das centrais sindicais nessa Conferência é que os direitos dos trabalhadores sejam garantidos. A saúde da classe trabalhadora está em risco com a invasão das empresas privadas na saúde. Além disso, estamos sentindo muita dificuldade na aprovação das nossas propostas devido a um movimento direitista neste encontro”.
 

Liliane Lins, representante do segmento de trabalhadores (BA)

“Como militante do SUS, tenho que reconhecer que estamos perdendo nossos direitos constitucionais de saúde e educação. Precisamos lutar contra esse movimento de privatização, e precarização do trabalho, que se instala a partir do momento que temos a contratação de profissionais por meio das Organizações Sociais, diminuindo nossa potencialidade de luta. Precisamos ter um SUS fortalecido, com perspectiva de carreia, para que esse profissional possa ter condições de exercer sua profissão conforme a expectativa da população também”.
 

Girlene Silva dos Anjos, representante do segmento de trabalhadores (AP)

“Sou agente comunitária de saúde na cidade de Oiapoque, onde começa o Brasil. Venho acompanhada da grande responsabilidade de representar todos os moradores daquela região, pois nossa cidade e nosso estado são esquecidos. Temos dificuldade com internet, com estradas, com telefone, com tudo, devido à distância. A gente deixa filho, marido, para estar aqui nessa luta por uma saúde pública de qualidade e igualdade de acesso. Não podemos nos esquecer que o SUS é uma conquista popular, ele é nosso. Também venho defender o piso dos agentes comunitários de saúde, pois ainda não recebemos em nosso município”.
 

Samud Del Amir Haibib, representante do segmento de usuários (RO)

“Como representes das religiões de matrizes africanas, busco valorização dos nossos povos. Devido a preconceito e racismo, os povos de terreiro são excluídos pela sociedade, inclusive em relação à saúde. Se nossas lutas nessa conferência se concretizarem vai ser algo muito bom não somente para a população negra, mas também para índios, quilombolas e todos aqueles que são excluídos por raça, por religião”.
 

Maria Rosa Silva de Almeida, representante do segmento de usuários (PA)

“Sou da população ribeirinha do município de Oriximiná, no Baixo Amazonas, e meu objetivo nessa conferência é ver o avanço das políticas para uma saúde de qualidade para todos. Nossa população sofre com a dificuldade de acesso à saúde. Precisamos de um SUS universal e de qualidade. Temos que nos atentar, também, para um grupo muito pequeno que quer privatizar um projeto, uma conquista do povo trabalhador brasileiro. Não queremos uma saúde privatizada, queremos um SUS público, com todo financiamento necessário”.
 

Crisanto Rudzo Tseremey’Wá, representante do segmento de usuários (MT)

“Nossa principal reivindicação é que nosso povo seja incluído em qualquer tipo de política pública como povos originários. Há uma diferença muito importante, pois os povos tradicionais vivem da mata, mas se aproximam muito dos costumes da sociedade como um todo. Nós não, nós temos a nossa própria língua, costura própria, um universo próprio. Nós temos um estilo de vida específico, precisamos de políticas de saúde que atendam essa peculiaridade”.

 

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