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30/09/2014 Versão para impressãoEnviar por email

Epidemiologia cotidiana traduzida em vigilância em saúde integrada

Jairnilson Paim, Gastão Wagner e Luiz Facchini discutem a Epidemiologia nos 25 anos do SUS no 9º EpiVix. Eles fizeram uma recuperação histórica da área e propuseram iniciativas em defesa de uma epidemiologia cotidiana que se traduza em vigilância em saúde integrada em todas as suas dimensões.

Recuperação histórica e ousadia propositiva marcaram a mesa Epidemiologia nos 25 anos do SUS no segundo dia (8/9) do 9º Congresso Brasileiro de Epidemiologia (EpiVix) promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), no mês em que comemora 35 anos de atuação em prol do sistema de saúde brasileiro, em Vitória (ES). A defesa de uma epidemiologia cotidiana que se traduza em vigilância em saúde integrada em todas as suas dimensões e articulada aos serviços de saúde e que se fundamente em saberes das ciências humanas — e não apenas em estatísticas — permeou as falas de três especialistas da Saúde Coletiva: Jairnilson Paim, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba); Gastão Wagner, livre-docente do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); e Luiz Facchini, professor do Centro de Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel).

Paim traçou um panorama da recomposição do campo da Epidemiologia no contexto de criação do SUS, provocando a plateia com uma pergunta: "Que novas recomposições precisamos fazer mais de vinte anos depois?". Na sua avaliação, é preciso entender que, com o SUS, a Epidemiologia foi além da dimensão de disciplina acadêmica e se constituiu como um meio ou uma tecnologia incorporada nos serviços e nas práticas dos trabalhadores de saúde. "Antes do SUS, a disciplina era quase esotérica. Poucas pessoas trabalhavam com essa temática e, no âmbito dos serviços, ela era confinada a algumas poucas instituições", lembrou, fazendo alusão à época do “superpoderoso” Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que administrava os recursos e os serviços, apartado do Ministério da Saúde, responsável apenas pela realização de ações preventivas e campanhas. "O Inamps, que era o pagador das ações de saúde, ignorava a Epidemiologia, porque para ele o planejamento se fazia por meio de portaria e o que se passava no conjunto da população não importava", criticou.

        

Ampliação do campo

Segundo Paim, entre as décadas de 1980 e 1990, são criadas as bases institucionais e legais para o uso e a ampliação da Epidemiologia e a recomposição nas práticas de saúde. O saber epidemiológico, junto com o saber da clínica, vão se compatibilizando na perspectiva da construção da integralidade da atenção. "O Brasil é, senão o único, um dos únicos países que traz na sua Constituição um uso explícito para a Epidemiologia. As primeiras normas operacionais do SUS não contemplaram efetivamente a área, mas a partir da segunda metade dos anos 1990, todas as normas vão incluindo não só a dimensão da vigilância, bem como a do planejamento, acompanhamento e avaliação", orientou.

Em 1990, é criado o Centro Nacional de Epidemiologia (Cenepi), responsável por impulsionar a descentralização das ações da vigilância — naquele momento, ainda chamada vigilância epidemiológica — para as secretarias municipais e estaduais. Paim destacou a participação das universidades e da Abrasco na proposição da integração entre as vigilâncias. "O 1º Congresso de Epidemiologia, realizado em Campinas, em 1990, formou as bases técnico-científicas para a ampliação do uso da Epidemiologia nos serviços. Em 1992, a segunda edição do congresso traz a ideia de articulação das vigilâncias entre si e necessidade de combinar tecnologias com novos modelos de atenção. No fim do mesmo ano, um seminário da Abrasco propôs romper a tradição de separação entre vigilância e assistência”, enumerou, citando que esta é uma meta perseguida há 22 anos.

Nova mudança ocorre em 2003, quando o Cenepi é transformado em Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. “Foi um passo importante em direção a uma perspectiva de aproximação progressiva entre os diferentes saberes que compõem as chamadas vigilâncias e os trabalhos que se realizam no âmbito da atenção individual”, avaliou. Paim destacou, contudo, que os esforços de integração não foram isentos de tensões, citando como exemplo a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 1999, que tratou de separar a vigilância sanitária das outras áreas de atuação da Vigilância em Saúde (epidemiológica, ambiental e saúde do trabalhador).

Segundo ele, as tensões são também perceptíveis na legislação. Se, por um lado, instrumentos legais como o Decreto nº 7.508, de 2011, que regulamenta a Lei Orgânica do SUS (nº 8.080), e a própria Lei Complementar 141, que regulamenta a Emenda Constitucional 29, trazem uma perspectiva de uso ampliado da Epidemiologia nos serviços, por outro há leis da época da ditadura que ainda não foram revogadas, a exemplo da Lei nº 6.259, de 1975, tratando das ações de Vigilância Epidemiológica. Nas palavras de Paim, essa norma “estruturou a vigilância à imagem e semelhança dos governos autoritários”.

Por fim, Paim destacou a importância da Epidemiologia para o SUS e ressaltou a ousadia do país nesse campo: “A Epidemiologia brasileira, usando a expressão feliz do Marcos Drumond Junior [autor do livro Epidemiologia nos municípios - Muito além das normas], é uma epidemiologia do cotidiano, do atrevimento. Não está apenas olhando para o norte, mas para o Cruzeiro do Sul”.

 

Rebelião necessária

Estimulado pelo título do congresso — As fronteiras da Epidemiologia contemporânea: do conhecimento científico à ação —, Gastão Wagner provocou os presentes a refletirem criticamente sobre o paradigma científico hegemônico, que tende a valorizar em demasia pesquisas “baseadas em evidências” e colocar no ostracismo trabalhos que privilegiem as dimensões política e social da Epidemiologia, indo na contramão da tradição brasileira da Epidemiologia Social. “A maioria dos artigos publicados e aceitos pelas revistas usam o referencial metodológico ‘baseado em evidências’ muito semelhante à medicina baseada em evidências. A Epidemiologia do cotidiano, que o Jairnilson está propondo, depende de uma relação crítica com esse paradigma hegemônico”, observou.

Segundo Gastão, recentemente no Brasil, a Epidemiologia conseguiu uma hegemonia nos órgãos de fomento, principalmente na Pós-Graduação, fato que, em alguma medida, se estendeu para o conjunto da Saúde Coletiva, provocando um atrito “bastante grande” com áreas complementares, como as Ciências Sociais. O problema, argumentou, é que o modelo baseado em evidências, na verdade, se atém a um tipo de evidência — matemática — que é importante, mas, não é suficiente para dar conta da complexidade dos cenários.

Ele defendeu um casamento ou triangulação entre os saberes das ciências da saúde, humanas, políticas, matemáticas, estatísticas para aumentar o entendimento e capacidade de ação sobre as organizações de saúde e os processos de saúde-doença-intervenção. “Quando a gente estuda a efetividade da vacina contra a poliomielite, usamos a metodologia baseada em evidências para ver a capacidade de produzir imunidade, os danos e a forma de [a vacina] chegar ao usuário, que é muito simples: por meio de um programa vertical de produção e controle de cadeia de frio. Já, quando falamos em Estratégia Saúde da Família, estamos falando em várias atenções básicas. Isso é mais complexo. Tem o modelo, a cobertura, os recursos humanos, a formação e a motivação dos trabalhadores para fazer diagnóstico, sair do consultório e ir ao encontro da população. Não dá para aceitar que evidências são só aquelas produzidas por modelos matemáticos, essas que precisam ser articuladas às evidências históricas e sociais”, exemplificou, provocando: “Para fazer isso, vai ter que haver rebelião, e quem se rebela é punido. Não vão ter artigo publicado, não vão aceitar essa triangulação”.

Autarquia para o SUS

Para Gastão, há um desafio organizacional para que o projeto da Saúde Coletiva se efetive no país. “Embora seja ‘Único’, o Sistema é muito fragmentado, além de ser vulnerável ao conflito de interesses com o privado”, avaliou. Segundo ele, o problema reside na burocratização e na terceirização da gestão pública. “Para o SUS depender menos de prefeitos, governadores e presidente, enfrentando os temas do clientelismo na área pública e da privatização, temos que repensar a organização pública. Eu proponho a Autarquia SUS Brasil”, orientou.

Citada em artigo publicado no jornal O Globo, em setembro de 2013, a proposta de Gastão vem sendo debatida e apoiada em diversos fóruns da Saúde Coletiva. Ele explicou que parte da ideia de uma autarquia nos níveis federal, estadual e municipal, com colegiados tripartites e participação do controle social. O território seria repensado a partir das atuais 400 regiões de Saúde — que seriam reduzidas pela metade, contabilizando um milhão de habitantes cada uma, “para garantir a integralidade”. Dessa forma, seriam cinco grandes áreas de intervenção: vigilância em saúde; atenção básica; hospitais e especialidades; urgência e emergência; e apoio administrativo e financeiro. “Cada uma das áreas com carreiras multiprofissionais, nas quais os profissionais entrariam por concursos pelo menos estaduais, ainda que a gestão seja local, e secretários regionais indicados por critérios técnicos pelos conselhos tripartites. Temos que garantir que nenhum diretor de serviço seja cargo de confiança, nem eterno. Tem que ter mandato”, defendeu. A proposta de Gastão encontra justificativa na necessidade de valorização da dimensão pública do SUS e da tradição de gestão participativa e controle social.

Ferramenta indispensável

Coube ao ex-presidente da Abrasco, Luiz Facchini, pensar como a Epidemiologia —que parte de dados e conceitos — contribui para o SUS. Para tanto, ele citou o inquérito epidemiológico, realizado em 2009 pelo grupo de pesquisa do qual participa, que avaliou o atendimento a idosos (a partir dos 60 anos) com diabetes em unidades básicas de saúde e outros serviços ambulatoriais. Segundo ele, conceitos como acesso, qualidade, cobertura, adequação e efetividade tiveram que ser debatidos. “Acesso, por exemplo, é um conceito complexo. Pode ser desde a disponibilidade do serviço até outros determinantes de naturezaextrassetorial, como transporte, renda, moradia etc.”, disse.

Os resultados do inquérito deram conta, ainda, de aspectos políticos, como a participação. “Esse modelo que temos hoje estabelecido, seja nas unidades ambulatoriais, seja nas unidades básicas, não dá conta do perfil epidemiológico caracterizado por condições crônicas e múltiplas. Há um predomínio de consultas muito rápidas, sem sistemas de registro eletrônico adequado, sem educação permanente, sem coordenação de cuidado dentro dos serviços. É preciso trabalhar de maneira sofisticada para fazer com que o conjunto das ações seja adequado, efetivo e alcance a qualidade necessária e, principalmente, mobilizar a participação ativa dos pacientes”, recomendou.

Por Maíra Mathias, da Secretaria de Comunicação da RET-SUS

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