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20/07/2017 Versão para impressãoEnviar por email

Em debate, os direitos violados no sistema prisional

A violação de direitos na privação de liberdade é destaque do 3º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental, realizado em Florianópolis, entre os dias 27 e 30 de junho, com relatos de pessoas que passaram pelo sistema prisional brasileiro. 

O 3º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental, realizado em Florianópolis, entre os dias 27 e 30 de junho, incluiu em sua programação o debate 'Sistema Prisional: violação de direitos na privação de liberdade'. Para Walter Ferreira de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), o tema foi observado como uma das discussões mais importantes do evento. “As prisões refletem uma postura que a sociedade cria e inventa para si mesma. Apesar de ser um advento relativamente recente, a privação de liberdade tomou um vulto poderoso”, justificou, chamando atenção para o quarto lugar nas estatísticas mundiais que a população prisional no Brasil ocupa. “É preocupante, do ponto de vista moral, a maneira como os seres humanos passam a ser tratados quando entram no sistema prisional e os relatos de que as prisões brasileiras são uma demonstração da imoralidade da condução da política pública”, realçou.

Haroldo Caetano, promotor do Ministério Público em Goiás, contou a experiência do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili). Fruto de uma iniciativa inédita no Brasil, que busca oferecer assistência e tratamento adequado e humanizado aos doentes mentais infratores, o Paili foi criado a partir de uma parceria que envolve a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES-GO), a Secretaria Estadual de Justiça do Estado de Goiás, o Ministério Público Estadual, o Tribunal de Justiça do Estado e a secretarias municipais daquelas cidades que já aderiram a proposta.

A iniciativa propõe acolher a demanda judicial dos casos do louco infrator, incluindo avaliação jurídica, clínica e psicossocial, acompanhamento do caso, e mediação entre o ato jurídico, a saúde e a sociedade até a cessação de sua relação com a justiça, visando a não reincidência do ato infracional e sua inserção social e a adesão do círculo sócio familiar do paciente judiciário, trabalhando junto à família para estabelecimento de vínculos para o retorno ao lar, prestando apoio e esclarecimento. O Programa realiza discussões de casos com a equipe das unidades de saúde responsáveis pelo atendimento e atividades públicas de sensibilização, estabelece parceria com instituições afins e promove debates com peritos oficiais, para fornecer informações que possam contribuir para o exame de cessação de periculosidade. 

 

Encarceramento enlouquecedor

De acordo com Caetano, o Brasil tem 700 mil presos, e esses dados não estão atualizados. “Há cerca de 20 anos, eram 140 mil presidiários. Apenas São Paulo tem quase 300 mil presos, sem contar os manicômios e as prisões juvenis. Ou seja, a população carcerária quadriplicou e não encontramos resposta aos problemas relacionados à violência”, contabilizou, observando que o cenário está vinculado aos interesses do capital e ao neoliberalismo. “Para quem não tem poder de consumo, sobram apenas as políticas de repressão, as prisões e os manicômios”, criticou.  Para ele, o modelo do Estado repressivo avança, produzindo uma guerra contra as drogas. “Isso fica evidente nas 60 mil pessoas que são mortas violentamente, e grande parte é em função da proibição relacionada às drogas, seja por conta da guerra de território ou pela polícia”, lamentou. Para o promotor, esse populismo penal e manicomial gera dividendos políticos que tendem a se agravar, configurando-se em uma guerra contra os pobres.

Ianni Scarcelli, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), discorreu sobre os desafios de ver um filho no sistema prisional.  “Em 2015, fui surpreendida com a prisão do meu filho e de outros trabalhadores, simplesmente por serem moradores da comunidade. Depois de uma experiência como essa, pensei em duas saídas: esquecer ou enfrentar. Eu escolhi a segunda opção”, revelou, contando sua experiência como diretora do coral da universidade e como a música colaborou na busca de “vozes perdidas e abafadas”. Ela compartilhou os maus momentos experimentados por conta da prisão do filho: “Você leva o alimento, a roupa e fica na porta da cadeia por cinco horas, depois eles podem jogar a comida fora ou suspendem a visita sem dar qualquer explicação, além de toda a situação vexatória da revista”. Ela denunciou que o filho ficou preso em uma cela de quatro metros quadrados, com mais de 40 homens. “Precisamos evidenciar esse sofrimento invisível, que somente conseguiria ser enfrentado com o avanço da Reforma Psiquiátrica. No entanto, observamos as comunidades terapêuticas crescerem e os usuários de crack sendo levados compulsoriamente. Ou seja, vemos tantas outras maneiras de encarceramento surgirem”, alertou.

Joel Nunes da Silva, ex- interno do sistema prisional de Santa Catarina, falou sobre os 12 anos e sete meses que ficou encarcerado. Hoje, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), teve a matrícula negada na primeira vez que passou no vestibular, ainda preso. “Quando passei no vestibular, tive que passar por uma entrevista com a psicóloga, que me classificou como uma pessoa fria, calculista e manipuladora. Logo, o juiz me negou o direito de ingressar na universidade”, recordou, contando que, além de ter o direito negado, sua pena sofreu um acréscimo de mais dois anos. Depois de seis meses do ocorrido, com o falecimento do juiz que acompanhava seu caso, Joel teve a oportunidade de tentar o vestibular novamente, ingressando no curso de Ciências Sociais. “Apesar de ter conseguido a autorização para a graduação, eu tinha vários direitos básicos negados, como o de usar relógio, computador e dinheiro. Como fazer uma graduação com tudo feito no papel? Eu tinha que pedir para a colega digitar aquele texto e entregar para o professor, sem revelar o motivo, pois nunca expus minha situação para turma, por não querer que as pessoas tivessem piedade”, contou.

Ele externou, também, que abriu mão do direito à visita, para que seus familiares não passassem por uma revista desnecessária e humilhante, e contou que os produtos de higiene têm um valor inestimável dentro das prisões. “Até a pasta de dente a sua família tem que trazer. Do contrário, você tem que comprar deles, por um valor superfaturado”, denunciou. Outro episódio que marcou sua vida prisional foi quando levou um tiro na boca, logo que entrou no sistema. Para ter atendimento, ele fez uma greve de fome por três dias e, como consequência, ficou 30 dias em uma cova, sem direito à cama.

Joel terminou seu relato chamando a atenção para a situação dos presídios femininos que, em sua avaliação, é muito pior.  “Apenas 20% das presidiárias recebem visitas, e a questão da higiene é precária. Já ouvi relatos que muitas mulheres precisam usar miolo de pão para conter o fluxo menstrual. No presídio feminino, é muito difícil ter uma mulher que passa no vestibular, pois elas não têm apoio. Eu fico me perguntando se uma mulher teria o mesmo apoio que eu tive, se os direitos delas seriam respeitados”, concluiu. 

Ana Paula Evangelista, da Secretaria de Comunicação da RET-SUS. 

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