em rede
Descentralização: expressão da Rede
Adequação do currículo ao contexto regional caracteriza as escolas técnicas do SUS, com vistas à democratização do acesso à formação profissional técnica.
Flavia Lima
Revelada na Constituição de 1988 e na Lei Orgânica 8.080/90, que institui o Sistema Único de Saúde (SUS), a descentralização da saúde assume um papel estruturante, uma vez que convoca os três entes governamentais federados — União, estados e municípios — a se articularem, visando à qualidade das ações e serviços de saúde. A marca principal dessa diretriz é a transferência de atribuições, em maior ou menor grau, dos órgãos centrais para os locais de Saúde, para que a população tenha acesso aos serviços de prevenção e tratamento no município em que vive. Inerente, também, à Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), essa diretriz tem o desafio de proporcionar um sistema de saúde efetivamente universal, equitativo, integral e hierarquizado.
No caso da Rede, a descentralização tem a capacidade de promover a articulação das instituições formadoras de trabalhadores de nível médio em saúde no país, para ampliar sua capacidade de atuação em atenção às necessidades ou demandas do SUS. Hoje, são 40 escolas técnicas de saúde, centros formadores de recursos humanos e escolas de Saúde Pública espalhadas pelo Brasil com oferta de formações técnicas, qualificações, aperfeiçoamentos e especializações em milhares de cidades, sob a lógica da descentralização e da adequação do currículo ao contexto regional. “Nosso principal desafio é manter a mesma qualidade dos cursos em locais diversos. A nossa descentralização tem uma característica que se aproxima do que, hoje, é preconizado pelo ensino de Educação a Distância (EaD), com vistas à ampliação e à democratização do acesso à formação profissional técnica de nível médio em saúde”, comparou o coordenador-geral de Ações Técnicas em Educação na Saúde, do Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Deges/Sgtes/MS), Aldiney José Doreto — por sua vez, coordenador da RET-SUS. “Os profissionais da rede atuam como professores e a própria rede serve de ambiente de educação e formação”, acrescentou.
Segundo Doreto, para descentralizar um curso, é preciso garantir ao Conselho Estadual de Educação a qualidade da formação fora da sede da escola e estabelecer boas relações com alguns colegiados, como Comissão de Integração Ensino e Serviço (Cies) — instância intersetorial e interinstitucional permanente que participa da formulação, condução e desenvolvimento da Política de Educação Permanente em Saúde — e a Comissão Intergestores Regional (CIR) — órgão de instância colegiada, não paritário, de natureza permanente, cujas decisões são tomadas por consenso, em conformidade com as disposições estabelecidas pelo Pacto pela Saúde, constituindo-se em um espaço de planejamento, pactuação e cogestão solidária entre os gestores municipais. “Por isso, nós descentralizamos biblioteca, fazemos parcerias com universidades para termos acesso aos laboratórios, utilizamos profissionais do próprio serviço como formadores e facilitadores, entre outras estratégias”, citou, afirmando que, por isso, a maioria dos conselhos, dos colegiados e das secretarias de educação e saúde já reconhece a qualidade dessa característica. “O nosso maior desafio reside na burocratização”, ponderou. Ele esclarece que, apesar do sucesso da descentralização em prática, as escolas ainda enfrentam barreiras burocráticas ao solicitarem autorização para um curso, bem como problemas relacionados à infraestrutura predial e corpo docente reduzido.
Excelência da Rede
Apesar dos problemas, Doreto reconhece a excelência da Rede quando se trata do tema da descentralização. “Não conheço nenhuma outra rede que faça descentralização da maneira que fazemos, com a expertise que adquirimos e utilizando aspectos potenciais daquela região. Alguns locais subcontratam instituições ou montam filiais em outras cidades. Isso não é descentralizar”, compara.
A descentralização promovida pela RET-SUS tem como objetivo promover, com a mesma qualidade que os cursos realizados na sede, aulas teóricas e práticas para milhares de trabalhadores que não teriam acesso a uma formação face às distâncias geográficas. Esse processo evita tirar o aluno — em geral, trabalhadores em serviço — de seu ambiente de trabalho, levando a formação até ele. “Com isso, focalizamos o processo de formação no aluno e não na escola”, explica. Doreto acrescenta que a descentralização implica interagir com o trabalhador e com os serviços de saúde locais, onde, normalmente, acontecem as aulas práticas.
A Escola Técnica do Sistema Único de Saúde (ETSUS) de Blumenau, por meio da articulação e interação com Cies e a CIR, realiza vários cursos descentralizados nas macrorregiões de Saúde do Vale do Itajaí e da Foz do Rio Itajaí, que juntas somam 53 municípios. Segundo a coordenadora técnico-pedagógica e docente da escola, Kátia Lucia Brasil Pintarelli, o foco é sempre a busca da integração entre o ensino e o serviço. A descentralização promovida pela ETSUS Blumenau, atualmente, abarca os cursos técnicos em Saúde Bucal, Enfermagem e Vigilância em Saúde, o Auxiliar em Saúde Bucal, a Qualificação em Cuidador de Pessoas Idosas, a Primeira Etapa Formativa do Técnico em Agente Comunitário de Saúde, as especializações em Nefrologia, Enfermagem do Trabalho, Saúde da Família, Gestão da Vigilância em Saúde e Emergência e os aperfeiçoamentos em Saúde do Idoso, Saúde Mental, Imunização, Saúde da Família, Biossegurança e Educação Permanente ao Cuidador.
Pedagoga e docente da escola, Náuria da Silva Guimarães acredita que os desafios da descentralização são permanentes, pois o processo requer supervisão e atuação constante da equipe pedagógica. “A descentralização de cursos requer não somente articulação com os integrantes das Cies e CIRs, mas também com os gestores dos municípios”, destaca.
Para a realização dos cursos descentralizados, a ETSUS Blumenau conta com um quadro de profissionais composto por servidores municipais, efetivos e convidados, contratados por meio de processo de inexigibilidade. “Para atuarem como docentes no curso, a ETSUS Blumenau estabelece um contrato com alguns critérios, com destaque para a realização da capacitação técnico-pedagógica e a necessidade de o profissional estar vinculado a uma unidade do SUS”, cita. Segundo Náuria, a capacitação técnico-pedagógica tem como objetivo preparar o profissional para a docência, trabalhando temas como política de educação permanente, Cies, plano de curso, papel do docente, avaliação, concepções de educação, metodologias de aprendizagem, entre outros.
Na mesma direção, a Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Sabóia (ETSUS Sobral), no Ceará, oferece nas regiões de saúde de Acaraú, Camocim, Crateús, Tianguá e Sobral a complementação de auxiliar para técnico em enfermagem. Segundo a coordenadora pedagógica do Núcleo de Educação Profissional e Técnica da escola, Maria José Galdino Saraiva, já foram realizadas doze turmas do curso, totalizando 360 profissionais habilitados como técnicos na área. Em sua sexta edição, o curso tem, hoje, três turmas descentralizadas em andamento. Além da complementação, a ETSUS Sobral desenvolve de forma descentralizada as formações técnicas em Saúde Bucal e Enfermagem e a Especialização Técnica em Saúde do Idoso.
A descentralização, explica Maria José, se dá a partir da articulação entre a escola e a Cies da Macrorregião de Saúde de Sobral, que compartilham as necessidades de formação em consonância com o financiamento para as ações. “A partir daí, critérios são adotados e identificamos em qual região a ação será realizada”, informa. Alguns desafios foram enfrentados desde que a escola iniciou o processo de descentralização, em 2009, com o Técnico em Enfermagem. “De forma estratégica, a estrutura organizacional foi adaptada contando com a contribuição de um coordenador geral situado no município de Sobral e coordenadores locais em cada região sede do curso, selecionados por meio de chamadas públicas, que identificam estratégias de diálogo constante para conduzir o processo em equipe”, revela.
Segundo a coordenadora pedagógica, o acompanhamento das turmas é realizado por meio de visitas, onde são promovidas conversas com os docentes e os alunos sobre os aspectos processuais do curso, as potencialidades e dificuldades e observadas as estratégias e as metodologias utilizadas em sala de aula. “Além disso, alguns meios de comunicação auxiliam potencialmente no decorrer do processo, como e-mail e grupos on-line, facilitando a interação entre as coordenações, os estudantes e o corpo docente”, acrescenta.
Maria José salienta que a escola realiza, também, um encontro de alinhamento teórico-conceitual com os orientadores de práticas e do estágio supervisionado e coordenadores locais. “Nesse encontro são abordados aspectos importantes para sua execução, incluindo a apresentação do plano de curso, as discussões sobre as metodologias de ensino-aprendizagem adotadas pela ETSUS de Sobral, as estratégias de avaliação, a sensibilização dos profissionais acerca de novas temáticas a serem inseridas nas unidades didáticas e outras questões envolvendo a organização estrutural da matriz curricular”, esclarece.
Em sua avaliação, a formação técnica ganha amplitude à medida que se reduz a visão tecnicista sobre ela, com incentivo, sobretudo, à produção científica. “Com o objetivo de promover a integração dos cursos desenvolvidos pela ETSUS Sobral, realizamos anualmente o Encontro de Integração da Formação Técnica e Profissional, possibilitando o compartilhamento de diversas experiências da formação técnica”, revela.
Experiência exitosa
A Escola de Saúde Pública do Estado do Mato Grosso (ESP-MT) oferece cursos descentralizados desde a década de 1990. A iniciativa surgiu, segundo a coordenadora de Formação Técnica em Saúde da escola, Noíse Pina Maciel, com a implantação dos hospitais regionais e a necessidade de formar auxiliares em enfermagem nos municípios de Colíder e Sorriso. “Na época, a então Escola Técnica de Saúde — que deu origem à ESP-MT em 2000 — contava com um quadro de enfermeiras que se deslocavam até os municípios para ministrarem os cursos de Auxiliar em Enfermagem”, recorda. A escola passou, também, a descentralizar as formações técnicas em Enfermagem, Saúde Bucal, Vigilância em Saúde e Análises Clínicas e, recentemente, a Especialização Técnica em Enfermagem, atendendo, aproximadamente, 70% dos municípios de Mato Grosso com as formações. Outro grande projeto executado de forma descentralizada pela ESP-MT diz respeito à Formação Inicial do Agente Comunitário de Saúde, em 141 municípios, abrangendo 100% do território.
Nesse contexto, cabe à escola a formação de povos indígenas dos cinco Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (Dseis) de Mato Grosso, com os cursos de Auxiliar em Enfermagem Indígena (Projeto Xamã), Auxiliar em Saúde Indígena e, mais recentemente, Auxiliar em Saúde Bucal. “Esse é o nosso maior desafio, pois implica viagens para ações de monitoramento e planejamento das etapas do curso junto com os coordenadores locais e docentes que, muitas vezes, por entraves burocráticos, ficam impossibilitadas de ocorrer com a frequência necessária”, revela.
Atualmente, a ESP-MT promove os cursos técnicos em Enfermagem, Análises Clínicas e Vigilância em Saúde e a Qualificação em Auxiliar em Saúde Bucal, nos municípios de Pontes e Lacerda e Diamantino. Além desses, a escola planeja a realização de 11 cursos descentralizados, entre qualificações, técnicos e especializações técnicas, incluindo as áreas de Análises Clínicas, Reducação da Mortalidade Infantil, UTI Adulto e Neonatal, Saúde da Família, Agente de Combate a Endemias, Saúde Mental, Saúde da Mulher e da Criança, Vigilância em Saúde e Agente Comunitário de Saúde.
De acordo com a coordenadora de Formação Técnica em Saúde, a escola já formou, desde 1993, cerca de dez mil alunos em todo o estado. Para tanto, conta com coordenadores locais e dezenas de docentes, que são selecionados por meio de edital de seleção e submetidos a uma capacitação pedagógica. “A escola tem como proposta pedagógica a metodologia da problematização em seus cursos técnicos, assim o docente, ao se candidatar, fica ciente que participará de uma capacitação pedagógica específica antes do início da formação”, afirma.
Em geral, os cursos ofertados pela escola são financiados pelo Ministério da Saúde, por meio das portarias destinadas à Educação Permanente em Saúde e ao Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps), e pelo estado. Os municípios entram, como contrapartida, com o espaço físico e os custos com os alunos. Noíse conta que todas as ações formativas são pactuadas nas comissões Intergestoras Regional, Intergestora Bipartite e de Integração Ensino e Serviço da região, para que, em seguida, termos de cooperação técnica entre a escola e os municípios sejam assinados.
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