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Unidos pela luta antimanicomial

Reunidos em São Paulo, congressistas lembram direitos conquistados com a Lei da Reforma Psiquiátrica.

Ana Paula Evangelista e Katia Machado

 

Três atores — um caracterizado de paciente e dois com atributos de profissionais de saúde — retratam a violência a que pessoas internadas em instituições manicomiais estão submetidas. A encenação fez parte da peça a Casa do Delírio, apresentada pelo Grupo Ala - Arte Louca de Alegria, abrindo o 5º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, promovido pela Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), de 26 a 28 de maio, na Universidade Paulista (Unip), em São Paulo. “Nossos movimentos sociais continuam fortes e vivos. Esse espaço reafirma o processo de luta da saúde mental, contra as crueldades promovidas pelos manicômios que ainda existem Brasil a fora”, sublinhou o presidente da Abrasme, Walter Ferreira Oliveira. Sob o tema Juntos nas diferenças: sonhos, lutas e mobilização social pela reforma psiquiátrica, o evento foi marcado, ainda, por manifestações contrárias ao governo de Michel Temer.

Ex-ministro da saúde e atual secretário municipal de saúde de São Paulo, Alexandre Padilha, presente à mesa de abertura, observou que a luta antimanicomial destaca-se pela garantia de direitos e, também, pelo respeito à cidadania, realçando o Programa De Braços Abertos, lançado pela Prefeitura de São Paulo, na região da Luz, em janeiro de 2014. Segundo ele, a iniciativa promoveu a redução do chamado “fluxo de usuários de drogas” em 80%, aproximadamente, e a queda da criminalidade na região popularmente conhecida como Cracolândia, onde cerca de 1.500 usuários de drogas faziam uso do crack a céu aberto em diversos pontos. Isso porque, explicou, o projeto faz parte do resgate social dos usuários de crack, por meio de trabalho remunerado, alimentação e moradia digna, com orientação de intervenção não violenta. Suas diretrizes trazem um novo olhar sobre o dependente químico, que deixou de ser tratado como um caso de polícia e passou a ser encarado como cidadão, com direitos e capacidade de discernimento. O tratamento de saúde é uma consequência das etapas anteriores, e não condição prévia imposta para participar do programa. Além desta iniciativa, Padilha citou a importância de se substituir os hospitais psiquiátricos restantes na cidade paulista por centros de atenção psicossocial (CAPs).

Reforma incompleta

Responsável pela conferência de abertura do Congresso, o médico sanitarista Gastão Wagner de Souza Campos, professor titular do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), observou que a reforma psiquiátrica, ainda incompleta, conquistou avanços significativos, face ao fechamento de cerca de 60% dos manicômios do Brasil. Ao falar sobre os desafios e perspectivas do SUS, no que tange ao campo da saúde mental, Gastão ressaltou os CAPs para o cuidado de usuários de álcool e outras drogas. O professor defendeu, também, o concurso público e a reforma do Estado. “Temos que criar carreiras públicas para as áreas da atenção básica, saúde mental e saúde coletiva”, sugeriu.

O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pedro Gabriel Delgado, que abriu uma das mais concorridas mesas de debate, sob o título Desinstitucionalização e conjuntura atual - Manicômio nunca mais, no dia seguinte à abertura, fez duras críticas à conjuntura política atual, especialmente a medidas que ferem o processo de desinstitucionalização da saúde mental. “Com poucos dias de posse, o presidente (ainda à época interino) Michel Temer tomou medidas que consideramos estar na contramão da universalidade do SUS”, criticou, destacando a aprovação pelo Congresso Nacional, com apoio da base do governo, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 87/2015 — apresentada ainda pela ex-presidente Dilma Rousseff —, prorrogando a Desvinculação das Receitas da União (DRU) até 2023 e ampliando de 20% para 30% o percentual a ser desvinculado. “Isso significa que, caso seja aprovada também pelo Senado, o governo poderá destinar para onde quiser 30% das contribuições sociais, que deveriam ir para a Seguridade Social, onde estão reunidas as áreas da saúde, assistência e previdência”, acentuou.

Pedro Gabriel, que durante anos coordenou a área da Saúde Mental do Ministério da Saúde, estando à frente de ações que buscaram a inclusão de pessoas com transtornos mentais na sociedade, outrora submetidas à privação da liberdade, a exemplo do Programa de Volta para a Casa — instituído pela Lei Federal nº 10.708, em julho de 2003 —, assinalou que o processo de desinstitucionalização e o resgate da cidadania das pessoas acometidas por transtornos mentais só foram possíveis graças ao apoio financeiro e à responsabilidade assumida pelos gestores dos municípios e estados. “Esse processo tão exitoso, mas que conquistamos com muita luta, só funciona se garantirmos um projeto de bem estar social, cujas bases são a previdência — atualmente deslocada para o Ministério da Fazenda —, a educação, a saúde e a assistência social. “Esta última coordenada pelo médico e deputado peemedebista Osmar Terra, atual ministro do Desenvolvimento Social, que tem um projeto de lei (PL) de drogas ultraconservador”, sublinhou o professor, referindo-se ao PL 7.663/2010, que determina o registro dos viciados em drogas em um cadastro nacional e permite a internação involuntária. “A política de drogas volta a ser do âmbito da polícia. Isso significa que quem quiser vai para as comunidades terapêuticas, em internação compulsória, e quem não quiser é tratado pelo campo da segurança pública”, repreendeu, lembrando que Terra, apesar de não ser responsável pela coordenação da política de drogas do atual governo federal — a cargo de um coronel da Polícia Militar de São Paulo, Roberto Allegretti, que vem de um contexto de repressão e violência contra usuários de drogas —, tem forte influência sobre o campo, fazendo valer suas convicções de que o usuário precisa ser punido para que o consumo de drogas seja coibido.  

Segundo Pedro Gabriel, é preciso resistir a tudo isso, uma vez que a desinstitucionalização já se provou bastante exitosa, provocando profundas mudanças na vida de pessoas excluídas. “São pessoas que passaram a ter casa, a fazer sua própria agenda e resgatar sua religiosidade familiar e ancestral. Saíram de um regime de vida no qual qualquer tipo de escolha era anulada”, lembrou o processo de inclusão de pessoas com transtornos mentais que orientou em todo país.

Lutar e resistir

Usuário do SUS e colaborador do Jornal Vozes, de São Paulo, Mário Moro destacou o tratamento humanizado que passou a ter com o advento da Lei da Reforma Psiquiátrica nº 10.216, de 6 de abril de 2001. A legislação, marco da luta antimanicomial, passou a regular as internações psiquiátricas, promovendo mudanças no modelo assistencial ofertada aos pacientes portadores de sofrimento mental, com destaque para o processo de desospitalização, por meio da criação de serviços ambulatoriais, lares protegidos e centros de atenção psicossocial. “O CAP foi minha porta de entrada para o movimento da luta antimanicomial”, frisou o militante, sugerindo luta e mobilização dos movimentos sociais, de forma a garantir direitos conquistados com a reforma psiquiátrica.

Médico-psiquiatra, o diretor da política de drogas da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, Marcelo Kimati Dias, citou o caso das residências terapêuticas como eixo da desinstitucionalização promovida na cidade, destacando a necessidade de sustentabilidade da política. “Estamos observando um movimento, que deve se acentuar nos próximos meses, de abertura de financiamento de ações de institucionalização, por meio das comunidades terapêuticas, que são muitos similares aos hospitais psiquiátricos”, criticou, explicando que uma pessoa internada perde autonomia e capacidade de realizar qualquer projeto de vida.

Dias contou que o processo de abertura das residências terapêuticas, em substituição às longas internações, teve início em Curitiba em 2002, culminando com a saída dos últimos internados do hospital psiquiátrico Nossa Senhora da Luz , em 2013. “A abertura de residências terapêuticas seguiu-se ao processo de fechamento de dez mil leitos de hospital psiquiátrico por ano”, recordou. Para ele, a luta atual é pela garantia das ações que possibilitaram o cuidado humanizado e a reinserção social. “Precisamos criar uma linha de interlocução com o Suas [Sistema Único de Assistência Social], por exemplo, que receberá a política de drogas, e resgatar o protagonismo dos municípios na política de saúde mental”, orientou.

Manicômios nunca mais

As críticas ao modelo manicomial estiveram também no centro do grande debate Política de Saúde Mental: desafios atuais da reforma psiquiátrica. O psiquiatra e pesquisador italiano Ernesto Venturini lembrou o tratamento desumano a que estavam submetidas as pessoas confinadas em hospitais, hospícios, clínicas e, até mesmo, nas comunidades terapêuticas. “A saúde torna-se cada vez mais uma mercadoria, e os usuários de saúde mental são compradores de serviços”, caracterizou. Ele defendeu os centros de atenção psicossocial como lugares capazes de abrigar as crises. “O serviço de saúde tem que ser baseado no trabalho cidadão, pois a prática de cuidado afeta todos nós”, orientou.

Sérgio Pinho, um dos fundadores da Associação Metamorfose Ambulante de Usuários e Familiares do Serviço de Saúde Mental (Amea), na Bahia, apresentou a perspectiva de um usuário ainda em tratamento, porém recuperado e incluído na sociedade. Ex-usuário de drogas, Pinho atua como redutor de danos do projeto Ponto de Cidadania, em Salvador (BA), que registra mais de 16 mil atendimentos, entre 2014 e 2015, de pessoas em situação de vulnerabilidade social, especialmente de usuários de crack e outras drogas. Realizado em contêineres, o projeto conta com equipes compostas por psicólogo, enfermeiro, assistente social, pedagogo, técnico de enfermagem e redutor de danos, todos responsáveis por prestar atendimento e repassar orientações que minimizem as dificuldades enfrentadas pelos moradores em situação de rua — parte deles, inclusive, já foi ou ainda é usuária de substâncias psicoativas, como o crack. Ele ponderou que, se estivesse preso em um manicômio e dopado de remédios, jamais estaria em uma mesa contribuindo com um evento tão importante.

“Hoje é difícil apontar qualquer perspectiva, em face de algumas medidas que representam retrocesso para os projetos de cultura e inclusão social”, salientou Paulo Amarante, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e presidente de honra da Abrasme.  Ele lembrou medidas austeras do governo Temer, ao assumir na época interinamente a Presidência da República, como a extinção do Ministério da Cultura (Minc) — reativado após pressão social — e o fim do Mistério da Mulher e dos Direitos Humanos. “As políticas sociais estão sendo fortemente atacadas”, sentenciou, lembrando também o discurso do ministro da saúde, Ricardo Barros, sobre o tamanho do SUS. Segundo Amarante, ao dizer que o sistema de saúde precisa ser revisto, pois do contrário o país não conseguirá sustentar os direitos garantidos pela Constituição, como o acesso universal à saúde, Barros reforça a ideia de privatizar a saúde pública, processo que, para Amarante, já vem ganhando corpo há tempos, seja pela formação de profissionais para o SUS sob a lógica do capital, realizada por instituições filantrópicas, seja pela contratação de profissionais por meio de organizações sociais (OSs). “A privatização traz a precarização do trabalho, fazendo com que os trabalhadores percam a concepção de trabalho em saúde, de solidariedade, além do vínculo com a comunidade, tornando-se apenas produtores de números, gráficos e estatísticas”, opinou.

Para o pesquisador e militante da luta antimanicomial, não há dúvidas que, diante desse contexto, as políticas de saúde mental estão ameaçadas, bem como a trajetória de luta dos movimentos contra a ditadura e pela redemocratização do país. “Trata-se de uma história impregnada pela participação dos movimentos sociais, ligada às reivindicações por um serviço de saúde universal, que atendesse a todos os brasileiros”, caracterizou.

Burocracia e subfinanciamento

As dificuldades e avanços enfrentados pelas gestões municipais, estaduais e federal estiveram no centro do debate da mesa Possibilidades e Impasses no Financiamento da Saúde Mental. Ricardo Lins, diretor da área da Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, atentou que o problema do SUS não é a falta de recursos, mas a burocracia para fazer uso do dinheiro com as licitações demoradas, os termos, as rubricas e os demais processos que dificultam a execução orçamentária. “Ano passado, o setor público realizou 46% dos gastos em saúde para atender 75% da população. Enquanto isso, o setor privado precisou de 56% para assistir apenas 25% de usuários”, comparou.

Segundo ele, a Lei nº 8.666, de licitações e contratos administrativos, que regulamenta o art. 37, inciso XXI da Constituição Federal, instituindo normas gerais para licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações nos três níveis de governo, é muito ampla. “Em razão disso, há uma ardorosa polêmica entre os defensores de sua manutenção integral, por entenderem que a lei evita o direcionamento e o superfaturamento dos contratos e a corrupção, e os que propõem alterações importantes em alguns de seus artigos, considerando-se que depois de seus quase 16 anos de vigência, a lei mostrou-se ineficaz em relação aos seus principais objetivos”, observou.

Para Lins, a Lei engessa os processos, não consegue evitar a fraude, encarece os bens e os serviços adquiridos pela Administração Pública e, ainda, alimenta a indústria de liminares. O gestor propôs aos participantes da mesa uma reflexão sobre a execução orçamentária nas regiões onde atuam, atentando para o percentual gasto em saúde e os fatores que dificultam a execução total do orçamento. Ele ainda lamentou o fato de os maiores gastos com a saúde mental ainda incidir sobre as internações compulsórias, a partir de determinações judiciais. “O Judiciário é quem mais segue na contramão da política de saúde mental”, criticou.

Gestora da Saúde Metal do município de Montes Claros (MG), Rosangela Silveira reafirmou que o grande desafio da gestão é o financiamento. Segundo ela, a cidade — que tem 400 mil habitantes — conta com apenas dois CAPs e, nos últimos dez anos, o maior investimento na área foi relativo à formação de profissionais no cuidado de usuários de álcool, crack e outras drogas. “Tivemos incentivos na formação e conseguimos fazer uma inversão no sistema: Hoje gastamos mais na rede psicossocial e menos no parque manicomial”, revelou.

Ela lembrou que chegou a ter dificuldades até para comprar toalhas para os CAPs, em crítica à burocratização do uso dos recursos disponíveis. “Temos mais de dois milhões de recursos para saúde mental que não conseguimos usar. Um processo de compras pode demorar anos, porque a legislação do Brasil em relação a licitações é um grande problema”, sentenciou, a exemplo de Ricardo Lins. Rosângela também fez críticas à judicialização dos tratamentos psiquiátricos. “Ainda somos obrigados a fazer internação em locais totalmente desapropriados, em instituições que já foram até denunciadas pelo Ministério Público”, revelou.

O sociólogo e doutorando pela Universidade de São Paulo (USP), Helton Saragor de Souza, observou que o SUS está sob um “fogo cruzado”, entre medidas de austeridade e subfinanciamento. De acordo com ele, o sistema de saúde pública brasileiro, comparado a outros sistemas universais, conta com poucos recursos financeiros.  Souza acentuou que o problema do subfinanciamento do SUS poderá agravar-se com a PEC 87/2015, referente à DRU — arquivada em 8 de agosto. Diante deste quadro, ele propôs saídas políticas que poderão conter o conservadorismo e enfrentar o interesse do capital, como auditoria da dívida pública, diminuição dos pagamentos de juros, ampliação da alocação de recursos federais, extinção da DRU, taxação das grandes fortunas e fim dos mecanismos complementares de subsídios do SUS para a iniciativa privada.
 

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