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07/07/2011 Versão para impressãoEnviar por email

Quem são os povos indígenas no Brasil hoje?

Pesquisadores debatem diferentes contextos envolvendo populações indígenas e refletem sobre políticas públicas para os povos ao longo da história brasileira

Pesquisadores debatem diferentes contextos envolvendo populações indígenas e refletem sobre políticas públicas para os povos ao longo da história brasileira


Em 2000, 734.127 mil indígenas viviam no Brasil. Esse número representava à época apenas 0,4% do total da população do país. Os aproximadamente 230 povos indígenas falavam cerca de 180 línguas diferentes – isso sem contar os vários dialetos. Dessas etnias, 60 não tinham contato, sendo caracterizadas formalmente como “povos isolados”, todas vivendo na região da Amazônia Legal, que engloba os estados do Norte além de parte do Maranhão e do Tocantins.

De acordo com dados preliminares do Censo do IBGE de 2010, a população indígena passou a ser de 817 mil pessoas; 400 mil delas vivendo “aldeadas” e 300 mil em cidades. Desse total, 60% concentram-se na Amazônia Legal e, destes, 40% encontra-se em situações de forte pressão sobre suas terras, demarcadas em regiões visadas pelo agronegócio e por grandes empreendimentos. Há cerca de seis mil estudantes indígenas na graduação e cem na pós-graduação. Já foram formados 40 mestres e três doutores.

Com esses dados em mente, a pesquisadora Renata Curcio Valente, do Museu do Índio da Fundação Nacional do Índio (Funai), abriu a segunda mesa do seminário que propunha a reflexão sobre ‘Quem são os povos indígenas no Brasil de hoje: identidades, contexto urbano, povos isolados’.

“Acho que estamos passando por um momento de aprofundamento de como se pensa não só a imagem que construímos dos povos indígenas, mas também do papel dos povos indígenas nas políticas públicas. Acredito que esses graduados, mestres e doutores vão contribuir para a reformulação na historiografia e na própria antropologia”, disse Renata.

Para ela, a revisão do papel dos povos indígenas na história do país é necessária, uma vez que a categoria ‘índio’ surge a partir da construção de um sujeito enquanto sujeito do encontro colonial.

“É uma reflexão do colonizador, no contexto do processo histórico de expansão dos estados coloniais europeus para compatibilizar a contradição entre a realidade encontrada e a lógica de construção do Estado nacional, que pressupõe povo e língua homogêneos. Mas contra todos esses esforços, hoje temos mais de 220 povos indígenas e mais de 180 línguas indígenas faladas no Brasil”.

De acordo com Renata, cerca de 30% das línguas estão ameaçadas e a questão é objeto de política da Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciências e a Cultura] não só para o Brasil, mas para o mundo inteiro da importância das línguas tribais de determinados grupos indígenas como elemento fundamental de afirmação de identidade cultural.

Nessa linha, o Museu do Índio desenvolveu em parceria com a secretaria estadual de educação do Rio de Janeiro um projeto voltado para os professores da rede escolar, a partir da lei 11.645 de 2008, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘ História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena’. “Nos deparamos com uma rede que, tirando situações pontuais, como dos municípios de Paraty e Angra dos Reis, não vive e não compartilha reflexões sobre os povos indígenas”.

O resultado do processo de qualificação dos professores feito pelo Museu é o documentário ‘Povos indígenas: conhecer para valorizar’, que, segundo Renata, tenta quebrar certos preconceitos e ideias cristalizadas no imaginário brasileiro, como, por exemplo, de que “índio parou no tempo”. “É fundamental entender que cultura não é uma coisa estática, uma fotografia que você coloca em um porta-retrato que fica ali para sempre. O documentário foi uma tentativa de juntar as várias visões, com relatos de professores que fazem parte da rede, de antropólogos e com alguns depoimentos de indígenas também. Se propõe a ser instrumento de trabalho e reflexão pedagógica para os professores trabalharem em sala de aula com seus alunos”.

A pesquisadora explicou que o Museu do Índio tem desenvolvido a formulação e execução de políticas culturais para os povos indígenas desde 2010, quando, com a reestruturação da Funai, assumiu a responsabilidade sobre a área de políticas culturais.

Parte 1: http://www.youtube.com/watch?v=Tf-tOJGRYOI

Parte 2: http://www.youtube.com/watch?v=0jaRI0KOrms&feature=related

Parte 3: http://www.youtube.com/watch?v=VZmWUF3e75I&feature=related


Povos isolados

Carlos Augusto da Rocha Freire, também pesquisador do Museu do Índio, falou sobre a história das políticas públicas para povos indígenas isolados no Brasil. De acordo com ele, é importante que se tenha em mente que a política indigenista nunca se fez sem antagonismos, constituindo um verdadeiro campo de disputas.

“No século 20, a partir de 1910, o Estado brasileiro institucionaliza uma política de pacificação de povos que estavam impedindo o avanço do “progresso”, principalmente em São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Maranhão. Ao mesmo tempo, essa política não se deu sem resistência e conflitos no aparelho do Estado e com outros agentes sociais, como missionários e população urbana em geral”.

Para ele, pensar sobre a história do indigenismo também é pensar sobre o famoso mito das “três raças”. “Essas ideias que tentavam superar o racismo herdado do século 19 partiam de uma posição positivista de incorporação dessas populações à sociedade brasileira. Ou seja, os povos deviam ser educados para se tornarem bons civilizados”. Carlos Augusto avalia que embora o positivismo trouxesse avanços ao conceder a igualdade aos índios em relação ao resto da população, também propalava que os indígenas precisam de educação para poder “evoluir”.

Nesse sentido, foi colocada em curso uma política para instruir os índios a se tornarem bons agricultores, voltarem sua produção para o mercado e pacificarem suas relações com os camponeses que se instalavam em torno das aldeias.

No entanto, a política, não reconhecia a autonomia e a independência dos povos indígenas. Segundo Carlo Augusto, o resultado do integracionismo é o extermínio de muitos índios, que, após o contato, foram contaminados com doenças dos brancos para as quais não tinham anticorpos. “Além disso, populações inteiras foram deslocadas das suas terras para não impedir o desenvolvimento econômico, enfrentaram situações de fome e desespero porque perdiam suas roças e para onde eram levados muitas vezes não havia condições para sobreviver”.


Mudanças e desafios

Uma mudança na política integracionista acontece a partir dos irmãos Villas Boas (Orlando, Cláudio e Leonardo), sertanistas brasileiros que defenderam a criação do Parque do Xingu, primeira terra indígena homologada pelo governo brasileiro, em 1961. O pesquisador do Museu do Índio explica que, na verdade, a criação de parques nacionais é uma ideia que vem de fora, e já tinha sido adotada nos Estados Unidos e em alguns países da África.

“O projeto original do Xingu reconhecia que era possível a defesa dessas culturas e que os povos indígenas deveriam ter tempo para poder enfrentar o contato e aceitar ou não a integração com a sociedade envolvente”.

Já na década de 1980 o movimento indígena foi se fortalecendo. Em 1984 em um encontro em Mato Grosso, índios e ONGs fizeram críticas em relação à política com povos isolados, possibilitando uma inflexão que vai se refletir na Funai, que, em 1987, propõe a criação de anteparos e frentes de proteção, preconizando que os povos isolados fossem contatados só em último caso, como em questões de frente econômica, narcotráfico, etc.

De acordo com Carlos Augusto, a Constituição de 1988 rompe com o paradigma evolucionista e assegura o direito aos povos de futuro. Os sistemas de proteção, vigilância e contato passam a ser orientados a partir de determinadas fases. Ao invés de simplesmente adentrar nos territórios indígenas, como fazia antes, o Estado deve montar um esquema de localização, no caso dos povos isolados, no qual moradores da região e indigenistas elenquem elementos que identifiquem a existência da tribo sem precisar ir até ela. 

Nos anos 1990, pela primeira vez se passa a demarcar terra para índios isolados sem contato. “Essa política conseguiu avançar mesmo com pressões contrárias no governo, permitindo que, em 2000, fosse consolidada efetivamente, com a criação de cerca de 12 frentes de proteção étnico-ambiental”.

Segundo Carlos, hoje os estudos fazem menção a cerca de 70 povos isolados na Amazônia Legal e sete de recém-contato. “Há provavelmente mais povos além desses”. Para ele, essa política em relação aos povos isolados muitas vezes sofre ataques dentro do governo. “Os povos sofrem com questões de saúde, pois sofrem contatos com ribeirinhos, traficantes, madeireiros. Hoje temos povos isolados do Peru imigrando para o Brasil”.

Isso porque, embora “povos isolados” seja a nomenclatura oficial, é preciso ter em mente que eles têm contatos com outros povos e, eventualmente, até com populações ribeirinhas. “A última foto que os jornais exibiram mostrava um novo grupo isolado com panelinha de alumínio e facão”. 

Carlos citou que mesmo com a reformulação da Funai, que duplicou número de frentes, a força de trabalho é um problema. “As pessoas entram em choque com a realidade, que é muito dura. Não conseguem aguentar a barra pesada, há muito confronto com interesses econômicos”.

Para ele, é necessário que as políticas públicas dêem um passo a frente em relação aos povos isolados. “A realidade desses grupos tem uma dinâmica cultural própria, em alguns lugares eles estão em fuga e precisam ter anteparo do Estado e de certa forma ainda hoje não se pensou as políticas públicas a médio prazo porque em algum momento o contato será inevitável. É preciso fazer com que as populações entendam o mundo e construam defesas eficazes para sua preservação”.

Por Maíra Mathias
(Secretaria de Comunicação da RET-SUS)

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