Para Nelson Rodrigues dos Santos, legislação atenderia perfeitamente à população se tivesse mais aporte de recursos
Por Joana Algebaile
Há 20 anos, no dia 19 de setembro, foi promulgada a Lei 8.080, que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Quando, em 1988, a Constituição Federal determina que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” e institui um sistema que garante “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua [da saúde] promoção, proteção e recuperação”, o país dá um grande passo. A legislação vem para ordenar esse novo sistema que, ainda hoje, precisa de ajustes para atingir amplamente o seu objetivo.
A Constituição de 88 também estabeleceu a formação de recursos humanos na área da saúde. A questão da qualificação do profissional de saúde já era tratada desde a 4ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1967. Na época, havia consenso de que a formação não atendia às necessidades dos serviços. Na 7ª Conferência, em 1980, a discussão foi em torno de uma cooperação entre os sistemas de educação e saúde, que poderia resultar na criação do Sistema Nacional de Recursos Humanos para a Saúde. Por fim, em 1986, com a realização da 8ª CNS, ficou definido que o SUS deveria ordenar a formação de pessoal para a área. A Lei 8.080 corroborou essa deliberação, quando em seu artigo 27 afirma que um dos objetivos da política de recursos humanos é a “organização de um sistema de formação em todos os níveis de ensino, inclusive de pós-graduação, além da elaboração de programas de permanente aperfeiçoamento de pessoal”.
Para os que consideram o SUS um sistema falido, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultor do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) Nelson Rodrigues dos Santos explica que as falhas do sistema não foram ocasionados pela lei. “As diretrizes gerais do SUS descritas na Constituição e o detalhamento de como o sistema deveria se organizar e se desenvolver foi muito debatido na década de 1980”, afirma. Ele acrescenta que o setor de saúde já havia gerado a municipalização do sistema público: “Os municípios médios, principalmente, foram pressionados pelas demandas sociais, como a grande migração da população rural. Na prática, o princípio da integralidade previsto na Constituição já era executado pelos municípios”.
O professor destaca que os municípios acabaram sendo os maiores ‘artistas’ da elaboração da Lei 8.080, por já terem a experiência. “Assistimos, naquela época, a uma grande aliança entre os formuladores do SUS e das lideranças municipais, com base nas rotinas já desenvolvidas”, lembra Nelson. Para o consultor, a mobilização da população foi um ponto importante. “O presidente Collor vetou artigos da 8.080 sobre a participação da sociedade na gesto do sistema. Houve uma grande pressão e três meses após a promulgação da Lei Orgânica, foi promulgada a Lei 8.142, que corrige essa questão”, explica.
Segundo Nelson Rodrigues dos Santos, as dificuldades apresentadas pelo sistema se dão mais pelo descumprimento da lei do que por falhas na sua elaboração. “Todas as gestões federais descumpriram o repasse de 30% do orçamento para o SUS. Além disso, os setores financeiros sempre pressionaram os governos e sempre conseguiram que os subsídios ao setor privado de saúde resultassem em menor investimento do sistema público. O governo federal sempre empurrou a classe média para os planos privados e transformou o SUS em um sistema pobre, destinado a pobres, o que o enfraquece ainda mais”, opina.
Se fosse possível mudar algo na Lei 8.080, o professor diz que incluiria artigos que falassem claramente sobre a regulação do sistema privado. “Ninguém poderia imaginar que o governo federal colocaria tanto dinheiro nos planos particulares e criaria a Agência Nacional de Saúde Suplementar [ANS], que dá ao setor privado uma espécie de independência. A regulação do sistema privado deveria ser responsabilidade do Conselho Nacional de Saúde e pela tripartite Ministério da Saúde-Conass-Conasems”, finaliza o professor.
Histórico – Antes da Lei 8.080, a legislação dizia que aos municípios brasileiros só competia “organizar serviços de Pronto Socorro”. Não havia uma lei específica que regulamentasse o atendimento em saúde pública. O Ministério da Saúde e as secretarias municipais e estaduais de saúde se limitavam às atividades de prevenção. O Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que foi criado em 1974, era responsável por atender aos trabalhadores que possuíam carteira assinada e contribuíam com a previdência social. O restante da população recorria a instituições filantrópicas ou, no caso dos mais abastados, ao setor privado.
Em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, o movimento sanitarista discutiu as bases do que viria a ser o texto sobre saúde na Constituição de 1988. Na CNS foi plantada a semente do que seria o SUS. A Conferência debateu três temas principais: ‘A saúde como dever do Estado e direito do cidadão’, ‘A reformulação do Sistema Nacional de Saúde’ e ‘O financiamento setorial’. Como resultado das discussões e da análise do setor nos anos anteriores, os sanitaristas indicaram a necessidade de ampliação do conceito de saúde, com a implantação de uma reforma sanitária.
A 8ª Conferência teve importância também pela, até então, inédita participação de usuários. A iniciativa de ouvi-los partiu de Sérgio Arouca que, na época, era presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e foi convidado também a presidir a CNS. Assim, foram realizadas pré-conferências estaduais e municipais, com ampla participação popular. Nelas, foram eleitos delegados da sociedade civil que participaram da Conferência. Após a 8ª CNS, foi criada a Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), que funcionou de agosto de 1986 a maio de 1987. A função era, a partir das conclusões da CNS, elaborar um documento para ser entregue à Assembléia Nacional Constituinte. Ao longo da tramitação da proposta nas comissões da Constituinte, o movimento sanitário, representado por Sergio Arouca, apresentou ao Congresso uma Emenda Popular, que agregava ao documento mais de 50 mil assinaturas, dando legitimidade da sociedade às propostas. E, com a promulgação da Constituição em julho de 1988, nasce o SUS, que, dois anos mais tarde, seria regulamentado pela Lei 8.080.
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