Professora da Unicamp falou sobre tipos de currículo e formas de organização e avaliação da aprendizagem
Professora da Unicamp falou sobre tipos de currículo e formas de organização e avaliação da aprendizagem
A primeira conferência do segundo dia do Seminário Nacional do Profaps foi proferida por Maria Helena Bagnato, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o tema ‘Tipos de currículo e formas de organização curricular e avaliação de aprendizagem’. Durante a exposição, Maria Helena tentou responder sob diferentes abordagens a pergunta inicial que propôs ao público: afinal de contas, o que é currículo?
“Por muito tempo nós imaginávamos que currículo fosse uma grade, onde estavam arroladas as disciplinas e a carga-horária, mas o currículo é mais que isso. É projeto, é processo, é construção, é desenvolvimento e abarca diferentes dimensões: políticas, econômicas, sociais, organizativas e etc.”.
Para a professora da Unicamp, currículo é também um espaço de disputa onde pessoas, instituições com diferentes interesses, valores e tradições devem negociar para estabelecer consensos. “O currículo também vai corporificar formas de agir, sentir e falar. Se isso é verdadeiro para quem constrói o currículo, também o é para quem vivencia aquele currículo, pois o sujeito formado vai ter marcas da formação no agir, sentir, falar e ver”.
Além disso, Maria Helena ponderou que um processo de formação profissional, ao selecionar e organizar certos conhecimentos em um dado modelo curricular, elegendo pressupostos e princípios para dar base a esta formação e assumindo objetivos e finalidades, entre outras atividades, propicia também contornos a uma determinada identidade profissional.“Se o curso trabalha um valor o tempo todo é possível que na hora que o aluno saia essa marca fique muito forte em sua identidade profissional. Se eu trabalhar outros valores é possível que isso também vá aparecer nessa formação”.
De acordo com ela, o currículo tem níveis, pois circula por uma série de espaços. Um deles é a regulação, onde é produzido e também negociado no campo oficial onde são elaboradas as políticas. O outro é nível prescritivo, quando o currículo chega à escola como texto ou documento e vai servir como base para uma dada formação. Por último, existe o campo da ação – “o chão da escola e da sala de aula”.
Teorias de base
A professora explicou que existem diversas teorias que dão base aos conceitos e ideias que vão compor um currículo. Elas podem ser originárias dos mais diversos campos, como a psicologia, a linguagem e a história. Ela afirma que uma das possibilidades de entender qual o currículo que uma instituição trabalha é analisar quais são as questões que esse currículo tenta responder, que perguntas ele faz e que ser humano é esse que ele está querendo formar. “Que profissional, que identidade profissional é essa? O que vamos ensinar? Qual conhecimento é considerado mais válido? Porque esse é significativo e não outro?”, questionou, explicando: “Já nessas perguntas podemos ver as relações entre saber e poder, pois a construção de currículo também é relação de poder”.
Segundo ela, existem diferentes formas de organizar o currículo. A primeira delas é a tradicional, onde predomina a preocupação com o desenvolvimento de uma técnica e, por isso, dela vai derivar uma avaliação preocupada com a mensuração onde o aluno recebe uma nota por mérito.
Há também a abordagem crítica, centrada no desenvolvimento de conceitos que permitam compreender o que o currículo faz por meio de questionamentos e problematizações focadas na transformação da realidade. “Ele tem um compromisso com a transformação da realidade e parte dela não só para verificar quais são os problemas como também teoriza e busca fundamentos para voltar para tentar transformá-la. É uma proposta curricular que questiona principalmente o status quo, a forma de organização da sociedade e a maneira que os sujeitos estão inseridos nela”. Segundo ela, conceitos trabalhados pela corrente crítica são: ideologia, poder, resistência, conscientização, emancipação, classe social, hegemonia, reprodução social e cultural. “A grande pergunta é por que nós estamos formando profissionais? O que nós queremos? Estamos comprometidos com quem?”.
Por fim, outra maneira de fundamentar o currículo é partindo dos teóricos pós-críticos, que trabalham conceitos como: gênero, raça, etnia, identidade, diferença, subjetividade, significado, discurso, alteridade, saber, poder e linguagem. “Enquanto os críticos estão interessados no como e no porquê – em construir certas narrativas – os pós-críticos estão mais preocupados em desconstruí-las e nem sempre vão colocar outra argumentação ou outra narrativa no lugar”. Para Maria Helena, uma importante contribuição dessa corrente é o questionamento do estatuto da verdade. “Não existe uma teoria ou um campo teórico que dê conta da complexidade da prática. A prática estoura qualquer tentativa teórica de esgotá-la”. Em comum, teorias críticas e pós-críticas comungam da ideia de que nenhuma teoria é neutra e desinteressada, sendo crivadas por relações de poder.
Modelos de currículo
“Outra coisa que costumamos buscar em termos de fundamentação é o modelo de currículo. Afinal, esse modelo que utilizamos vem de onde, como se caracteriza?”, provocou a professora, para quem a maioria das escolas trabalha com uma mistura de vários modelos, resultando em um currículo híbrido.
O primeiro modelo é o chamado acadêmico, centrado no conhecimento e organizado por disciplinas. “No caso, o modelo acadêmico é bastante usado nas universidades e algumas áreas do conhecimento vão ser vistas como mais importantes do que outras. Isso vai acontecer na discussão curricular do técnico também”, disse. Outras características citadas são a ênfase na “transmissão do conhecimento” e a metodologia que prevê aulas expositivas, pesquisas e no trabalho com problemas. Os alunos podem aprender como os conceitos de uma disciplina se relacionam com outras ou então partindo do mais simples para o mais complexo e a avaliação vai variar de acordo com os objetivos, ou seja, o conhecimento a ser atingido, podendo ser aplicada na forma de provas dissertativas, testes de múltipla escola, etc.
Outro modelo de currículo é o tecnológico, que vai estruturar o processo de aprendizagem de maneira que aquilo que o aluno precisa aprender seja observado, medido e verificado. “Esse currículo dá ênfase ao material e aos objetivos. Na avaliação se o aluno vai mal a conclusão é que o material não deve estar bem elaborado, pois acredita-se que se o material foi bem planejado vai produzir as competências esperadas”. Os alunos tendem a trabalhar sozinhos, como no ensino baseado no computador, por módulos autoinstrucionais e a organização curricular é feita por disciplinas ou módulos, em que os objetivos a serem atingidos são organizados por meio de uma hierarquização de habilidades. “Quando o currículo é feito só dessa maneira pode ter um alto custo e também uma influência externa muito grande sobre os conteúdos, uma vez que a formulação e a organização passam por muitos níveis”.
Para Maria Helena, o currículo das Escolas Técnicas do SUS tem características do modelo reconstrucionista social. “A preocupação é centrada no aluno, que vai se voltar principalmente para os problemas da sociedade. Há um traço dominante que é realizar a crítica social no processo de formação, efetivar mudanças sociais, havendo um compromisso de criar uma nova cultura”. Ainda de acordo com ela, há uma relação entre o modelo e a teoria crítica, pois algumas das questões formuladas vêm do campo contextual. “A comunidade pode trabalhar coletivamente para resolver seus problemas? Há esse espírito de cooperação? As instituições políticas e econômicas podem ser reestruturadas para que as pessoas tenham acesso aos recursos materiais e humanos?”, exemplificou, explicando: “A gente vai trazer isso para sala de aula ou para as diferentes instâncias de gestão e organização do currículo para que o aluno possa interagir, atuar a partir do nível que ele se encontra, encaminhando algumas formas de solução para o problema”. Nesse modelo, a avaliação pode ser feita com a colaboração dos alunos que ajudam a selecionar, administrar e avaliar os exames. “Há uma demanda por interdependência, vai ser um trabalho em grupo o que implica em negociação. O interesse vai ser na qualidade de vida e a ideia aumentar cada vez mais o poder político das classes trabalhadoras, havendo um claro compromisso com o processo de conscientização”.
Por fim, há o modelo humanista, cuja principal característica, de acordo com a professora, é o deslocamento do conteúdo para o sujeito. “Ela recebe algumas criticas por isso, porque a questão conjuntural passa menos problematizada. Em contrapartida, há mais destaque para a questão do sujeito. É uma abordagem que vem da psicologia humanista e pretende aumentar a conscientização pessoal e reduzir a auto-alienação. Aproxima-se ao máximo de uma abordagem holística, em que o aluno, aprendendo a se enxergar como sujeito, também pode enxergar o outro que vai mediar suas relações no processo de trabalho”.
Organização, eixos e diretrizes
A organização curricular pode se dar por disciplinas, módulos, projetos e problemas. Maria Helena explicou que argumentações mais críticas em relação às disciplinas – como a do filósofo francês Edgar Morin – consideram que, por ter um caráter de aprofundar um determinado campo, a disciplina pode fragmentar o conhecimento por nem sempre fazer uma articulação no campo mais geral e entre uma disciplina e a outra. Perguntada se isso não seria “jogar a criança fora junto com a água do banho”, a professora ponderou: “O próprio Morin diz que sem as disciplinas, a especialização, o conhecimento não teria avançado tanto Eu tento trabalhar na licenciatura com um olhar mais interdisciplinar dentro da disciplina. Eu acredito nisso porque é o espaço que eu tenho”.
Já na organização por módulo, os componentes curriculares são agrupados segundo princípios de identidade, configurando unidades pedagógicas autônomas; por projetos, por temas de investigação ou de intervenção na realidade que os alunos trabalham e tentam intervir; e por problemas a aprendizagem é organizada através da formulação de questionamentos vindos da realidade.
De acordo com Maria Helena, há também eixos de um projeto curricular. “Se formos olhar o que diz a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação] e as diretrizes curriculares para o ensino técnico, nos parâmetros curriculares para o técnico em saúde nós vamos ver os eixos presentes. Eles representam o que queremos atingir – criticidade, autonomia, comunicação e trabalho em grupo – e vão fazer parte do processo de formação”. Há também eixos mais gerais de organização dos conteúdos, como interdisciplinaridade, contextualização e flexibilização.
As diretrizes de um projeto curricular podem ser pensadas como fundamentos para formar o indivíduo ao longo do percurso. Na saúde, eles são a integralidade, entendida como múltiplas dimensões do processo saúde-doença; ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação que respeitem a integridade do ser humano; visão do sujeito em cuidado como um todo. “Aqui entra a questão da ampliação dos cenários de prática para que o aluno tenha possibilidade de realizar suas práticas nos diferentes campos de estágio e a relação teoria e prática também”.
Maria Helena explicou que o trabalho em saúde apresenta especificidades e, por isso, a perspectiva dialética da ação-reflexão-ação deve fazer parte do trabalho diário do professor para que o aluno também elabore. “É um trabalho reflexivo e as decisões a serem tomadas implicam a articulação de vários saberes que provêm de diversas instâncias de caráter científico, técnico, mas também, porque o aluno é trabalhador, detém uma experiência do trabalho que resgata as dimensões ética e política. Nessa perspectiva, a maior diretriz da formação é o próprio SUS”.
Nessa perspectiva, ela defende ser preciso colocar em prática o que chamou de “currículo vivo”, construído de forma coletiva por professores, gestores, alunos e também pelo profissional que está em campo, vive a prática.
Competências
Grande conhecido das Escolas Técnicas do SUS, o modelo de competências também foi discutido por Bagnato. Para a professora, o modelo está posto, tanto para a educação superior quanto para o ensino médio e é dilemático. “O que já problematizaram essa questão da competência... Alguns ousaram olhar para ela e tentar ressignificá-la. É um conceito que existiu por um bom tempo dentro do campo da psicologia e migrou para o campo da economia, com outro olhar e interesses e está de volta no campo da educação”, situou. Para ela esse caminho não ocorreu à toa: “Temos uma série de influências de organismos internacionais dentro da educação. Mas eu acredito que dá para olhar de outro jeito, aproveitando as brechas para ressignificar as competências”.
Ela citou as diretrizes curriculares do ensino técnico para introduzir a ideia de “competência como a capacidade para aplicar adequadamente conhecimentos e habilidades para alcançar um determinado resultado em um contexto concreto”. De acordo com a professora, há um avanço quando a compreensão da competência profissional se baseia no princípio da humanização do cuidado em sua dimensão ética, mas é preciso ter cuidado quando se fala em reconhecer e valorizar a autonomia das pessoas para assumirem a própria saúde. “Devemos ler isso com cuidado, pois eu quero que o outro seja autônomo para escolher que saúde que ele quer, mas isso não significa tirar a responsabilidade do Estado com essas questões”.
Para ela, as competências têm uma dimensão técnica (aprender a fazer); humana (aprender a ser); social (aprender a viver com os outros); cognitiva (aprender a conhecer); comunicativa; organizacional; política (aprender a problematizar, a questionar); e cultural (aprender a relacionar-se com as diferenças). Ainda de acordo com a professora, o modelo de competências tende a dar importância às diferenças e particularidades individuais, centrando na aprendizagem – o aluno é o centro – e na autonomia do aluno.
Avaliação
Por fim, Maria Helena Bagnato falou sobre avaliação. “A avaliação instaura a reflexão e o questionamento a produção de sentidos envolve o reconhecimento e a semeadura de valores fundamentais como razão, emoção, criatividade, disciplina, imaginação, solidariedade e honestidade. Precisamos pensar se na nossa prática cotidiana estamos atingindo esses objetivos”, provocou.
Segundo ela, antes de falar sobre avaliação da aprendizagem, é preciso mencionar o que significa a avaliação do trabalho pedagógico, do projeto político-pedagógico e do projeto institucional. “Todos esses espaços têm que passar por um processo contínuo de avaliação em todas as suas dimensões: ética, política, psicológica e pedagógica”. De acordo com a professora, a avaliação por competência nessa perspectiva implica verificar, principalmente, se há integração entre teoria e prática. “ É um grande desafio. Para isso, necessitamos de condições, observação, acompanhamento contínuo e monitoramento de desempenho”.
A professora explicou que existem três tipos de avaliação: a diagnóstica inicial, cujo objetivo é verificar o que o aluno sabe; a formativa, feita para acompanhar o desenvolvimento do aluno; e a recapitulativa, implementada quando é necessário que os alunos retomem conhecimentos. Para avaliar competências profissionais, a professora considera como princípio básico selecionar os métodos, que podem ser perguntas; simulações; provas de habilidades; observação direta; e evidências de aprendizagem prévia. “É importante utilizar uma mescla de métodos que permitam a inferência da competência e combinem conhecimento, compreensão, resolução de problemas, habilidades técnicas, atitudes e ética na avaliação”.
Ainda para Maria Helena, para desenvolver um processo avaliativo na perspectiva integradora e emancipatória é preciso considerar o nível de ensino, as características dos alunos, da disciplina, do curso e as especificidades da formação profissional. “É importante proporcionar o diálogo entre professor e alunos, entre alunos e professor, entre alunos e alunos para adquirir ou construir conhecimento, dando lugar a relações de respeito mútuo e compartilhamento, diferente de uma avaliação verticalizada como relação de poder”.
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