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A democracia no centro do debate

A luta pelo Estado de direito mobiliza o Congresso da Rede Unida, realizado pela primeira vez em Campo Grande (MS).

Ana Paula Evangelista, Flavia Lima e Katia Machado
 

A defesa da democracia brasileira, iluminada por cartazes que traziam as frases “Saúde é democracia”, “Saúde não é mercadoria” e “Educação é popular”, entre outras, e gritos de “não vai ter golpe” — em alusão ao processo de impeachment da Presidente da República Dilma Rousseff aceito, no fim do ano passado, e aprovado pela Câmara dos Deputados, no dia 17/4, encaminhando a decisão pelo afastamento para o Senado —, deu o tom às discussões em torno do 12º Congresso Internacional da Rede Unida, realizado de 21 a 24 de março, na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande (MS).  Sob o tema Diversidade sim, desigualdade não: pluralidade na intervenção da vida, o evento reuniu cerca de cinco pessoas e três mil trabalhos, em torno de 110 távolas, 187 rodas de conversa, 45 oficinas de trabalho, nove seminários nacionais e sete fóruns internacionais, além das tendas Saúde Fazendo Arte e Paulo Freire.

Com foco na pluralidade da construção dos processos críticos-reflexivos no agir, no ensinar, no aprender e no produzir a saúde, que emergem como necessidades elementares para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e da sociedade, o evento ficou marcado, ainda, pela apresentação da cantora amazonense de etnia indígena Djuena Tikuna. Ela cantou, na abertura, o hino nacional brasileiro em dialeto Tikuna, emocionando a plateia que lotou o auditório da UCDB, na noite do dia 21 de março.

Ainda na abertura, o secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Sgtes/MS), Hêider Aurélio Pinto, ressaltou a luta pela democracia e pelo Estado de direito, destacando três questões que considera essenciais no que diz respeito à atual situação de crise política pela qual o Brasil passa. A primeira é a defesa da saúde como direito de todos, idealizada pelo movimento sanitário na década de 1970 e que resultou na Constituição Federal de 1988 e na criação do SUS. A segunda questão é a defesa da diversidade. “Neste momento, temos ataques importantes a esta ideia, provocado por um mundo cibernético que aproxima as pessoas pelas identidades, mas que não tolera as diferenças”, criticou, atentando para a gravidade da escalada rápida da intolerância e do discurso de ódio no dia a dia. “Hoje temos mais de 22 órgãos depredados e invadidos, entre eles a sede da UNE (União Nacional dos Estudantes), diretórios e sindicatos. Por isso, é fundamental enfrentar essa escalada dos microfascistas, não podemos dar nenhum passo atrás no direito à diversidade”, orientou. Por fim, o secretário ressaltou a importância da coerência entre práticas e valores, meios e fins. “Críticas todos nós temos que fazer contra a corrupção. Mas há questões mais estruturais, como a reforma política.

Expressão do SUS

Da formação à regulação das profissões de nível médio para o SUS: avanços e desafios deu título à oficina de trabalho organizada pela Sgtes/MS, no dia 21 de março. Idealizada pelos alunos da Escola Técnica do SUS Profª Ena de Araújo Galvão (ETSUS-MS), que no dia 22 comemorou 30 anos de criação (ver nota sobre o aniversário na seção Aconteceu desta edição), o evento reuniu os representantes regionais da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), além de trabalhadores e alunos da escola sul-mato-grossense.  

Com foco no Plano Nacional de Saúde (2016 – 2019), o diretor do Departamento de Gestão da Educação na Saúde (Deges/Sgtes), Alexandre Medeiros, destacou os desafios que são, hoje, preponderantes para o setor saúde, entre eles a redução das desigualdades geográficas e de grupos sociais, o fortalecimento da Atenção Básica e das redes assistenciais regionalizadas, como estratégias de garantia de acesso e cuidado integral, o aumento do financiamento da saúde e a eficiência no gasto.

Ele lembrou, ainda, a expressividade que têm os profissionais de saúde de nível médio no Brasil. Segundo o diretor do Deges, esses profissionais são o maior contingente de trabalhadores do SUS e se caracterizam pela heterogeneidade das práticas de trabalho. “Temos que nos atentar para as mudanças do perfil socioeconômico do país, principalmente para entender quais são o objetivos desses trabalhadores. Muitos deles já migraram para o ensino superior”, exemplificou, destacando a importância de pensar uma formação mais próxima das necessidades de saúde da população.

Como perspectivas, ele apontou uma atuação mais integrada com o Ministério da Educação (MEC), com destaque para o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec), e o fortalecimento das instituições que compõem a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS) e as escolas de Saúde Pública. “Serão feitas oficinas com o apoio dos representantes regionais, para o levantamento de demandas, por exemplo, fortalecendo a integração e a colaboração regional”, anunciou.

O professor do Centro Formador de Recursos Humanos Caetano Munhoz da Rocha, no Paraná, e ex-coordenador de Ações Técnicas em Educação na Saúde, Aldiney Doreto, focalizou o tema da educação profissional nas escolas técnicas do SUS (ETSUS). Ele falou sobre as dificuldades que muitas escolas da RET-SUS têm em conciliar as políticas nacionais com as demandas regionais de formação. Doreto não deixou, porém, de citar os pontos fortes das ETSUS, com destaque para a certificação dos cursos de formação inicial, técnicos e pós-técnicos. Segundo o professor, das 40 escolas da Rede, 39 fazem a certificação das formações que ofertam. Além disso, frisou, “são as únicas escolas com autorização para realizar cursos descentralizados, mesmo onde não há unidades próprias”.

Em reunião com os representantes regionais da Rede, a atual coordenadora-geral de Ações Técnicas em Educação na Saúde (Deges/Sgtes/MS), Cláudia Brandão, apresentou proposta de incremento à formação técnica, que tem como foco o diagnóstico de demandas de formação técnica, a ampliação da oferta de cursos — apoiada no Pronatec —, e um maior protagonismo às ETSUS. Segundo Cláudia, estão previstas ações de elaboração de uma proposta de apoio institucional e pedagógico às escolas da Rede e de desenvolvimento de tecnologia da informação, como suporte à gestão acadêmica e ao uso da educação a distância (EaD). “O próximo passo é promover uma oficina com as ETSUS e realizar webconferências periódicas para discutir pautas relacionadas às ações de comunicação, entre outras”, anunciou.

Desafios da regulação

Angelo D´Agostini Junior, diretor do Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde (Degerts/Sgtes), apresentou os objetivos do departamento e lembrou o conceito de interação humana como insubstituível no trabalho em saúde. “Temos que pensar como será a inserção desse profissional no mercado de trabalho. Não é aceitável que o trabalhador se qualifique e não tenha reconhecimento”, orientou.

Junior reafirmou a importância de um espaço de regulação coordenado pelo estado e com a participação das instituições reguladoras, apresentando a proposta do Degerts de atuação do estado no processo de regulação das profissões em saúde no Brasil, sob o objetivo de estabelecer as diretrizes para regulação das profissões de saúde no Brasil, especialmente das novas profissões. O planejamento dessa ação envolve ações de curto, médio e longo prazo. A primeira fase, que termina em abril, propõe um mapeamento geral do que foi realizado pelo departamento, como a memória institucional, a identificação das profissões existentes, bem como dos pedidos para regulamentação das profissões, dos atores da sociedade civil que atuam na regulação e dos estudos sobre a temática. Esta primeira etapa incluiu, também, o recorte internacional e a elaboração de uma proposta de educação permanente no tema.

De acordo com Junior, de maio de 2016 a março de 2017, serão promovidas as ações de médio prazo, em uma etapa nacional, incluindo a publicação de uma revista sobre regulação profissional, a realização de uma oficina de trabalho, a criação de um banco de dados dos órgãos que atuam em regulação, a implementação do Projeto de Educação Permanente em Regulação, a inserção do tema na Mesa Nacional de Negociação do SUS e a criação de uma linha direta e permanente de comunicação com o Congresso Nacional. Desta fase, fazem parte as ações de participação na Conferência Internacional de Regulação do Trabalho, que acontece nos dias 21 e 22 de maio de 2016, e a elaboração do 2º Seminário Internacional em Regulação das Profissões de Saúde, em março de 2017.

Por fim, a longo prazo, destacam-se a apresentação e a implementação da Política Pública de Regulação de Profissões em Saúde no Brasil, o estabelecimento de  uma relação permanente com outros países sobre o tema e o fortalecimento do sistema de educação permanente em regulação das profissões em saúde.

Luzes sobre a formação técnica

A necessidade de ampliar o espaço da educação profissional técnica em saúde, observando o processo de transição epidemiológica, o envelhecimento da população, as iniquidades em saúde, a fragmentação do cuidado e as mudanças socioeconômicas, esteve no centro de outra mesa de debate. A távola A formação técnica e tecnológica em saúde: diferentes iniciativas e uma política, realizada no segundo dia do congresso, contou com a participação de Medeiros, que falou sobre a dificuldade em consolidar uma política clara, no que diz respeito à educação profissional técnica, e da diretora de Políticas de Educação Profissional e Tecnológica da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC), Nilva Schroeder.

O diretor do Departamento de Gestão da Educação na Saúde resgatou as questões que considera preponderantes para pensar a formação em saúde, entre elas o processo de transição epidemiológica, o envelhecimento da população, as iniquidades em saúde, a fragmentação do cuidado, as mudanças socioeconômicas e a necessidade de garantir qualidade e eficiência. “Observamos, por exemplo, que o câncer, as causas externas e as doenças do aparelho cardiovascular são responsáveis por 70% dos óbitos do país. No que tange ao envelhecimento, percebemos que, além do peso das doenças, é um desafio para o país pensar formas de garantir um envelhecimento saudável. E, mesmo envelhecendo de forma saudável, o idoso carece de uma abordagem diferente, e não estamos preparados para isso”, pontuou.

Para ele, o SUS tem pela frente muitos desafios, entre eles reduzir as desigualdades geográficas e de grupos sociais, fortalecer a atenção básica e as redes assistenciais regionalizadas como estratégia de garantia do acesso e do cuidado integral, reforçar a estruturação das respostas às urgências em saúde pública, aprimorar o pacto interfederativo para o fortalecimento do sistema, aumentar a capacidade de produção de insumos estratégicos em saúde, bem como a produção de inovações tecnológicas, além de aumentar o financiamento da saúde e a eficiência no gasto e qualificar a formação e fixação dos profissionais de saúde.

Os desafios da formação de profissionais de nível médio, acrescentou, são a ampliação do contingente de trabalhadores do SUS, a heterogeneidade do conjunto de práticas dos trabalhadores, a mudança do perfil socioeconômico na última década, a formação distanciada das necessidades em saúde da população e a rede de serviços cada vez mais complexa e diversa.

Agenda prioritária

 “O primeiro desafio é o fato de que precisamos construir no Brasil um valor social para a educação profissional e tecnológica”, resumiu Nilva. Ela comparou o Brasil à União Europeia. Enquanto nos países da Europa, cerca de 50% dos jovens já saem do ensino médio, escolhendo a educação profissional técnica, no Brasil, esse índice é de 8,4%. Ela citou o esforço que o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), criado em 2011 pelo MEC, tem feito para ampliar o espaço da formação profissional técnica. Entre 2011 e 2015, destacou, foram realizadas 9,2 milhões de matrículas, sendo 30% em cursos te?cnicos e 70% em cursos de qualificac?ão profissional de trabalhadores. “Esse esforço conta com a participação de todas as instituições de educação profissional e tecnológica do país”, reconheceu, ressaltando a Bolsa Formação como importante componente do programa, em face do repasse de recursos do governo federal para as instituições de ensino.

Nilva chamou atenção para o Plano Nacional de Educação (PNE), que tem como meta oferecer, até 2024, 25% das matrículas para a educação de jovens e adultos (EJA) nos ensinos fundamental e médio, de forma integrada à educação profissional. Outra meta importante do PNE é triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio até 2024, assegurando a qualidade de oferta e pelo menos 50% da expansão no segmento público. “É importante observar que, hoje, estão matriculados no ensino médio 8,3 milhões de estudantes, sendo 87% em escolas públicas. Atualmente, apenas 20% desses jovens, entre 18 e 24 anos, têm ido para o ensino superior. A meta do PNE e? de atender 33% ate? 2024”, citou.

Na avaliação de Nilva, se faz necessária uma agenda de fortalecimento da educac?a?o profissional e tecnolo?gica, com destaque para a articulação entre as políticas públicas e a definição de prioridades. “Não faz sentido discutirmos oferta, sem que se tenha como pano de fundo as demais políticas públicas. Outra questão é que temos que atender os públicos fazendo organização com priorização. A demanda é expressiva e temos que estabelecer prioridades”, defendeu, destacando os jovens do ensino médio, preferencialmente os que estão em escola pública, os trabalhadores que não concluíram os estudos e o público do sistema prisional.

Outra questão abordada por Nilva foi a necessidade de redimensionamento dos currículos e das práticas pedagógicas, com foco na ampliação e no fortalecimento dos processos de reconhecimento dos saberes e competências da Educação Profissional Técnica e Tecnológica. Ela informou que entre as prioridades da Setec e do Conselho Nacional de Educação (CNE) estão as diretrizes nacionais para a formac?a?o e a certificac?a?o de professores para a educac?a?o profissional e tecnolo?gica, as diretrizes curriculares nacionais para os cursos superiores de tecnologia, uma base tecnolo?gica nacional comum, os itinera?rios formativos, a certificação profissional, o marco regulato?rio da EPT a distância, os esta?gios e as pra?ticas profissionais.

Diretrizes curriculares

Os ensinos da enfermagem e da farmácia estiveram no centro da távola Diretrizes curriculares: avanços na integração, formação e trabalho para o SUS, realizada no dia 23 de março. A presidente da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Angela Maria Alvarez, reconheceu uma enorme desigualdade regional em relação ao número de profissionais e uma baixa procura pela área da enfermagem. Segundo ela, enquanto estados do interior têm, em média, 1,3 enfermeiros por mil habitantes, nos grandes centros, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, há 5,5 e 4,1 enfermeiros por mil habitantes, respectivamente. 

De acordo com a professora, o Brasil tem 1.804.535 profissionais de enfermagem, sendo 414.712 (23%) enfermeiros e 1.389.823 (77%) auxiliares e técnicos em enfermagem. “Observamos uma queda de interesse pelo curso de enfermagem. Hoje, a profissão é voltada para um grupo específico, que é o técnico em enfermagem, interessado em ascender na carreira”, esclareceu. Ela reafirmou a importância da área, revelando que 40 mil enfermeiros atuam na Estratégia Saúde da Família.

O diretor da Associação Brasileira de Educação Farmacêutica (Abef) e professor-assistente do Departamento de Farmácia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Paulo Sérgio Dourado Arrais, observou pontos críticos relacionados às diretrizes curriculares do curso de Farmácia, tais como falta de espaços interdisciplinares e pouca capacidade para se relacionar com os demais profissionais de saúde, deficiência da prática do cuidado — ainda que os cursos busquem espaços no SUS para aproximar os estudantes da vivência profissional —, desatualização da diretrizes curriculares — apesar da formação do farmacêutico, hoje em dia, compreender uma visão ampliada e não fragmentada dos campos de atuação —, carga horária do estágio incompatível com a rotina do serviço e ausência de cenários de práticas específicos. “Seria interessante que, nas diretrizes curriculares do SUS, pudéssemos costurar uma carga horária mínima para contextualizar as necessidades profissionais”, sugeriu.

O professor recomendou a realização de estágios desde o início do curso, a oferta de atividades complementares, por meio de estudos e práticas independentes — presenciais ou a distância —, a participação em programas de iniciação científica ou de extensão e a promoção de trabalhos de conclusão de curso.  “O foco tem que ser no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo de ensino”, orientou.

Sob o pensamento complexo

As teorias do filósofo e sociólogo francês Edgar Morin movimentaram a távola Trabalho, atenção básica em saúde e pensamento complexo: quais conexões?, realizada no dia 23 de março. Coordenada por Daniel Canavese, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a mesa provocou a reflexão sobre a trajetória hegemônica e contemporânea da ciência, como um percurso ideário de racionalidade, precisão, disjunção e hierarquização. A ideia foi defender o pensamento complexo como forma de conhecimento e, também, de crítica ao modelo de ciência simplificadora, sob a perspectiva de Morin. “As realidades são tradicionalmente reconhecidas como desintegradas e o pensamento simplificador acaba por ser incapaz de compreender a unidade e sua multiplicidade”, explicou Canavese, acrescentando que o desdobramento desse tipo de pensamento está presente nas unidades de saúde e nos territórios vivos, onde o conhecimento e a prática articulam questões culturais, ambientais, econômicas e políticas que esbarram no pensamento racional.

O médico e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), João Bosco Filho, explicou que, segundo Morin, é preciso reagrupar os saberes para buscar a compreensão do universo. O sociólogo buscou restituir um “conhecimento que se encontra adormecido”, reagrupando unidade e diversidade. “Ele (Morin) diz que, com o passar dos tempos, as teorias restringiram-se a estudos por área e a complexidade das questões do homem tem sido pouco compreendida”, destacou Bosco Filho. Ele integra o Grupo de Estudos da Complexidade (Grecom), ligado ao Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação e aos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e em Educação da UFRN, criado em 1992. “O nosso objetivo é construir novos caminhos e realidades sob outras óticas”, revelou.

Para iluminar o pensamento de Morin, João contou o caso de uma idosa de 102 anos, moradora do interior de Alagoas, que abriu uma ferida em seu corpo após uma queda. A equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) que a atendeu informou que a lesão não cicatrizaria e que a usuária teria que conviver com as dores. Porém, as crenças populares motivaram a idosa a tomar o mastruz, uma erva medicinal bastante conhecida na região. “Não há comprovação científica sobre os efeitos da planta, mas a pele cicatrizou após algumas semanas e a equipe ficou sem explicação para o caso”, lembrou, reconhecendo que a ESF ainda segue práticas fragmentadas e não consegue reconhecer o território como espaço vivo. “O método complexo propõe tratar da diversidade, distingue sem separar e religa sem fundir”, explicou.

Sob a mesma visão, o professor Claudio Signorelli, da Universidade Federal do Paraná defendeu o uso do pensamento complexo para a promoção de mudanças expressivas no mundo do trabalho em saúde. Ele contou que o conceito trazido por Morin foi usado no currículo do curso de Fisioterapia da universidade. “Tentamos implantar esse conceito nas turmas no Paraná, pois não basta ser profissional da saúde ou da educação, é preciso que tenhamos amor e que vivenciemos isso”, justificou. O currículo baseado no pensamento complexo, explicou, busca um resgate das emoções na formação, incluindo interações culturais e humanas e módulos interdisciplinares, a partir de vivências na comunidade.

Signorelli defendeu, também, a mesma prática para lidar com as questões de gênero. Com base na teoria Queer — consolidada por volta dos anos 90, com a publicação do livro Problemas de Gênero (do inglês, Gender Troube), de Judith Butler —, ele explicou que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o resultado de uma construção social e que, portanto, não existem papéis sexuais essenciais ou biologicamente inscritos na natureza humana, mas formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. “Ou seja, ninguém precisa escolher entre ser homem e mulher. Não precisamos viver no dualismo”, disse, com críticas ao atendimento preconceituoso que ainda se observa a pacientes gays. Ele criticou o fato de pessoas que se afirmam homossexual serem impedidas de doar sangue. “Isso é extremamente humilhante e fruto de um pensamento unilateral”, concluiu.

Conflitos e contradições

Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina e integrante do Núcleo de Pesquisa em Bioética e Saúde Coletiva, Fernando Helmann abordou os conflitos de valores existentes no universo dos trabalhadores e usuários do SUS. Com base no estudo Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família, de Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, ele afirmou que a implementação do SUS, por representar um processo de mudança na prática da atenção à saúde, exige dos profissionais, gestores e usuários transformações culturais e de atitudes e implica uma reviravolta ética. Assim, para fazer frente ao desafio da sua concretização, faz-se necessário lidar com as questões de ordem ética vivenciadas nos serviços de saúde, especialmente na atenção básica, preterida pelas reflexões da bioética.

Helmann apresentou conflitos que poderiam ser superados com a bioética aplicada a partir de um pensamento complexo, onde não existiriam tantas restrições e preconceitos quanto à prática do aborto e da eutanásia, por exemplo. “A bioética é uma ética aplicada, chamada também de ‘ética prática’, que visa dar conta dos conflitos e controvérsias morais implicados pelas práticas no âmbito das Ciências da Vida e da Saúde, do ponto de vista de algum sistema de valores. Mas, sem uma visão ampla, que considere vários fatores, ela não sai do papel”, orientou.

Ele citou alguns problemas éticos na relação entre profissionais, usuário e família, como a dificuldade de estabelecer limites da relação profissional, pré-julgamento dos pacientes, discussão da condição clínica na frente do usuário, dificuldade de manter a privacidade nos atendimentos domiciliares e não solicitação do consentimento da família para relatar sua história em publicação científica. Outra questão, que também diz respeito à bioética,em sua observação, é a contradição de valores em relação ao financiamento do SUS, que defende o acesso universal e igualitário, mas financia o setor privado e oferece aos funcionários públicos planos de saúde.

Educação popular em foco

O último dia de congresso sobressaiu-se com a roda de conversa A contribuição da educação popular na formação em saúde: a experiência do Curso de Qualificação em Educação Popular em Saúde (EdPopSUS), encerrando as atividades na Tenda Paulo Freire. “A educação popular se propõe a fazer uma leitura crítica da realidade, para buscar os caminhos da formação. Assim é o EdPopSus”, explicou Vera Joana Bornstein, coordenadora do curso e professora-pesquisadora do Laboratório de Educação Profissional em Atenção à Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Laborat/EPSJV), onde o projeto está sediado, a partir de convênio com a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (Segep/MS).

Com base na Política Nacional de Educação Popular em Saúde — instituída pelo Ministério da Saúde em 2013, o curso EdPopSUS, explicou Vera, está fundamentado no diálogo, na participação, na produção compartilhada e na amorosidade, propondo metodologias e tecnologias para o fortalecimento do SUS e práticas voltadas para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde. “O que nós queremos é que, por meio da educação popular, possamos promover um modelo de atenção à saúde que leve em conta a realidade dessa população”, frisou.

Ela revelou que a formação, em sua segunda etapa, deverá iniciar no segundo semestre deste ano, com uma oferta de sete mil vagas — 70% delas para os agentes comunitários de saúde (ACS) e de vigilância em saúde (AVS) e 30% restantes para outros profissionais e lideranças comunitárias. Com carga horária de 160 horas presenciais, o curso será realizado nos estados do Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. “O objetivo do curso é contribuir com a atuação dos profissionais das equipes de Atenção Básica à Saúde”, frisou a coordenadora.

A formação está organizada em seis eixos temáticos: Construção da gestão participativa do curso e a experiência como fio condutor do processo educativo; Educação popular em saúde e o processo de trabalho na atenção básica; Direito à saúde e promoção da equidade; Território, lugar de história e memória; Estado, participação social e participação popular; e Território, processo de saúde-doença-cuidado. Em cada turma, contou Vera, terão dois educadores, sendo que um com graduação e o outro educador popular com experiência na área. “Não teremos mais o orientador de aprendizagem, como havia na primeira etapa, mas continuamos com os apoiadores nacionais, que irão acompanhar em alguns estados o desenvolvimento do projeto”, sublinhou.

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Observatório de Caminhos do Cuidado no encontro da Rede Unida

A segunda oficina de avaliação do Projeto Caminhos do Cuidado, realizada no dia 22 de março como parte da programação do 12º Congresso Internacional da Rede Unida, teve como foco o lançamento do seu Observatório, reunindo o Ministério da Saúde e as escolas técnicas do SUS (ETSUS) que integram a RET-SUS. A iniciativa, coordenada pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por meio de convênio com o Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Deges/Sgtes/MS), reúne tecnologias e metodologias para aproximar as áreas de atenção básica e saúde mental, visando à melhoria da atenção ao usuário e seus familiares no SUS. “O Observatório partiu da ideia de cooperação entre as escolas e da necessidade de preservar a vivência e metodologia do trabalho”, explicou Maria Cristina Guimarães, do Icict.

O projeto – que formou 292.196 agentes comunitários de saúde e auxiliares e técnicos em enfermagem na área da saúde mental, com foco em álcool, crack e outras drogas, em julho de 2015, superando a meta inicial de 290.197 – dá início a uma nova etapa. Pensado a partir de seis dimensões, o projeto tem o compromisso de desenvolver e apoiar estudos e pesquisas sobre a formação de atores estratégicos do SUS, especialmente a formação técnica, orientar as ações de educação permanente em saúde e as políticas públicas, fornecer subsídios para a elaboração de estratégias de articulação dos diferentes atores nos territórios, amparar a produção de cursos de Educação a Distância (EaD), a partir do Ambiente Virtual de Aprendizagem do SUS (AVA-SUS), estimular a produção técnico-cientÍfica das ETSUS e disponibilizar publicações relevantes sobre temas de saúde pública.

Alcances do trabalho

Indicadores é o nome dado à primeira dimensão do Observatório Caminhos do Cuidado, por meio da qual o visitante poderá explorar a base de dados da formação propriamente dita. Com a ferramenta Business Intelligence, o usuário tem acesso a informações originadas a partir de um conteúdo completo, organizado e privilegiado. “Os dados dessa ferramenta poderão ser refinados de diversas maneiras. As informações serão importantíssimas para auxiliar nas pesquisas e na construção de conhecimento”, anunciou Ruy Casale, da coordenação executiva e de infraestrutura e logística.

A segunda dimensão é o repositório. Trata-se de um espaço virtual que tem por objetivo reunir a produção intelectual relacionada à temática da saúde mental. O repositório expressa o compromisso com a ampliação do acesso ao conjunto de documentos (artigos, relatórios, textos básicos, dentre outros) sobre suicídio, álcool e outras drogas, bullying e Política Nacional de Saúde Mental. A equipe do repositório é composta por profissionais do Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Licts), com o apoio do Centro de Tecnologia de Informação e Comunicação (Cict), ambos do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz).

A terceira dimensão é a EaD. Neste caso, as aulas estarão disponíveis em uma plataforma virtual e o aluno administrará seu tempo da melhor maneira para estudar, com autonomia para assisti-las de acordo com seu interesse e disponibilidade. “A metodologia da EaD é fundamentada na autoaprendizagem, com mediação de recursos didáticos organizados, apresentados em diferentes suportes de informação”, explicou Pilar Belmonte, psicóloga do Laboratório de Educação Profissional em Atenção à Saúde (Laborat), da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

A outra dimensão é o canal Falas do Caminho, que visa apresentar a memória do projeto Caminhos do Cuidado, por meio de materiais audiovisuais produzidos durante nove meses de trabalho. A Editoria de Produção e Pesquisa (EPP) é a quinta dimensão do Observatório, cuja meta é apoiar os processos de produção textual e editorial dos parceiros, além de desenvolver estratégias de indução à pesquisa. A EPP contará com um conselho editorial composto pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Sgtes/MS), Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), Grupo Hospitalar Conceição (GHC), que esteve a frente da coordenação do processo formativo junto com o Icict, e representantes regionais das ETSUS. A linha editorial deverá privilegiar, inicialmente, a temática relacionada ao Caminhos do Cuidado, estimulando a análise, a reflexão e os desdobramentos da formação, com forte indução para uso dos dados e conteúdos produzidos ao longo do processo.

Avaliação em processo

A sexta dimensão do Observatório refere-se ao apoio à pesquisa de avaliação do Caminhos do Cuidado, denominada AvaliaCaminhos. Ao interpretar todas as medidas adotadas na formação em saúde mental, este projeto pretende identificar que procedimentos e instrumentos têm o potencial para tornar-se política pública ou estratégia político-educativa da RET-SUS, de instituições de ensino e pesquisa e de gestores de saúde. O processo conta, para isso, com um programa de avaliação institucional educativa, que captará as pistas que indiquem conquistas, desafios, recuos e avanços no processo formativo e de articulação interinstitucional do projeto Caminhos do Cuidado. A coordenação do AvaliaCaminhos está a cargo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por meio do Núcleo de Educação, Avaliação e Produção Pedagógica em Saúde (EducaSaúde). A pesquisa contemplará as dimensões política, gerencial, de itinerários formativos e de cenários do cuidado.

Uma fase piloto do projeto está em execução, com o objetivo de ajustar a matriz avaliativa e elaborar diferentes estratégias e instrumentos para a coleta de dados. Trata-se de setes entrevistas, realizadas durante o evento da Rede Unida, com agentes que participaram do projeto em Campo Grande — a RET-SUS acompanhou a gravação do vídeo. Entre as principais queixas apresentadas pelos agentes está a falta da formação técnica completa. Outro ponto compartilhado pelo grupo é o desejo que o curso tenha continuidade. “O projeto é uma porta para que nós possamos trabalhar com esse público da melhor maneira e gostaria que tivesse continuidade, pois existem pessoas que estão entrando e não tiveram acesso a essa formação”, indica o agente comunitário de saúde Vagner Calimam. Ele sugeriu uma segunda etapa do curso que seja mais específico ao agente indígena de saúde.

Para a agente Suelem Bonifácio, o fator mais relevante da formação foi a quebra de paradigmas e preconceitos. “Eu tinha uma visão que o usuário de drogas entrava nisso porque queria”, revelou. Ela lamentou que a equipe da Estratégia Saúde da Família na qual trabalha não tenha entendido a formação e nem  auxiliado a profissional em sua prática. “Gostaríamos que todos da equipe tivessem o mesmo conceito que temos agora. Nós aprendemos que podemos juntar a comunidade, envolver as mães e as famílias. Mas, sem a ajuda da enfermeira e da psicóloga para convencer os usuários a buscarem tratamento, isso não vai ter sucesso”, observou.

 

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