O direito de todo brasileiro ter a acesso a serviços públicos de saúde foi consenso na mesa. Polêmicas ficaram por conta da concretização, com foco na relação entre público e privado no SUS
O direito de todo brasileiro a ter acesso a serviços públicos de saúde foi consenso na mesa. Polêmicas ficaram por conta da concretização, com foco na relação entre público e privado no SUS
Um dos 11 diálogos temáticos, que aconteceram simultaneamente na quinta-feira (01/12), segundo dia da 14a Conferência Nacional de Saúde (CNS), reuniu quatro painelistas bastante representativos das várias vertentes de pensamento existentes quando o assunto é o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS). A mesa sobre 'A integralidade e as Redes Regionais de Saúde', mais do que discutir o conceito e a implantação das redes, se encaminhou para o debate político sobre as escolhas econômicas do Estado brasileiro que impactam o subfinanciamento do Sistema, a relação entre o público e o privado na saúde e as implicações do decreto 7.508, que regulamenta os aspectos organizativos do SUS presentes na Lei Orgânica de Saúde, para o controle social.
Primeira a falar, a advogada Lenir Santos, hoje consultora do Ministério da Saúde (MS), detalhou as principais novidades trazidas pelo decreto que ajudou a formular. Mas, antes disso, explicou que é na raiz do conceito de integralidade que está o direito das pessoas à saúde. "O direito à saúde expresso na Constituição é maior que o direito que está dentro do SUS. O direito na Constituição decorre de dois pontos: o primeiro são políticas públicas, sociais e econômicas que evitam o adoecimento: são os condicionantes e determinantes, como moradia, renda, lazer, emprego, educação, etc. O segundo ponto diz que o direito à saúde também compreende o acesso às ações e serviços para proteção, promoção e recuperação da saúde", explicou, arrematando: "A primeira parte é dever do Estado, da sociedade e do cidadão. A segunda parte, do acesso universal e igualitário aos serviços, é a que compete ao SUS".
A partir dessa distinção, Lenir explicou que a integralidade não pode ser dissociada do acesso. E, para que todos os brasileiros tenham acesso aos procedimentos e tratamentos do SUS, de São Paulo ao menor município do Amazonas, é preciso que haja uma articulação entre os entes federados. "A integralidade da assistência exige interdependência entre municípios e estados, que, na realidade, são autônomos em relação um ao outro, mas, para garantir o direito à saúde do cidadão, não são tão autônomos assim".
De acordo com ela, o decreto 7.508, sancionado pela presidenta Dilma Rousseff em junho deste ano, regulamenta justamente um conceito essencial para a conformação dessa interdependência, pois define o que é região de saúde: um agrupamento de municípios, determinado pelo estado, que devem oferecer, em conjunto, desde atenção básica até atenção hospitalar especializada. Para ela, é na região de saúde que a integralidade vai se efetivar: "Ninguém é capaz de fazer da vacina ao transplante sozinho. Precisamos da região organizada para dar conta de atender a quase todas as necessidades de saúde do cidadão, garantindo escala, porque, muitas vezes, um município pequeno não vai poder conformar uma rede. Isso garante racionalidade aos serviços, maior eficiência e, em decorrência disso, ordenação mais qualificada do acesso", apontou.
Para definir as responsabilidades de todos os municípios de uma região, do estado e do governo federal na garantia da integralidade, o decreto criou o COAP, Contrato Organizativo de Ação Pública, que prevê metas e prazos, distinção dos recursos investidos por cada ente federado, e divulgação das informações para a população em um portal de transparência. O fato de conselhos municipais e estaduais não participarem da definição dos elementos do COAP foi questionado pela plenária. De acordo com Lenir, o COAP tem que cumprir o Plano de Saúde, que tem que ser aprovado pelos conselhos e, portanto, não há prejuízo do exercício do controle social.
Dois sistemas
A proposta da professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria de Fátima Andreazzi, foi fazer um balanço dos últimos quatro anos no SUS. Para isso, a pesquisadora, que também faz parte da Frente Contra a Privatização da Saúde, citou dados colhidos em diversas bases, como as pesquisas de Assistência Médico-Hospitalar e a Pnad - feitas pelo IBGE -, que dão conta de retrocessos, como por exemplo, o enxugamento dos leitos hospitalares disponíveis ao SUS. No entanto, o principal foco da professora foi a análise da situação do Sistema Único frente à saúde suplementar.
"Em relação à oferta de serviços não houve expansão da rede. Continuamos dependentes da oferta privada para complementar. De acordo com a 8a Conferência Nacional de Saúde, ao longo do tempo, deveríamos diminuir a contratação de serviços privados e investir na expansão da rede SUS, para, um dia, chegarmos à autosuficiência", lembrou. Para ela, hoje os contratos com empresas privadas padecem de vários problemas. "São feitos sem avaliação e concorrência. Há uma oligopolização e monopolização do setor privado: poucos produtores são donos da maioria dos serviços privados. Em muitos municípios e estados, o SUS fica refém".
A professora lembrou ainda que muitos Tribunais de Contas estaduais já dão pareceres contrários às Organizações Sociais (OSs), tidas, durante muito tempo, como solução para a gestão dos serviços públicos. "É um modelo que dificulta a integralidade, porque as unidades devem colaborar umas com as outras. As OSs têm que ter plano de negócio para sobreviver, o que significa que se for lucrativo não encaminhar um paciente para outra unidade, ela não encaminhará. É um modelo baseado na competição, e não na colaboração", criticou.
Ainda em relação aos serviços privados, para ela, é preciso haver um fortalecimento do gestor único sobre territórios. "São dois sistemas estanques: SUS e Saúde Suplementar. Inclusive, muitas das diretrizes assistenciais aprovadas pela ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] colidem com as diretrizes do próprio Ministério da Saúde", apontou.
Concepções de Estado em disputa
Para o secretário municipal de Recife, Gustavo de Azevedo Couto, é preciso reconhecer que o Estado brasileiro, ao criar o SUS, não se preparou para consolidá-lo. "A gente tem que fazer um debate aberto. A conquista do SUS crava um conjunto de direitos extremamente generoso, mas o Estado brasileiro não foi preparado para executar isso. O SUS é contramão do Estado brasileiro, quando coloca elementos como universalidade, equidade, controle social, etc. O Estado brasileiro é liberal, restringe, não é de inclusão. Colocamos na Constituição um elemento novo que entra em contradição, e não é isso que vai garantir, de fato, o direito de acesso. É a luta política", declarou.
Para ele, é fundamental olhar para o modelo de desenvolvimento que o país adotará nos próximos anos para que, algum dia, todas as políticas públicas - não só o SUS - tenham a característica universal. "Milhões de pessoas estão saindo da miséria: qual é o modelo de desenvolvimento em que cabe um Estado universal? Qual é o modelo que vai permitir um sistema universal em todas as áreas, inclusive na saúde?", provocou.
No entanto, Couto refletiu sobre as dificuldades que o serviço público tem para fazer uma gestão ágil, defendendo a reformulação jurídica de instrumentos que regulam as licitações, contratações e demissões. "Temos que ter uma discussão mais ampla: se eu garanto o acesso ao bem público, se eu garanto os princípios públicos, a natureza tem que ser necessariamente estatal? Nós já fizemos esse debate na Constituinte e ficou definido que o SUS tem um sistema de saúde suplementar". O secretário se declarou contrário às OSs, onde, modelo de gestão em que, em sua opinião, o público perde a gerência sobre o privado. Mas é favorável, às Fundações Estatais de Direito Privado.
Princípios da integralidade
Para o presidente do Grupo Pela Vida, Mário Scheffer, a discussão sobre a integralidade não pode prescindir de alguns princípios. O mais importante deles? Ninguém pode ficar de fora do Sistema. "Todo cidadão tem que receber do SUS a atenção que precisa. E ao mesmo tempo que cada um deveria financiar o SUS, de acordo com a sua capacidade de contribuição, com impostos, ninguém poderia deixar de acessar o Sistema. O SUS que sonhamos seria expressão de dupla solidariedade, entre cidadãos ricos e pobres, entre saudáveis e doentes, entre moradores de grandes centros e grotões".
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