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A magnitude do problema dos agrotóxicos no Brasil

Maior consumidor mundial de agrotóxicos, o Brasil está diante de um grave problema de saúde pública.

Flavia Lima
 

Morador da comunidade de Cidade Alta, em Limoeiro do Norte, a 200 quilômetros de Fortaleza (CE), VMS faleceu aos 31 anos, por complicações decorrentes à intoxicação por agrotóxicos. Ele foi contratado, em abril de 2005, pela multinacional produtora de frutas Del Monte Fresh Produce Brasil Ltda, como trabalhador agrícola. Seis meses depois, foi lotado no almoxarifado químico, como auxiliar no preparo da solução de agrotóxicos — utilizada para borrifar lavouras de abacaxi —, em contato direto com os agroquímicos nas formas líquida, gasosa e em pó e transitando pelo setor de mistura, onde a contaminação do ar era maior. Apesar da jornada de trabalho diária de oito horas, de segunda a sábado, sempre no período noturno, ele costumava cumprir duas horas extras, totalizando dez horas de trabalho por dia e 60 horas semanais. Mesmo usando com regularidade os equipamentos de proteção individual (EPI), em julho de 2008, VMS passou a sentir fortes dores de cabeça e a ter febre, falta de apetite, olhos amarelados e inchaço no abdômen. No mês seguinte, com o agravamento do quadro, foi afastado do serviço, morrendo em novembro do mesmo ano.

O caso — destacado pela pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz) e coordenadora do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), Rosany Bochner, no artigo Óbito ocupacional por exposição a agrotóxicos utilizado como evento sentinela: quando pouco significa muito — ilustra tristemente a realidade brasileira. O país é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, ultrapassando a marca de um milhão de toneladas em 2009 — o equivalente a um consumo médio de 5,2 kg de veneno por cada habitante —, segundo o relatório Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida, publicado em 2011 pela Articulação Nacional de Agroecologia e pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Segundo o documento, a venda de agrotóxicos no país é bastante lucrativa: saltou de US$ 2 bilhões para mais de US$7 bilhões, entre 2001 e 2008, alcançando valores recordes de US$ 8,5 bilhões, em 2011.

Os dados são confirmados pelo Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. O documento, lançado em 2012 pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), lembra que o Brasil ocupa o lugar de maior consumidor de agrotóxicos do mundo desde 2008. Com base nos dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Observatório da Indústria dos Agrotóxicos da Universidade Federal do Paraná, divulgados durante o 2º Seminário sobre Mercado de Agrotóxicos e Regulação, em abril de 2012, o documento revela que, nos últimos dez anos , enquanto o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%, o mercado brasileiro cresceu 190%. “Em 2008, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos e assumiu o posto de maior mercado mundial de agrotóxicos”, escrevem os autores do capítulo Segurança alimentar e nutricional e saúde que compõe o Dossiê, reeditado recentemente no formato livro, com uma atualização sobre os debates em torno do tema em 2014.

Os impactos na saúde pública são amplos, segundo a publicação, atingindo vastos territórios e envolvendo diferentes grupos populacionais, como trabalhadores em diversos ramos de atividades, moradores do entorno de fábricas e fazendas, além de todos os consumidores de alimentos contaminados. “Tais impactos estão associados ao nosso atual modelo de desenvolvimento, voltado prioritariamente para a produção de bens primários para exportação”, escrevem os ex-presidentes da Abrasco, Luiz Augusto Facchini (2009-2012) e Luis Eugenio de Souza (2012-2015).

Trabalhadores vulneráveis

Aparato principal dos agronegócios, os agrotóxicos são responsáveis por um expressivo número de intoxicações e de óbitos no país, atesta Rosany. Em sua pesquisa, ela identificou, entre 2007 e 2011, 26.385 casos de intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola, 13.922 por agrotóxicos de uso doméstico, 5.216 por produtos veterinários e 15.191 por raticidas. Os agrotóxicos, alerta a estudiosa, são responsáveis por 11,8% das intoxicações, perdendo apenas para os medicamentos (28,3%) e os animais peçonhentos (23,7%). “O uso de agrotóxicos no Brasil é feito de forma indiscriminada, massiva, sem os devidos cuidados e a vigilância que esse tipo de produto exige. Trata-se de um verdadeiro veneno”, adverte.

O registro de intoxicações provocadas pelos defensivos agrícolas realizado pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan/MS) constata igualmente a gravidade do problema. Segundo o sistema, foram registrados 16.554 casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola, 4.800 por agrotóxicos de uso doméstico, 862 por agrotóxicos de saúde pública, 19.285 por raticidas e 3.367 por produtos veterinários — ou seja, o conjunto dos agrotóxicos foi responsável por 15,6% das intoxicações, atrás apenas dos medicamentos (37,6%).

Rosany chama atenção, também, para o problema da notificação irregular dos óbitos provocados pela exposição aos defensivos agrícolas. Segundo a pesquisadora, com base no Sinitox, os agrotóxicos de uso agrícola responderam por 863 (39,4%) dos casos de óbitos, os de uso doméstico por 29 (1,3%), os produtos veterinários por 22 (1,0%) e os raticidas por 138 (6,3%), totalizando 48% dos óbitos registrados. Do total (1.052), apenas 14 (1,3%) foram identificados como ocupacionais.

 O Sinan apresenta números próximos, registrando 839 (24,3%) casos de óbitos por agrotóxicos de uso agrícola, 661 (19,1%) por raticidas, 76 (2,2%) por agrotóxicos de uso doméstico, 75 (2,2%) por produtos veterinários e 2 casos (0,1%) por agrotóxicos de saúde pública, totalizando 47,9% dos óbitos registrados no sistema do Ministério da Saúde. Do total (1.653), apenas 66 (4%) estavam relacionados à exposição no trabalho. “Embora os óbitos de origem ocupacional representem uma pequena proporção, cada uma destas fatalidades carrega muita informação, uma vez que cada óbito implica vários trabalhadores convivendo nas mesmas condições, exercendo a mesma função ou algo similar, estando expostos aos mesmos fatores de risco”, alerta.

De acordo com a pesquisadora, os agricultores são os mais atingidos pela exposição aos venenos agrícolas, seja por meio da manipulação direta, do armazenamento inadequado, do reaproveitamento de embalagens, das roupas contaminadas ou da contaminação da água. Ela não descarta, porém, os riscos que correm também os trabalhadores de saúde pública, das firmas desinsetizadoras, de transporte e comércio e das indústrias de formulação de agroquímicos. Ela toma como base os 33 óbitos que analisou para produção de seu artigo, registrados pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, entre os anos de 2008 e 2012, considerando o perfil socioeconômico, o ano de óbito, o estado e o local do acidente, além de causas associadas aos óbitos decorrentes das intoxicações.

No SIM, segundo a pesquisadora, a causa de morte do trabalhador identificado pelas letras VMS — citado no início desta matéria — foi registrada como insuficiência hepática aguda e subaguda e como causas relacionadas insuficiência renal aguda não especificada e hematêmese. “Chama a atenção o fato de que entre as causas apresentadas, os agrotóxicos não foram sequer mencionados, implicando fragilidade do sistema para subsidiar as análises sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde humana”, observa. Para Rosany, VMS foi mais uma vítima do agronegócio, “que morre sem deixar vestígios da relação causal entre a exposição aos agrotóxicos e o agravo à saúde”.

Felizmente, segundo a pesquisadora, após uma batalha judicial de cinco anos, a justiça do trabalho reconheceu que a morte do trabalhador foi motivada pelo ambiente. “Pode-se considerar o óbito de VMS como um evento sentinela, uma vez que este foi devidamente avaliado e julgado como decorrente de uma exposição a agrotóxicos”, comemora, ponderando, no entanto, que o posto de trabalho do funcionário foi ocupado por outra pessoa, exposta às mesmas condições que levaram VMS a óbito em pouco mais de três anos. “Outros trabalhadores dessa mesma empresa devem estar também expostos aos efeitos nocivos dos agrotóxicos”, adverte no artigo.

Rosany informa que dos casos estudados, apenas 13 estados — Paraná (9), Santa Catarina (4), Mato Grosso do Sul (4), Minas Gerais (3), Rio Grande do Sul (3), Bahia (2), Goiás (2), Espírito Santo (1), Maranhão (1), Mato Grosso (1), Pernambuco (1), Piauí (1) e Tocantins (1) — apresentaram registros de óbitos relacionados à exposição a agrotóxicos no trabalho. Ela percebeu entre os casos revelados o predomínio do sexo masculino (91%), idades entre 40 e 59 anos (55%), raça/cor branca (58%), baixa escolaridade com menos de três anos de instrução (45%), solteiros (39%) e casados (33%).

Saídas urgentes

A coordenadora do Sinitox é pessimista em relação aos impactos que o uso dos agrotóxicos pode causar à população. “Somos a lixeira do mundo”, desabafa, observando que a saúde da população está sendo colocada em risco em favor dos interesses econômicos. Ela defende o cultivo de alimentos orgânicos, sem o uso de agroquímicos, e o fortalecimento das ações de vigilância ambiental. “Não podemos esquecer que a contaminação por agrotóxicos está por toda parte, na água, no solo, no ar e nos alimentos que vão para a mesa de todos”, alerta, lebrando o Dossiê Abrasco ao informar que 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos — desses, 28% contêm substâncias não autorizadas.

Na mesma direção, a pesquisadora do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), toxicologista Karen Friedrich, classifica como preocupante a situação em que o país vive. “O Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, onde 80% do volume utilizado destinam-se às culturas de soja, milho, cana e algodão, importantes commodities agrícolas. Além disso, a contaminação tem amplo espectro, pelo ar, solo e corpos hídricos, que impactam de forma negativa os ecossistemas, incluindo os seres humanos”, destaca.

Karen lembra que os impactos do uso de agrotóxicos na saúde da população podem ser imediatos e os efeitos provocados pelo veneno agrícola são agudos e crônicos e podem aparecer depois de muito tempo em que a pessoa (ou o ambiente) teve contato com o produto. Segundo a pesquisadora, os efeitos agudos incluem dor de cabeça, irritação dérmica, vômitos e convulsões. 

Ela cita como exemplo o caso da Escola Rural de São José do Pontal, localizada em um assentamento na cidade de Rio Verde (GO), a 50 metros de uma plantação de milho e soja, que foi atingida, em maio de 2013, por uma pulverização irregular feita pela empresa Aerotex Aviação Agrícola. Na época, o avião despejou uma quantidade do inseticida Engeo Pleno, da multinacional Syngenta, atingindo 45 crianças e dois professores na hora do recreio. “Crianças, idosos, gestantes e doentes são os grupos mais vulneráveis aos problemas de saúde provocados pelos agrotóxicos. Mas em situação de vulnerabilidade todos estamos, seja no campo ou na cidade”, alerta Karen, lembrando que a falta de saneamento básico e de fornecimento de água regular, por exemplo, aumentam a incidência de vetores e, consequentemente, leva a uma medida equivocada do ponto de vista da segurança sanitária, que é a utilização massiva de inseticidas. “É importante atentarmos que atualmente tramitam projetos de lei que autorizam a pulverização aérea para controle de vetores. A proposta veio do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola”, adverte.

Há soluções para o problema, pondera a estudiosa. Em defesa à saúde das populações, Karen defende a proibição de produtos que já foram banidos por outros países, além de maior investimento em ações de fiscalização, monitoramento laboratorial de água e alimentos e ampliação da formação e da assistência técnica rural com foco nos modos de produção sem o uso de agroquímicos.

Quanto à exclusão de agroquímicos, Rosany informa que, em dezembro de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) baniu o ingrediente ativo Parationa Metílica, substância associada a problemas de saúde como câncer e desregulação endócrina e a alterações nos genes (mutagênico) e no cérebro (neurotóxico). Segundo nota da agência, a decisão foi baseada nos resultados da consulta pública e nas evidências científicas que “demonstram a extrema toxicidade deste ingrediente ativo”.

Rosany alerta, porém, que o registro de agrotóxicos no Brasil não tem prazo de validade, ao contrário do que ocorre na União Europeia (10 anos) e em países como Estados Unidos (15 anos), Japão (3 anos) e Uruguai (4 anos). A pesquisadora revela que o banimento só foi possível graças à Resolução RDC 10/2008 (que dispõe sobre o Regulamento Técnico para procedimento de liberação de lotes de vacinas e soros hiperimunes heterólogos para consumo no Brasil e também para exportação), estabelecendo um processo de reavaliação de 14 substâncias já proibidas em outros países — dos 45 países pesquisados, a Parationa não pode ser comercializada em 34 e nos demais é utilizada com severas restrições.

Segundo a pesquisadora, a reavaliação, iniciada em 2008, está longe de acabar. “Este é o oitavo produto cuja análise é concluída e o sexto a ser banido (os outros cinco são Cihexatina, Endossulfam, Forato, Metamidofós e Triclorfom). Os dois restantes (Acefato e Fosmete) foram mantidos no mercado, mas com restrições de uso. Atualmente, uma substância (Carbofurano) está em consulta pública e outras cinco (Lactofem, Abamectina, Tiram, Paraquate e Glifosato, sendo o último o mais usado no Brasil), com o processo em andamento”, enumera.

Alimentos contaminados

Pesquisador no Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), André Campos Búrigo revela que o consumo de agrotóxicos no Brasil, nos últimos 13 anos, está associado não somente à expansão de áreas plantadas, mas também ao uso intensivo de substâncias químicas no cultivo de cana de açúcar, algodão, soja e milho. “A ideia do monocultivo é o que está por trás dessa expansão. Dessas quatro commodities agrícolas, nenhuma delas tem como principal destino a alimentação humana”, esclarece, revelando que o fim principal da cana de açúcar são os combustíveis, do algodão é o vestuário e da soja e do milho é a alimentação animal. Ainda segundo Búrigo, o algodão, o milho e a soja são as culturas para quem mais se têm sido liberadas as variedades transgênicas no Brasil. “Essas plantas foram modificadas para resistir ao uso do agrotóxico. No início, o agronegócio disse que iria diminuir. Mas, na prática, se comprovou que estamos falando de uma estratégia de venda combinada de duas mercadorias, com grandes multinacionais, que controlam o mercado de venenos agrícolas e sementes transgênicas no mundo”, denuncia.

O pesquisador critica o fato de não existir ações que diminuam o uso das substâncias. “As indústrias estão cada vez mais ‘oligopolizando’ o mercado mundial, fazendo fusões e movimentando recursos acima dos PIBs (Produto Interno Bruto) de muitos países. E isso tem grandes impactos sobre os rumos da questão agrária brasileira”, observa. Para ele, as políticas públicas induzem o uso de agrotóxicos no Brasil no momento em que aprovam sementes transgênicas e compra de insumos químicos e promovem um desmonte das estruturas de regulação do processo de agrotóxicos no país.

Para ilustrar o cenário, o pesquisador do Lavsa cita uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), no município de Lucas do Rio Verde (MT). O estudo detectou a presença de agrotóxicos no leite materno de 62 mulheres que moram na cidade, que tem 45 mil habitantes. O município é o segundo maior produtor de grãos do estado. “O resultado revelou dados que expõem a população a 114,37 litros de agrotóxicos por habitante”, conta. Segundo Búrigo, foram coletadas amostras de água, urina e sangue da população, de leite materno, do ar e da chuva, além de anfíbios daquela região, comparando com a má formação nos animais. “Os dados são alarmantes e tiveram resultados positivos para todas as coletas. Lucas do Rio Verde é uma região onde você respira agrotóxico, chove agrotóxico, os bebês se alimentam de agrotóxicos”, sentencia.

Ele cita os números do Programa de Análise dos Resíduos de Agrotóxicos nos Alimentos (Para), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), cujo objetivo é avaliar continuamente os níveis de resíduos de agrotóxicos nos alimentos. Segundo Búrigo, dos 200 alimentos pesquisados pelo Para, apenas 30% não tinham resíduos de agrotóxicos, entre os 529 ingredientes ativos para uso agrícola autorizados pela Anvisa. “Ou seja, 70% dos alimentos estão contaminados, e muitos deles com vários ingredientes ativos”, registra.

Na avaliação do pesquisador, falta ação mais rigorosa em relação ao grande número de denúncias de impacto dos agrotóxicos, inclusive por parte do Ministério da Saúde. “Ou o sistema de saúde público reage e enfrenta com rigor o problema, garantindo o acesso à saúde, conforme preconiza a Lei 8.080/90 (que instituiu o SUS), ou vai contribuir, mesmo que indiretamente, para a violência do agronegócio”, alerta.

Búrigo cita com críticas o projeto MaToPiBa (expressão que resulta de um acrônimo criado com as iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), caracterizado pela expansão de uma fronteira agrícola que recobre parcialmente os quatro estados. Considerado a nova fronteira agrícola do agronegócio, o projeto inclui mais de 70 milhões de hectares de terra, destinados pelo Governo Federal, para que o agronegócio explore as terras com as quatro principais commodities agrícolas (cana de açúcar, algodão, soja e milho). “A expansão territorial sufocará as experiências de agricultura camponesa nesses territórios, que passarão a receber muito veneno nos próximos anos”, critica.

Soluções possíveis

O pesquisador da EPSJV aponta como solução para o problema o uso de uma agricultura sem veneno e defende o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), finalizado no fim do ano passado, após intenso trabalho articulado entre sociedade civil e governo, como parte da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica — “porém, engavetado pelo governo federal”. Estruturado em torno de seis eixos temáticos, que vão de registro e controle da cadeia produtiva à formação e capacitação, o programa detalha 137 ações concretas que visam frear o uso de agrotóxicos no Brasil. Apesar de ainda estar longe de dar um fim à tragédia dos agrotóxicos em nosso país, como observa o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST), em seu site, o Pronara foi considerado um avanço, pois é o primeiro instrumento que obriga legalmente nove ministérios a tomarem ações concretas contra os agrotóxicos.

Segundo o manifesto, assinado por cerca de 150 organizações de todo o país, incluindo o MST e a Abrasco, pedindo que o governo implementasse o mais rápido possível o Pronara, reduzir os agrotóxicos no Brasil significaria a possibilidade de nosso país deixar de ser um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo e reduzir os 34.147 casos de intoxicação, registrados entre 2007 e 2014, bem como o percentual de 64% de contaminação de alimentos, detectado em 2013. “Reduziria também os 7,3 litros de agrotóxicos que o país utilizou para cada habitante em 2014”, escreveu o documento, divulgado em novembro de 2015. Para os signatários do manifesto, não lançar o Pronara significa impor enormes barreiras ao desenvolvimento da agroecologia no Brasil.

Búrigo apoia o banimento de ingredientes ativos do país, como o glifosato (herbicida), o fim da pulverização aérea, a retirada da isenção fiscal sobre os agrotóxicos e o uso de recursos em políticas públicas que tenham como foco a agroecologia. “É preciso fortalecer a agricultura familiar e camponesa no país. O uso e o incentivo do agrotóxico só leva à concentração de poder e de renda no nosso país”, opina.

Vice-diretor de Escola de Governo em Saúde da Ensp/Fiocruz, o biólogo Frederico Peres destaca que o uso de agrotóxicos no Brasil é um problema complexo que requer soluções igualmente complexas, em diferentes níveis. “Grande parte da riqueza que o país produz vem do campo, em particular da produção das grandes monoculturas destinadas à exportação. Esse segue sendo o principal determinante do uso extensivo e intensivo de agrotóxicos no país, colocando milhares de trabalhadores e não trabalhadores em situação de risco, todos os dias, no campo e nas cidades”, reafirma, ressaltando que enquanto diversos movimentos sociais e pesquisadores focalizam suas ações e militância no banimento dos agentes químicos, milhões de trabalhadores brasileiros seguem utilizando esses produtos diariamente, muitas vezes em condições bastante precárias, com pouco ou nenhuma orientação.

Na avaliação de Peres, a mudança deve começar pela matriz econômica nacional — fortemente dependente da exportação de commodities agrícolas —, passando pela substituição por modelos mais sustentáveis de produção agrícola, oferta de treinamentos e programas de formação para a população do campo. “Isso implicará a possibilidade de o trabalhador rural ter autonomia e condições para fazer escolhas de processos produtivos mais saudáveis, do ponto de vista da saúde, e mais sustentáveis, do ponto de vista ambiental”, defende.

Peres ressalta, ainda, a necessidade de se garantir condições de trabalho e qualidade de vida às pessoas que têm contato com os agrotóxicos. “Ao mesmo tempo em que lutamos e reivindicamos a transição do modelo químico-dependente de produção agrícola para modelos mais sustentáveis e saudáveis, é preciso salvaguardar condições dignas de trabalho e qualidade de vida para a imensa população do campo que, cotidianamente, está exposta aos agrotóxicos e outros agentes químicos”, ressalva, sugerindo a ampliação da vigilância da saúde de grupos populacionais expostos a agrotóxicos e a oferta de programas de formação e treinamento para a população do campo.

Ele observa que os habitantes de áreas rurais, especialmente os trabalhadores da agricultura familiar, são os mais vulneráveis. “O que aumenta o perigo não é o nível de toxicidade das substâncias, mas a proximidade do contato. As grandes lavouras são altamente mecanizadas, com pulverização feita por tratores ou aviões. Já, nas pequenas propriedades, é comum que o próprio agricultor dilua, manipule e aplique o agrotóxico, acompanhado dos filhos ou da mulher”, explica.

A serviço da saúde

Preocupado com os riscos de saúde aos quais estão submetidos os pequenos agricultores, especialmente as mulheres, a partir de observações feitas por meio de pesquisas no meio rural que iniciou em 1996, o pesquisador criou a fotonovela Menina Veneno, com a ajuda de seu grupo de pesquisa e de moradores de duas comunidades agrícolas do município de Nova Friburgo (RJ). “Percebi ao longo desses anos que as mulheres — sobretudo aquelas que trabalham sob a lógica da agricultura familiar — desconheciam os riscos a que estavam expostas. Isso porque, na grande maioria dos locais visitados, eram os homens que controlavam a condução do processo produtivo, cabendo quase que unicamente a eles as escolhas sobre os métodos de controle de pragas e outras ações para as quais o uso de agentes químicos era priorizado”, conta.

A fotonovela, segundo o idealizador, baseada nos princípios do Teatro do Oprimido — um método que reúne exercícios, jogos e técnicas teatrais elaboradas pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal — foi produzida a partir de esquetes teatrais feitas com grupos de mulheres da região de Nova Friburgo. Os esquetes foram roteirizados, resultando em um conjunto de fotos que conta a história de uma mulher que desconhecia os riscos que os agrotóxicos implicam à saúde, até o momento em que ela é intoxicada por um agroquímico. A história desvela uma série de situações do cotidiano que representam riscos à saúde de muitas mulheres. “É um material que serve de referência para um conjunto de atividades que podem ser desenvolvidas com mulheres agricultoras, com vista a melhorar a forma como elas percebem os riscos representados pelos agrotóxicos e, assim, aumentarem as práticas de cuidado à saúde”, orienta.

Além de Menina Veneno, Peres destaca um projeto educativo do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) da Ensp/Fiocruz voltado às crianças de áreas agrícolas. Trata-se da revista em quadrinhos (HQ) Descobrindo a Agricultura com o Jovem Neno, que tem como protagonista um menino que ajuda o pai agricultor na lavoura. “A publicação foi idealizada para ser trabalhada por escolas do meio rural brasileiro, como material paradidático do quinto ano do ensino fundamental”, revela.  A HQ encontra justificativa na realidade rural brasileira. Segundo o pesquisador, a maioria das escolas rurais do país tem aulas até o quinto ano do ensino fundamental e, em face da necessidade de ajudarem os pais nas lavouras e da dificuldade em deslocarem-se para os centros urbanos, crianças de dez anos, em média, começam a trabalhar cedo, sendo expostos precocemente aos agrotóxicos.

Os trabalhos informativos tomam como base, esclarece Peres, o conceito de literacia em saúde. Ou seja, a capacidade que cada indivíduo tem de compreender e usar a informação em saúde, contida em vários materiais impressos, de modo a desenvolver seus próprios conhecimentos. “Não basta apenas facilitar o acesso a informações. É fundamental que essas informações sejam compreendidas e, a partir dessa compreensão, que os indivíduos consigam transformar as informações em ações para o cuidado de sua saúde”, justifica.

Outro exemplo que ilumina o debate é o filme O Veneno Está Na Mesa 2. Após impactar o Brasil mostrando as perversas consequências do uso de agrotóxicos em O Veneno está na Mesa, o diretor Sílvio Tendler apresenta no segundo filme uma nova perspectiva, atualizando e avançando na abordagem do modelo agrícola nacional atual e de suas consequências para a saúde pública. O filme apresenta experiências agroecológicas empreendidas em todo o Brasil, mostrando a existência de alternativas viáveis de produção de alimentos saudáveis, que respeitam a natureza, os trabalhadores rurais e os consumidores.

Além de publicações e filmes, a formação se apresenta como força motriz de mudança do cenário brasileiro. Exemplo, nesse sentido, é o curso de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, ofertado pela Escola de Saúde Pública do Ceará Paulo Marcelo Martins Rodrigues (ESP-CE), integrante da RET-SUS. A proposta é qualificar os profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) que atuam na área da Vigilância Ambiental, em face do grande número de pessoas intoxicadas pelos agroquímicos. Iniciado em 2014, como duas turmas, e, também, realizado em 2015, com quatro turmas, o curso capacitou 128 alunos.

A coordenadora pedagógica da ESP-CE, Rosimary da Silva Barbosa, conta que o curso enfatizou as técnicas, os fluxos e os formulários de coleta, acondicionamento e transporte das amostras da água para análise do parâmetro agrotóxico, além dos aspectos conceituais e organizacionais da estruturação da Vigilância Ambiental e dos riscos, causas e consequências à saúde humana e ambiental decorrentes do uso dos agroquímicos. Ela lembra que o uso intenso de agrotóxicos nos meios urbano e rural expõe a população a vários riscos, seja por meio do meio ambiente, da água ou dos alimentos contaminados. “A população está exposta a distúrbios gastrointestinais, respiratórios, endócrinos, reprodutivos e neurológicos, neoplasias, mortes acidentais e suicídios”, destaca. Rosimary anuncia que há previsão de novas turmas do curso ainda neste ano de 2016.

 

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