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Incluir é reconhecer todos e todas

O tema da inclusão ganha destaque em momentos como a Paralimpíada, colocando em xeque a superação como forma de incluir a pessoa com deficiência.

Julia Neves
 

O Rio de Janeiro recebeu em setembro de 2016 — mês em que se comemora o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência (21/9) — os Jogos Paralímpicos. As incríveis 239 medalhas da China e os 72 pódios da delegação brasileira guardam histórias muito especiais. Cada conquista — acompanhada de perto pela torcida anfitriã — remonta a trajetória de pessoas com deficiência que encontraram no esporte uma forma de inclusão social e traz à tona a discussão em torno do tema, muitas vezes adormecida em meio a tantas tensões da sociedade. São histórias vitoriosas, como a do nadador brasileiro Andre Brasil, um multimedalhista nos Jogos Paralímpicos, que, aos dois meses de idade, foi diagnosticado com poliomielite (Paralisia Infantil), depois de uma reação à vacina, que servem de força motriz para o debate acerca da inclusão e do acesso aos direitos sociais.

Brasil, que tem deficiência na perna esquerda como sequela da doença, passou a infância em hospitais, sendo submetido, até os oito anos, a sete cirurgias, várias terapias experimentais e muita natação como forma de fisioterapia. Seu maior desafio foi entender e se aceitar como indivíduo com algum tipo de deficiência. “O mais difícil foi compreender que meu corpo não era igual aos demais e que limitações me privariam de realizar algumas coisas. Porém, ao mesmo tempo, entender que precisaria me adaptar e seguir em frente foi a maior lição que a vida me trouxe”, revela o atleta, atualmente com 32 anos e mais de 50 medalhas na carreira. Ele não simpatiza com a palavra superação: “Nunca gostei. Todo mundo tem uma história de superação, seja deficiente ou não. Prefiro dizer que viver é uma grande oportunidade”.

Transformar para incluir

Segundo o Relatório Mundial sobre a Deficiência de 2012, a deficiência faz parte da condição humana. No Brasil, segundo o Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que 23,9% das pessoas apresentem alguma deficiência — visual, auditiva, motora ou intelectual — e precisam ser compreendidas nas suas diversidades e necessidades individuais. Para Claudia Werneck, jornalista, escritora e fundadora da Escola de Gente – Comunicação em Inclusão, o que as pessoas com deficiência realmente superam é o mundo ao redor delas. “Não há como a gente continuar acreditando que, para a pessoa com deficiência ter valor, ela tem que se superar. Do ponto de vista humano, as pessoas são pessoas e ninguém tem que superar nada. Só se usa a palavra superação quando se fala em esporte ou pessoa com deficiência. É como se fosse necessário se superar, mas o maior problema que a pessoa enfrenta é o ambiente que está ao redor dela”, critica.

Na avaliação de Claudia, a Paralimpíada trata-se de um momento esportivo importante para um país, e não de um evento de inclusão social. Segundo ela, a verdadeira inclusão pelo esporte é, por exemplo, a criação de jogos inclusivos nas escolas. “É o professor criar um jogo de queimado com regras próprias que possa ter pessoas com ou sem deficiência jogando juntas”, exemplifica. A escritora defende que usar o esporte para inclusão é transformar tudo relacionado ao esporte do dia-a-dia na própria inclusão. “Se as partidas de futebol não têm acessibilidade e audiodescrição, por exemplo, elas não são inclusivas”, descreve. A visão da educação pelo esporte, segundo Claudia, deve ser ampla, revolucionária e contemporânea, pois entende como as pessoas são e não como gostaríamos que fossem. “O que está por trás de tudo isso é um delírio coletivo de achar que a humanidade é de um jeito, mas na verdade é de outro”, atenta.

Para a pedagoga e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Anakeila Stauffer,  o esporte, inclusive o adaptado, deve estar presente nas aulas de Educação Física. Para ela, não basta educar o intelecto, é preciso educar também o corpo, assim como é importante pensar o trabalho como um princípio educativo. “Isto tudo tem que ser levado em consideração, com foco na educação integral do ser humano. Como estamos em uma sociedade de classes em que a inclusão se associa ao processo de globalização financeira, muitas vezes o esporte tem como base o mercado e, consequentemente, tomado por um caráter competitivo, e não formativo”, critica. Para ela, o esporte é oportunidade de estar com outros seres humanos e, ao mesmo tempo, quando inclusivo, respeita os limites e as possibilidades dos corpos. “Assim, a conscientização sobre o corpo, a aceitação de seus limites e possibilidades e o respeito por si mesmo são dimensões importantes do processo pedagógico”, ensina Anakeila.

Sentidos da inclusão

O nadador Andre Brasil revela que sentir-se incluído na escola não foi algo tão simples como se possa parecer, em face de brincadeiras que os colegas faziam com ele. “Muitas vezes, eu queria esconder a minha deficiência usando calça comprida e, quando não podia, morria de vergonha”, lembra. Aos 21 anos, o atleta paralímpico entrou para o esporte adaptado e começou a competir. Apaixonado pela natação, ele observa o esporte não como uma forma de inclusão, e sim meio de educar, orientar, promover saúde e criar um cidadão de caráter. “Inclusão é fazer parte e se unir a algo. Então, definitivamente, o esporte é um meio, mas não o único. Temos que destacar a necessidade de acesso à saúde, à educação e ao lazer. A melhor forma de incluir é promover oportunidades”, define, acrescentando: “Uma bela metáfora seria dizer que o mundo poderia me ensinar a pescar ao invés de me dar o peixe pronto. Mas é preciso pensar de outra forma e perceber que todos têm, independente de suas condições, direito aos bens essenciais, como saúde e educação. Esse é o real sentido da inclusão”.

Doutor em Educação e professor universitário, Armando Nembri nasceu surdo, enfrentou a exclusão em escolas públicas e vários outros desafios. Com apoio de sua família e persistência, alcançou a formação universitária e passou em concursos profissionais. Durante 30 anos, ele desenvolveu a fala e, hoje, se comunica em três línguas, tornando-se um dos primeiros surdos a fazer doutorado no Brasil. “Particularmente, tenho a convicção de que nenhuma abordagem educacional dará certo se não estiverem embutida de conhecimento, doses extras de amor e paciência”, constata. Para ele, a necessidade de incluir só existe porque há a exclusão. “Hoje, vislumbrando o mundo em que vivemos, percebe-se que o ser humano é, naturalmente, excludente. De tal forma que consegue compartimentar sua existência em religiões, partidos políticos, times de futebol, escolas de samba, entre tantas outras”, observa.

Para Armando, ser surdo em um mundo ouvinte é ter a certeza de que muito há para ser feito em relação a sua condição. “É procurar caminhos de inserção e de aceitação, compreendendo que todos somos partes desiguais de um todo. Ser surdo em um mundo ouvinte é, muitas vezes, compreender os ouvintes e não achá-los culpados por uma sensação de abandono que, vez por outra, nos atinge em cheio. Os ouvintes, em sua maioria, apenas desconhecem a nossa cultura e a nossa língua natal, que é motivo de orgulho para nós”, define.

     Ele observa uma falta de iniciativa por parte das pessoas com surdez. “Sempre esperamos que os ouvintes tomassem a iniciativa da inclusão. Será que os incluímos em nosso mundo?”, questiona o professor, para quem é preciso encontrar formas mais adequadas de esclarecimento e convencimento. A solução para Armando é descobrir mecanismos mais eloquentes para a expressão de novas ideias. “Ser surdo em um mundo ouvinte é ter, sobretudo, o sonho de ser ouvinte um dia, da forma possível, mas respeitando a sua surdez”, conclui.

Incluir para educar

O tema da educação inclusiva ganha notoriedade em 1994, com a Conferência Mundial de Educação Especial. O encontro reuniu, à época, 88 países, incluindo o Brasil, e 25 organizações internacionais na cidade de Salamanca, na Espanha, sob o objetivo de fornecer diretrizes básicas para a formulação e reforma de políticas e sistemas educacionais, segundo o movimento de inclusão social. Não à toa que a Declaração de Salamanca é considerada um dos principais documentos mundiais que visam à inclusão, ao lado da Convenção de Direitos da Criança de 1988 e da Declaração sobre Educação para Todos de 1990. O documento afirma o princípio e traz à tona a discussão em torno da garantia da inclusão das crianças com necessidades educacionais especiais e da tomada de seus lugares de direito numa sociedade de aprendizagem.

Para a Declaração de Salamanca, “o princípio fundamental da escola inclusiva é o de que todas as crianças deveriam aprender juntas, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que possam ter”. As escolas inclusivas, segundo o texto, “devem reconhecer e responder às diversas necessidades de seus alunos, acomodando tanto estilos como ritmos diferentes de aprendizagem e assegurando uma educação de qualidade a todos por meio de currículo apropriado, modificações organizacionais, estratégias de ensino, uso de recursos e parceiras com a comunidade (…) Dentro das escolas inclusivas, as crianças com necessidades especiais deveriam receber qualquer apoio extra que possam precisar, para que se lhes assegure uma educação efetiva (…)”.

Paradigmas da inclusão

No cenário internacional, ainda, a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência, celebrado na Guatemala em maio de 1999, do qual o Brasil é signatário, veio reafirmar também a necessidade de se rever o caráter discriminatório de algumas práticas escolares mais comuns e mais perversas — a exclusão internalizada e dissimulada pelos programas ditos compensatórios e à parte das turmas escolares regularmente constituídas, tais como as turmas de aceleração e outras, que acabam por responsabilizar o aluno pelo seu próprio fracasso na escola.

O texto da Convenção, no artigo I, nº 2, item a, deixa claro a impossibilidade de diferenciação com base na deficiência, definindo a discriminação como [...] “toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, consequência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, o gozo ou o exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais”.

Outras leis ordinárias e decretos, bem como as resoluções e os pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE), constituem instrumentos essenciais para a inclusão, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996) e do Plano Nacional de Educação (PNE, aprovado pela Lei nº 10.172/2001). Mas, somente em 2007, o Brasil construiu uma legislação nacional que defende mais radicalmente o paradigma de inclusão, com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva — documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial nº 555, de 5 de junho de 2007, prorrogada pela Portaria nº 948, de 09 de outubro de 2007. De acordo com Anakeila, tais políticas não são suficientes se não houver um orçamento viável para fazê-las acontecer: “Nada pode ser feito se não há vontade política e não modificarmos radicalmente a estrutura de nossa escola e a defesa espúria da meritocracia”.

A inclusão escolar, fortalecida pela Declaração de Salamanca e por leis anteriormente citadas, no entanto, não resolve todos os problemas de marginalização dessas pessoas, pois o processo de exclusão é anterior ao período de escolarização, iniciando-se no nascimento ou, exatamente, no momento em que aparece algum tipo de deficiência física ou mental, adquirida ou hereditária, em algum integrante da família. Isso ocorre em qualquer tipo de constituição familiar, sejam as tradicionalmente estruturadas, sejam as produções independentes e
congêneres e em todas as classes sociais, com um agravante para as menos favorecidas.

Classes excluídas

Crianças deficientes que residem na zona rural e em periferias das cidades enfrentam maiores dificuldades de atendimento educacional apropriado. Grande parte dos estudantes excluídos educacionalmente reside nas periferias das grandes cidades, onde são precárias as condições de moradia e de acesso a serviços públicos, inclusive os de segurança. Muitas delas são atormentadas pela violência, por confrontos entre grupos criminosos e as forças de segurança pública. As escolas, os professores e os alunos convivem com riscos permanentes, e são frequentes as interrupções das aulas. Ainda que seu enfrentamento extrapole a área da educação, exige dos sistemas de ensino políticas e ações apropriadas. “Discutir o processo de inclusão implica, também, falar sobre as desigualdades de uma sociedade de classes, onde se faz necessária a luta contra a exclusão social de grupos marginalizados — sejam étnicos, de crenças, gêneros diferentes, desempregados e, também, pessoas com deficiência”, observa Anakeila.

Para ela, há de se pensar a inclusão social universal e emancipatória. Isso, explica a pedagoga, significa compreender a urgência de se legitimar politicamente os derrotados, recolocando a necessidade de uma economia sustentada em outra categoria que não seja a exploração de muitos por poucos. “Neste momento histórico, não podemos deixar de pensar políticas que visem à redistribuição de renda e riqueza. Sob esta perspectiva, há que se criar estrutura de políticas universais de proteção social, ou seja, políticas públicas compromissadas com a emancipação social, política e econômica da população excluída”, defende.

Para os educadores, em geral, a inclusão implica aprofundar conhecimentos para a realização de intervenções adequadas e pontuais nos ambientes escolares, considerando as diferentes realidades das escolas na sua totalidade. Na avaliação de Anakeila, essa complexidade é encarada como um desafio, pois muitos profissionais da educação ainda estão ancorados em velhos paradigmas educacionais, dificultando e limitando suas ações no ambiente escolar. Imbuída pela perspectiva inclusiva, a educação precisa compreender o ser humano na sua totalidade, no sentido de transcender os limites impostos por uma percepção limitada e limitante, enraizada em dicotomias e na fragmentação do Ser. “A pedagogia como uma área de conhecimento é um campo do saber no qual esses conhecimentos estão sedimentados”, ensina Anakeila.

Problemas da inclusão

No Brasil, a política de inclusão no sistema de ensino público manifesta-se de forma inconsistente e disforme, apresentando diversas limitações, entre elas o número excessivo de alunos nas salas de aula, as dificuldades de acesso físico às escolas, a questão dos procedimentos de avaliação e encaminhamento para as escolas e classes especiais, a descontinuidade dos programas educacionais, as mudanças de governo acompanhadas da ausência de vontade política, os baixos salários dos professores, as salas de aula sem condições de trabalho (equipamentos e materiais), a desinformação, o despreparo e a não capacitação de recursos humanos (professores e funcionários), principalmente nos programas curriculares dos cursos de magistério e superior. Por esses e outros motivos, a temática da inclusão apresenta diversos obstáculos a serem transpostos.

Anakeila destaca que falar sobre inclusão e tornar o ambiente escolar o menos restritivo possível impõe não admitir a perda da qualidade do ensino. Por este motivo, acrescenta, “não se pode falar de uma escola pautada em parâmetros de avaliação ‘estandartizados’”. Nas palavras da professora, não há como admitir escolas onde os professores são rotativos ou precisam complementar seus salários trabalhando em mais de uma escola. “Não podemos admitir estar em escolas em que a vivência da democracia não se faça presente, em que a gestão pedagógica é realizada de forma centralizada e, muitas vezes, o projeto pedagógico é imposto de fora por empresas capitalistas”, critica.

Para Anakeila, não há ainda inclusão no Brasil, quando trata-se do ambiente escolar. “De fato, só aprendemos a lidar com as pessoas com deficiências se nos permitirmos viver e aprender com elas, questionarmos nossas certezas pedagógicas, nos instigarmos a estudar mais e aceitarmos que, antes de mais nada, ter acesso aos conhecimentos historicamente elaborados pela sociedade é um direito de todos e todas, independentemente se tem ou não alguma deficiência ou especificidade em seu desenvolvimento”, afirma.

O mesmo observa Claudia Werneck , para quem não é possível fazer inclusão só para um segmento, uma vez que a escola inclusiva não é aquela que tem pessoas com deficiência. “Na verdade, é aquela que dá conta da diversidade que existe naquele ambiente. Se a escola não dá conta de uma inclusão ampla em tudo que pode acontecer, porque são todos seres humanos, não há de fato uma educação inclusiva”, atesta. Claudia acredita que não existe inclusão de pessoas com deficiência. O que existe, segundo ela, é um sistema único que envolve transformações em todas as áreas, seja econômica, educacional e cultural.
 

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Fundada pela jornalista Claudia Werneck, em 2002, a Escola de Gente é uma organização não governamental (ONG), que atua em duas áreas estratégicas: a comunicação pela inclusão e a comunicação pelo direito à inclusão. São projetos e ações que colocam a comunicação a serviço da inclusão de grupos vulneráveis na sociedade, principalmente de pessoas com deficiência. A ONG trabalha, também, na qualificação da mídia e formadores de opinião, por meio da elaboração e distribuição gratuita dos Manuais da Mídia Legal, cursos a empresas e instituições e capacitação de jovens brasileiros, tornando-os multiplicadores do conceito e da prática da inclusão. Nesse contexto, destacam-se os projetos Encontros da Mídia Legal, Oficineiros da Inclusão e Os Inclusos e os Sisos - Teatro de Mobilização. A Escola de Gente já sensibilizou mais de 400 mil pessoas de 16 países das Américas, África, Oceania e Europa, além de contar com parceiros da sociedade civil, governos, Ministério Público da União, conselhos de direitos, cooperação internacional e empresas.

 

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