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31/03/2016 Versão para impressãoEnviar por email

A saúde segundo o pensamento complexo de Morin

O uso do pensamento complexo, com base nas teorias do filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, na promoção de mudanças expressivas no mundo do trabalho em saúde esteve no centro da mesa de debate realizada no terceiro dia do 12º Congresso Internacional da Rede Unida.

A távola Trabalho, atenção básica em saúde e pensamento complexo: quais conexões?, realizada no terceiro dia (23/3) do 12º Congresso Internacional da Rede Unida, trouxe para o centro do debate as questões que permeiam o mundo do trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS). Coordenada por Daniel Canavese, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a mesa provocou a reflexão sobre a trajetória hegemônica e contemporânea da ciência, como um percurso ideário de racionalidade, precisão, disjunção e hierarquização. A ideia foi defender o pensamento complexo como forma de conhecimento e, também, de crítica ao modelo de ciência simplificadora. “As realidades são tradicionalmente reconhecidas como desintegradas e o pensamento simplificador acaba por ser incapaz de compreender a unidade e sua multiplicidade”, explicou Canavese, acrescentando que o desdobramento desse tipo de pensamento está presente nas unidades de saúde e nos territórios vivos, onde o conhecimento e a prática articulam questões culturais, ambientais, econômicas e políticas que esbarram no pensamento racional.

O pensamento complexo no cenário da saúde foi analisado por João Bosco Filho, médico e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob a perspectiva do filósofo e sociólogo francês Edgar Morin. Para Morin, é preciso reagrupar os saberes para buscar a compreensão do universo. O sociólogo buscou, segundo Bosco Filho, restituir um "conhecimento que se encontra adormecido", reagrupando unidade e diversidade. “Ele (Morin) diz que, com o passar dos tempos, as teorias restringiram-se a estudos por área e a complexidade das questões do homem tem sido pouco compreendida”, destacou Bosco Filho. Ele integra o Grupo de Estudos da Complexidade (Grecom), ligado ao Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação e aos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais e em Educação da UFRN, criado em 1992. “O nosso objetivo é construir novos caminhos e realidades sob outras óticas”, revelou.

 

Na prática

Para ilustrar, João contou o caso de uma idosa de 102 anos, moradora do interior de Alagoas, que abriu uma ferida em seu corpo após uma queda. A equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) que a atendeu informou que a lesão não cicatrizaria e que a usuária teria que conviver com as dores. Porém, as crenças populares motivaram a idosa a tomar o matruz, uma erva medicinal bastante conhecida na região. “Não há comprovação científica sobre os efeitos da planta, mas a pele cicatrizou após algumas semanas e a equipe ficou sem explicação para o caso”, lembrou, reconhecendo que a ESF ainda segue práticas fragmentadas e não consegue reconhecer o território como espaço vivo. “O método complexo propõe tratar da diversidade, distingue sem separar e religa sem fundir”, explicou.

Sob a mesma perspectiva, o professor Claudio Signorelli, da Universidade Federal do Paraná defendeu o uso do pensamento complexo para a promoção de mudanças expressivas no mundo do trabalho em saúde. Ele contou que conceito trazido por Morin foi usado no currículo do curso de Fisioterapia da universidade. “Tentamos implantar esse conceito nas turmas no Paraná, pois não basta ser profissional da saúde ou da educação, é preciso que tenhamos amor e que vivenciemos isso”, justificou. O currículo baseado no pensamento complexo, explicou, busca um resgate das emoções na formação, incluindo interações culturais e humanas e módulos interdisciplinares, a partir de vivências na comunidade.

Signorelli defendeu, também, o uso do pensamento complexo para lidar com as questões de gênero. Com base na teoria Queer — consolidada por volta dos anos 90, com a publicação do livro Problemas de Gênero (do inglês, Gender Troube), de Judith Butler —, ele explicou que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o resultado de uma construção social e que, portanto, não existem papéis sexuais essenciais ou biologicamente inscritos na natureza humana, mas formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. “Ou seja, ninguém precisa escolher entre ser homem e mulher. Não precisamos viver no dualismo”, disse, com críticas ao atendimento preconceituoso que ainda se observa a pacientes gays. Ele criticou o fato de pessoas que se afirmam homossexual serem impedidas de doar sangue. “Isso é extremamente humilhante e fruto de um pensamento unilateral”, concluiu.

 

Conflitos e contradições

Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina e integrante do Núcleo de Pesquisa em Bioética e Saúde Coletiva, Fernando Helmann abordou os conflitos de valores existentes no universo dos trabalhadores e usuários do SUS. Com base no estudo Bioética e atenção básica: um perfil dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família, de Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, ele afirmou que a implementação do SUS, por representar um processo de mudança na prática da atenção à saúde, exige dos profissionais, gestores e usuários transformações culturais e de atitudes e implica uma reviravolta ética. Assim, para fazer frente ao desafio da sua concretização, faz-se necessário lidar com as questões de ordem ética vivenciadas nos serviços de saúde, especialmente na atenção básica, preterida pelas reflexões da bioética.

Helmann apresentou conflitos que poderiam ser superados com a bioética aplicada a partir de um pensamento complexo, onde não existiriam tantas restrições e preconceitos quanto à prática do aborto e da eutanásia, por exemplo. “A bioética é uma ética aplicada, chamada também de ‘ética prática’, que visa dar conta dos conflitos e controvérsias morais implicados pelas práticas no âmbito das Ciências da Vida e da Saúde, do ponto de vista de algum sistema de valores. Mas, sem uma visão ampla, que considere vários fatores, ela não sai do papel”, orientou.

Ele citou alguns problemas éticos na relação entre profissionais, usuário e família, como a dificuldade de estabelecer limites da relação profissional, pré-julgamento dos pacientes, discussão da condição clínica na frente do usuário, dificuldade de manter a privacidade nos atendimentos domiciliares e não solicitação do consentimento da família para relatar sua história em publicação científica. Outra questão, que também diz respeito à bioética,em sua observação, é a contradição de valores em relação ao financiamento do SUS, que defende o acesso universal e igualitário, mas financia o setor privado e oferece aos funcionários públicos planos de saúde.

 

Por Ana Paula Evangelista, repórter da Secretaria de Comunicação da RET-SUS

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